Jeanine Añes, presidente
autodeclarada, disputará eleições de março, num país de liberdades restritas.
Sua última medida: contratar mesma empresa norte-americana de “assessoria de
imagem” que tentou “legitimar” golpe em Honduras
Lee Fang, no The Intercept Brasil | em Outras
Palavras
A presidente interina da Bolívia,
Jeanine Áñez, que assumiu o poder em novembro, rejeita as alegações de que seu
antecessor, Evo Morales, tenha sido removido por um golpe – ao mesmo tempo em
que reprime as vozes dissidentes e convoca novas eleições para cristalizar o
poder das forças de oposição conservadora que tomaram o controle do governo na
ausência de Morales.
Muitos críticos vêm apontando que
o ciclo possui uma semelhança espantosa com o golpe de estado que derrubou o
presidente hondurenho Manuel “Mel” Zelaya há uma década. O líder de esquerda
foi afastado do cargo pelos militares e substituído por um governo interino
liderado por forças oposicionistas de direita, que rapidamente consolidaram seu
poder com um processo eleitoral controverso.
Aparentemente, os novos
governantes da Bolívia não deixaram de perceber o paralelo. O governo de Áñez
contratou os serviços dos mesmos consultores de Washington, D.C. que o governo
interino de Honduras empregou para obter apoio nos EUA.
Em dezembro, a Bolívia fechou um
contrato com a empresa CLS Strategies para a prestação de “consultoria
estratégica de comunicação” nas novas eleições deste ano, e para outras
interações com o governo norte-americano. Depois da derrubada de Zelaya, o
escritório de lobby, anteriormente conhecido como Chlopak, Leonard, Schechter
& Associados, prestou serviços incrivelmente semelhantes, auxiliando o
governo interino de Honduras a obter apoio das autoridades e dos veículos de
mídia dos EUA para a realização das novas eleições no país.
A CLS Strategies, procurada, não
se manifestou.
A crise na Bolívia espelha em
muitos aspectos o golpe de 2009 em Honduras. Tanto Morales quanto Zelaya
fortaleceram os laços com a Venezuela, aumentaram o salário mínimo, ampliaram
os serviços sociais e se opuseram à privatização dos principais setores da
economia. Os dois presidentes esquerdistas enfrentaram um acirramento das
críticas diante de suas aparentes tentativas antidemocráticas de se manter no
poder. Zelaya propôs um plebiscito para definir se poderia pleitear um segundo
mandato, o que era proibido pela constituição hondurenha. Morales concorreu a
um inédito quarto mandato, o que levantou dúvidas sobre a possibilidade de que
estivesse gradualmente manobrando as instituições na Bolívia para permitirem um
governo permanente de seu partido.
Os militares também tiveram um papel
crucial na queda de ambos os líderes. Na calada da noite, em 28 de junho de
2009, oficiais militares forçaram a renúncia de Zelaya sob a mira de armas de
fogo, e o levaram preso de sua casa. Morales fugiu da Bolívia depois que o
comandante-chefe das forças armadas exigiu sua renúncia em 10 de novembro de
2019.
Em ambos os casos, forças de
oposição à direita tomaram o poder depois da derrubada de Morales e Zelaya, e
buscaram reconhecimento internacional para obter legitimidade.
O então senador dos EUA Jim
DeMint, do Partido Republicano da Carolina do Sul, anunciou na sequência do
golpe de Honduras que lideraria um grupo de parlamentares até a capital
Tegucigalpa, em um aceno diplomático ao novo governo interino. Inicialmente, o
governo Obama se recusou a fornecer uma aeronave militar para a viagem, e
DeMint reagiu bloqueando unilateralmente os indicados de Obama. O governo Obama
acabou cedendo e autorizou DeMint a usar um avião para viajar até Honduras.
Nos bastidores desse drama,
informações divulgadas sobre a prática de lobby mostram que o escritório
atualmente chamado CLS Strategies participou da estratégia. Juan Cortiñas, um
dos sócios, instruiu funcionários legislativos e atuou como intérprete pessoal
para DeMint perante as autoridades do governo hondurenho. A equipe da CLS
Strategies também conseguiu inserir colunas de opinião e convencer jornalistas
nos principais veículos de notícias, e agendar entrevistas nas redes de TV a
cabo para promover a oposição do governo interino ao retorno de Zelaya.
O presidente interino de
Honduras, Roberto Micheletti, do Partido Nacional, de direita, suspendeu as
liberdades civis, reprimiu duramente os protestos e bloqueou as transmissões de
diversos canais de mídia, incluindo CNN, Telesur, Channel 8 e Radio Globo de
Honduras.
A CLS Strategies também esteve
nos bastidores nesse caso. Depois do golpe, David Romero, locutor da Radio
Globo, sabidamente favorável a Zelaya, fez um desabafo antissemita dando a
entender que Israel e os judeus seriam culpados pela derrubada de Zelaya.
Romero se desculpou, e alegou ter se excedido no calor do momento, mas seu
desabafo cheio de ódio abriu uma brecha para o governo de Micheletti, que
fechou a estação de rádio e confiscou seu equipamento. Quando a indignação internacional
pela censura imposta por Micheletti aos veículos de mídia cresceu, a CLS
Strategies fez circular os comentários de Romero e a acusação à Radio Globo em
diversos comunicados à imprensa, mudando o foco para o discurso do locutor.
Ao fim, foram realizadas as novas
eleições controversas em Honduras, que deram oficialmente ao Partido Nacional o
controle do governo. Desde então, e a despeito dos anos de escândalos de
corrupção e dos crescentes indícios de que figurões do partido estiveram
diretamente envolvidos em operações de tráfico de drogas, o Partido Nacional
vem controlando a presidência de Honduras. O presidente Juan Orlando Hernández
removeu seus oponentes da Suprema Corte e conseguiu aprovar uma lei alterando
os limites dos mandatos, justamente o que teria motivado a derrubada de Zelaya.
Hernández posteriormente enviou a polícia militar para reprimir com violência
os protestos contra os resultados contestados da eleição presidencial de 2017,
em que ele se reelegeu para um segundo mandato.
Na Bolívia, uma história
semelhante parece estar em curso. Áñez, ex-líder da oposição conservadora no
senado boliviano, tomou o poder depois da derrubada de Morales, e se mobilizou
imediatamente para refazer o governo, substituindo autoridades militares e de
gabinete. Ela também anunciou sua intenção de processar Morales e membros de
seu partido político por terrorismo. Diversas pessoas que protestaram contra o
governo Áñez foram mortas. O governo interino da Bolívia alega que os
apoiantes de Morales estão planeando atos de violência.
O clima de incerteza sobre o
futuro deixa a opinião pública desconfiada quanto à possibilidade de que as
eleições sejam realmente justas. Em sua declaração de registo, a CLS
Strategies indicou que irá fazer contato com autoridades públicas, órgãos de
governo, jornais, e grupos civis nos EUA em prol do governo interino da
Bolívia. Cortiñas, que atuou como intérprete de DeMint, agora está registado e
pode representar o governo boliviano.
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