Em relatório do Instituto
Roosevelt, o despontar dos “novos progressistas”: querem recuperar dimensão
política da Economia, frear corporações e usar tecnologias para reduzir
desigualdades. Afiançam: ultraliberalismo é aberração passageira
Ladislau Dowbor | Outras Palavras | Imagem: Dana
Schutz
O que está surgindo com muita
força no mundo das ciências sociais, e em particular da economia, é a busca de
novos rumos. As quatro décadas, dos anos 1980 até 2020, trouxeram uma visão
simplificada e a narrativa correspondente de redução do papel do Estado,
liberalização do comportamento corporativo e globalização dos fluxos
econômicos. Em consequência, nós perdemos o pouco que havia de governança e de
racionalidade durante os “30 gloriosos anos” do pós-guerra, em que se havia
conseguido razoável equilíbrio entre o Estado, as empresas e as organizações da
sociedade civil.
A visão de que o mundo económico
solto encontrará magicamente equilíbrios, por meio de “mecanismos” naturais,
nos levou aos dilemas presentes. O vale-tudo corporativo está gerando um desastre
ambiental planetário. O desencontro entre economia global e políticas nacionais
leva a contradições absurdas. A financeirização está gerando desigualdade a
níveis aberrantes. O conjunto jogou o planeta no caos político que hoje
observamos em todos os continentes. Onde há pouco se dizia “There Is No
Alternative” ou “É o Fim da História”; agora se busca recuperar o controle.
Neste mundo desgovernado, correndo para o desastre, estamos todos procurando as
rédeas.
Não faz muito tempo, ainda
imperava a simplificação que vimos acima, com o discurso único dos chamados
“ortodoxos”. Isso está mudando. Há uma verdadeira explosão hoje de análises que
voltam ao bom senso. O imenso sucesso de Thomas
Piketty é parte dessa reviravolta planetária, e o livro surgiu quando
o mundo estava já à procura de novas visões. Com Michael Hudson passamos a
entender a dinâmica financeira que está gerando a desigualdade aberrante que
hoje enfrentamos. Ha
Joon Chang nos apontou uma outra visão da economia, em particular
relativa ao mundo centrado em novas tecnologias. Mariana
Mazzucato nos trouxe uma visão muito mais realista do papel do “Estado
empreendedor”. Kate Raworth apresenta
um sistema de contabilização dos resultados econômicos que faz sentido, bem
além do PIB. E, de repente, pesquisadores marginalizados na “heterodoxia”,
visionários como Kenneth
Galbraith, François Chesnais ou David Harvey aparecem como precursores que
acordaram antes dos outros.
A economia não está despertando
das simplificações ideológicas e das narrativas absurdas apenas de dentro da
sua área. É a partir da área da psicologia social que Jonathan
Haidt nos tira da patética simplificação do homo economicus e
mostra como construímos racionalizações para o absurdo político. Frans
de Waal, da antropologia, mostra como somos presas fáceis de uma
irracionalidade que tem profundas raízes genéticas, não à toa estamos nos
massacrando uns aos outros, em violências e guerras intermináveis desde sempre:
ainda pertencemos em boa parte aos nossos antepassados primatas. Wolfgang
Streeck nos traz com muita força a compreensão da interação entre a
economia, a cultura e a política, concluindo que não é o fim do capitalismo,
mas sim o fim do capitalismo democrático. Ou seja, as diversas áreas das
ciências sociais terminam por recolocar a economia no seu devido lugar: um
coadjuvante necessário mas insuficiente da análise integrada das transformações
sociais.
Com isso, o que chamamos
pretensiosamente de ciência económica, o economics em inglês, está
reencontrando os seus rumos, e a sua utilidade. The
emerging worldview: how new progressivism is moving beyond neoliberalism, organizado
por Felicia Wong, traz um leque de análises emergentes – abrangendo os
conhecimentos que temos sobre os desastres em curso; e reaproximando a
economia, a sociologia, a cultura e a política –, para construir uma visão
muito mais realista, e para desenhar novos rumos para a própria economia. No
quadro do Roosevelt Institute, que vem se revelando uma mina de reflexão
inovadora, Wong apresenta, em relatório curto, de 56 páginas, uma
sistematização das análises de cerca de 150 pesquisadores que buscam o desenhar
novos caminhos, rejeitando o neoliberalismo que avaliam como aberração
momentânea. O relatório conta com 8 páginas de bibliografia, o que nos permite
visualizar, indiretamente, a amplitude que está tomando esse movimento.
Constitui uma excelente ferramenta para todos nós que buscamos abranger essa
nova visão que está se desenhando no horizonte, e dessa vez com bom senso, ou
seja, tendo no centro o bem-estar das populações e a sustentabilidade do
processo.
O ponto de partida é que se trata
de nos reapropriarmos das regras do jogo. A economia funciona segundo pactos
que a sociedade estabelece para si mesma. Quando a Finlândia decide que a
educação funciona melhor como sistema público de acesso universal, e que um
professor de escola primária precisa ganhar um salário equivalente ao que ganha
um advogado ou um engenheiro, não existe “lei” económica para isso; mas sim o
bom senso pactuado no sentido de fazer a sociedade funcionar. A economia deixa
de ser vista como ringue de luta-livre, onde o Estado apenas assegura as cordas
e um apito. É uma nova visão: economia não é algo que temos de “entender” para
nos adaptarmos o melhor possível, não se trata de “forças da natureza”. Economia
é o conjunto das “regras do jogo” que podemos transformar e organizar em função
da sociedade que queremos ser.
Não à toa temos ultimamente
relatórios como New Rules
for the 21st Century, do próprio Instituto Roosevelt, o Change the Rules: new rules for the
economy da New Economics Foundation de Londres, o Alternatives Economiques de
Paris, ou o próprio The
Emerging Worldview que aqui apresentamos. Já apresentei em outro
documento, A
Economia Desgovernada: novos paradigmas, os posicionamentos em torno
da Economia de Francisco, e tomadas importantes de posição de diversos grupos
corporativos. Aqui, com Felícia Wong, temos uma tentativa de síntese disso tudo
que está emergindo.
Como todo posicionamento hoje
exige um “ismo”, aqui não se escapa: a análise propõe New
Progressivism, ou seja, somos progressistas, mas não como os de
antigamente. Busca-se algo novo. A que corresponde isso em termos políticos? Eu
chamaria de capitalismo civilizado. Mas se trata, explicitamente, de uma visão
de novas estruturas a desenvolver, não de uma volta a algum tipo de capitalismo
mais democrático. “O novo progressivismo entende que os mercados são regidos
por escolhas humanas. Isso significa que a política, as ideias e a ideologia
importam. A quem os mercados deveriam servir, e a quem priorizar? Com que fins?
Essas são decisões que o público deveria tomar de maneira afirmativa.” (p.37).
Ou seja, a economia volta a se chamar economia política.
Neste mapeamento da nova
“paisagem” científica que surge, o documento identifica quatro grupos, cujas
análises convergem para uma nova visão de mundo (worldview). Um grupo compreende
os “novos estruturalistas”, que focam o sistema existente e sugerem regras do
jogo para o mercado, com reforma tributária, transparência dos fluxos, controle
dos paraísos fiscais e semelhantes, como por exemplo as propostas do Piketty.
Um segundo grupo, “provedores públicos”, com Mariana Mazzucato por exemplo, que
foca o potencial do Estado como provedor direto de bens e serviços, em
particular nas áreas sociais, pesquisa tecnológica, infraestruturas: aqui o
Estado pode concorrer diretamente com o mercado. Um terceiro grupo é
qualificado de “transformadores económicos”: é um Estado que define estratégias
de longo prazo, políticas estruturantes de grande escala, políticas de
industrialização e semelhantes. O quarto grupo concentra-se na “democracia
econômica”, na dimensão institucional, envolvendo o processo decisório da
sociedade, buscando resgatar a dimensão democrática das transformações
económicas, inclusive a importância do poder local.
São quatro grupos que apresentam
identidades diferenciadas, mas que notadamente convergem no sentido de uma
visão estruturalmente diferente. Felicia Wong considera que os pontos comuns
mais importantes são: 1) Os mercados não constituem sistemas que vão se
estruturando livremente, mas são estruturados por políticas, escolhas e poder;
2) Essas escolhas podem guiar inclusive as maiores forças, e as mais
disruptivas, como a mudança tecnológica ou uma maior integração global, no
sentido de melhores resultados para a população; 3) Os valores importam. O progressivismo
pós-neoliberal precisa definir como queremos que a nova economia funcione e
como definimos sucesso, baseado no rol de valores que respondam às questões de
uma economia com que fins, e uma economia para quem? 4) Arrumar as bordas da
reforma das políticas é insuficiente. Um novo paradigma político é necessário,
e deve ser construído sobre a base de uma mudança transformadora, estrutural.
(p.9)
A imagem geral é de que o
vale-tudo que chamamos de mercado, e que adquiriu temporariamente uma certa
respeitabilidade académica com Milton Friedman, e adquiriu dentes políticos com
o Consenso de Washington, está saindo rapidamente de cena. Com quase 8 bilhões
de habitantes, tecnologias extremamente poderosas e agressivas, e gigantes
corporativos totalmente descolados das realidades que vivem as populações, nós
estamos frente a um desafio de civilização, muito além de estreitas teorias
económicas. Uma nova visão de mundo, com o resgate da economia na sua dimensão
de economia política, está emergindo. O texto de Felicia Wong é muito bom,
simples (nada de economês) e muito bem sistematizado. E a bibliografia, como
mencionei, constitui uma excelente ferramenta, em particular para os que como
eu ensinam economia.
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