quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Para a União Europeia chegou o momento de utilizar a força


Thierry Meyssan*

A nova Comissão Europeia anunciou claramente o seu projecto para a era da retirada dos EUA : voltar a dar à Europa Ocidental o domínio sobre o resto do mundo que ela exerceu do XVIº ao XIXº século. Ela dota-se para isso de uma ideologia de pacotilha utilizando a contra senso o vocabulário dos seus filósofos. Esta postura seria risível, se ela não pudesse conduzir à guerra.

A União Europeia ambiciona voltar a dar aos seus membros o estatuto que tinham adquirido, pela força, com os seus impérios respectivos. Tendo o mundo mudado, já não é mais possível basear a realidade colonial sobre o abismo educacional que separava os Selvagens da Civilização. Convêm, pois, formular uma nova ideologia que formate o domínio europeu de nobres ideais.

Essa existe já de maneira embrionária e é utilizada pelos Estados Unidos para justificar a sua própria leadership. Trata-se de a tornar mais coerente e de a apurar.

O seu slogan de base afirma que o «universalismo» não mais deve ser entendido como a igualdade de todos perante a Lei, qualquer que seja a sua origem, a sua fortuna e a sua religião, mas a igualdade de tratamento de que todos podem usufruir seja qual for o país em que viajem. Deste ponto de vista, o verdadeiro inimigo já não é a desordem e a insegurança que ele gera, mas os Estados que deveriam proteger-nos e criam abusivamente diferenças entre nós segundo as nossas nacionalidades; excelente doutrina para um Estado supranacional! (o Estado federal dos EUA, depois o Estado federal europeu).

-- No plano sociológico, esta ideologia apoia indistintamente qualquer todas as formas de migração (porque permite fazer desaparecer as fronteiras entre homens) e toda a confusão de género (porque permite fazer desaparecer as desigualdades baseadas nas diferenças físicas).

-- A nível económico, ela milita pela livre circulação de capitais (que não poderão ser entravadas pelos Estados) e a globalização do comércio (porque vincula as pessoas através do comércio).

-- No plano militar, ela apoia a ingerência da «comunidade internacional» nos «Estados não-globalizados» (porque são refractários à Nova Ordem) e o recurso a forças armadas não-estatais (uma vez que certos Estados devem desaparecer).

-- No plano político, apoia toda a causa global, como a luta contra a responsabilidade humana pelo aquecimento climático. Em última análise, ela recusa o Direito Internacional (quer dizer, acordado entre as nações) para o substituir por um Direito global (quer dizer, imposto a todos) [1].


Se a questão das migrações se tornou um tabu para as elites europeias após o fracasso do Chancelerina Merkel em 2015, todos os outros pontos são comummente aceites.

-- A confusão de géneros, parte da paridade homens-mulheres e prossegue hoje em dia com a valorização de um modelo transgénero. Já ninguém mais ousa observar que a paridade nas Assembleias Parlamentares e Conselhos de Administração jamais beneficiou as classes populares, mas unicamente as elites. Não se vê por que é que a passagem da integração de transexuais para a apologia da incerteza de género fará avançar seja o que for.

-- A livre circulação de capitais é uma das «Quatro liberdades» instituídas desde o Acto Único Europeu (1986). Ela permite às grandes corporações escapar aos impostos nacionais; razão pela qual todos a deploram, mas ninguém deseja revogá-la.

A globalização das trocas comerciais destruiu milhões de empregos na Europa e começou a apagar as classes médias [2].

-- A ingerência militar nos Estados não-globalizados é o cerne da doutrina de Rumsfeld/Cebrowski adoptada pelos Estados Unidos em 2001. É impressionante constatar que as elites ocidentais parecem ainda ignorá-la. Assim, a difusão de uma vasta investigação sobre os 18 anos de «fracasso» dos Estados Unidos em pacificar o Afeganistão provocou inúmeros comentários. Mas absolutamente ninguém ousou dizer que, longe de ser um fracasso, era a missão atribuída em 2001 ao Pentágono pelo Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld; 18 anos em que a «Guerra Sem Fim» continua a prosseguir em cada vez mais teatros de operação [3].

O emprego de forças militares não-estatais atingiu um máximo com as organizações jiadistas. Uma delas —o Daesh(EI)— indo até ao ponto de se atribuir um Estado não- reconhecido. Isto continua hoje com o apoio oficial da União Europeia a uma organização terrorista, o PKK, desde que opere na Síria e não na Turquia [4].

-- A luta contra as causas humanas do aquecimento climático é, antes de mais, uma política visando regenerar a indústria automóvel em fim de ciclo: passar de motores a gasolina para motores elétricos. O facto de a teoria de Milutin Milanković (posição da Terra em relação ao Sol) bastar para explicar as mudanças actuais não impede a pretensão de que teria sido «cientificamente demonstrado» que elas seriam devidas à indústria humana [5].

O pior está para vir com a invenção de um Direito global.

Ignorando as diferentes tradições jurídicas em todo o mundo, a União Europeia subsidia o Tribunal Penal Internacional. Depois de ter sido, durante muito tempo, uma ferramenta do colonialismo europeu em África, este pretende afirmar a superioridade dos Europeus sobre todos os outros seres humanos.

Depois de ter em vão tentado julgar por crimes contra a humanidade a Prémio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, o Tribunal espera julgar o Presidente sírio, Bashar al-Assad, por ter resistido à Confraria dos Irmãos Muçulmanos assim como a Israel pelos seus crimes nos Territórios palestinianos. Não tendo os Europeus nenhuma preocupação particular nem pelos Rohingas, nem pelos Sírios, nem pelos Palestinos, como não constatar que a União toma aqui o caminho oposto aos Estados Unidos e tenta afirmar-se como defensora de muçulmanos, mesmo que a saldo da sua tradição de secularismo? [6] .

O Alto-Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, anunciou a próxima criação de um regime global de sanções contra os atentados aos Direitos do Homem, tal como o Parlamento Europeu tinha desejado em Abril passado (B8-0181/2019). Inspirando-se no modelo dos EUA do Global Magnitski Act [7], a União Europeia vai, como um professor, ensinar o Bem e o Mal e atribuir a cada um boas e más referencias.

O sentido das palavras muda. Do século XVI ao século XVIII, o universalismo convidava a lutar contra o colonialismo. Nos séculos XIX e XX, ele ditava «o dever do homem branco» e autorizava os mandatos dos países «desenvolvidos» para ajudar os «sub-desenvolvidos». No XXI século, torna-se a justificação do neo-colonialismo.

A Presidente Ursula van des Leyen resumiu o seu programa de restauro do domínio europeu com estas palavras : chegou o momento, «Devemos fazer uso da Força».

Thierry Meyssan | Voltaire.net.org | Tradução Alva

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “Multilateralismo ou Direito Internacional ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 3 de Dezembro de 2019.
[2] Global Inequality. A New Approach for the Age of Globalization, Branko Milanovic, Harvard University Press, 2016.
[3] The Pentagon’s New Map, Thomas P. M. Barnett, Putnam Publishing Group, 2004. “Agressão mascarada de guerras civis”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 27 de Fevereiro de 2018.
[4] “As insolúveis contradições do Daesh e do PKK/YPG”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de Novembro de 2019.
[5] “A paz ou a luta contra o CO2 : é preciso escolher a prioridade”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 29 de Outubro de 2019.
[6] “O TPI deverá violar a decisão do Conselho de Segurança e inculpar Bashar al-Assad”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de Março de 2019.
[7] “As omissões nas acusações anglo-saxónicas contra a Rússia”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 24 de Julho de 2018.

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