A violência contra os médicos no
exercício da sua profissão é um sintoma de uma doença. Chama-se degradação
social.
João Araújo Correia* | Público |
opinião
Hoje, durante
o pequeno-almoço, a televisão dava a notícia de mais dois casos de
violência extrema contra médicos, em Moscavide e
Setúbal. Sou um internista com 60 anos, que ainda não interiorizei, e no
domingo estarei de urgência durante 24h. A minha mulher insiste em que devo
deixar de fazer urgência, conforme a lei permite. Ao ouvir a notícia, começo a
pensar que ela tem razão.
A
violência contra os médicos no exercício da sua profissão é um
sintoma de uma doença. Chama-se degradação social. Estes dois últimos governos
não provocaram a enfermidade, mas deram as condições propícias para que ela se
manifestasse e esteja a alastrar de forma avassaladora!
A degradação social é um fenómeno
de corrosão progressiva, que temos dificuldade em reconhecer, até se tornar
evidente que o nível de civilização baixou irremediavelmente. Nunca há um único
culpado. Há um crescente laxismo, em que vamos aceitando o inaceitável. Na
televisão, a vulgaridade é catapultada ao estrelato. Todos acreditam que o
estatuto social se mede pelos bens, que se exibem sem despudor. A inteligência
é confundida com a esperteza. Ninguém lê um livro ou dá valor a um intelectual.
Quando os sinais da doença estão
instalados, sendo a violência contra médicos e professores dos mais
preocupantes, a justiça tem de ser exemplar e imediata. Se a justiça
não atua, a sociedade entenderá que tudo é possível e legítimo, como se a
violência fosse uma mera expressão de opinião. Não tenho dúvidas que assim
estes casos se irão repetir. Não me consta que em nenhum destes últimos três
casos de agressão a médicos, os seus autores tenham ido passar sequer umas
horas à esquadra para reflexão. Ficou-se pela identificação dos supostos
doentes e familiares. A justiça pode esperar.
Desde o início deste ciclo
político, a atitude dos governos perante a saúde tem sido sempre de mera
propaganda, remetendo para os profissionais a responsabilidades das
ineficiências do sistema. Em vez de se reformar o SNS, com medidas que aumentem a
capacidade de resposta, fazem-se declarações bombásticas com contratações de
profissionais, que ninguém vê. Dizem dar autonomia aos hospitais e depois enredam-nos
numa teia burocrática, que torna vãos todos os esforços. Abrem-se concursos sem
nexo, em que os diretores do serviço não têm qualquer intervenção.
Até a apregoada transparência das
listas de espera da consulta e da triagem de Manchester no SU dos
hospitais, é uma forma encapotada de desculpabilizar as políticas e culpar os
profissionais. As pessoas entendem que se há urgências com uma hora de espera e
outras com cinco horas, a culpa é de quem lá está a trabalhar. Há uns meses, um
utente revoltado, a aguardar observação na urgência há 3h, disse-me que eu
devia ter vergonha em chefiar aquela equipa. Pedi-lhe para que visse como todos
estavam a trabalhar sem descanso. Manteve o dedo acusador: “você devia contratar
mais gente!”
*Presidente da Sociedade
Portuguesa de Medicina Interna
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