quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Fim à tortura e ao abandono médico de Assange


Stephen Frost, Lissa Johnson, Jill Stein, William Frost, em nome de 117 médicos signatários

Em 22/Nov/2019 nós, um grupo de mais de 60 médicos, escrevemos ao secretário do Interior do Reino Unido para manifestar nossas sérias preocupações acerca da saúde física e mental de Julian Assange. Na nossa carta [1] , documentámos um historial de negação de acesso a cuidados de saúde e prolongada tortura psicológica. Nós pedimos que Assange fosse transferido da prisão de Belmarsh para um hospital de ensino universitário a fim de receber avaliação e tratamento médico. Confrontados com a evidência de tortura não tratada e em curso, também levantámos a questão do preparo físico de Assange para participar em procedimentos de extradição para os EUA.

Não tendo recebido qualquer resposta sólida do Governo do Reino Unido, nem à nossa primeira carta [1] nem àquela que se seguiu [2], escrevemos ao Governo Australiano pedindo que interviesse para proteger a saúde do seu cidadão. [3] Até à data, lamentavelmente, nenhuma resposta foi recebida. Enquanto isso, muito mais médicos de todo o mundo juntaram-se ao nosso apelo. Nosso grupo actualmente chega a 117 médicos, representando 18 países.

O caso de Assange, o fundador da WikiLeaks, é multifacético. Ele relaciona-se à lei, à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, ao jornalismo, à publicação e à política. Ele também se relaciona à medicina. O caso sublinha vários aspectos preocupantes que justificam a atenção estreita da profissão médica e a acção concertada.

Fomos instados a actuar a seguir aos angustiantes testemunhos oculares relatados pelo antigo diplomata britânico Craig Murray e pelo jornalista de investigação John Pilger, o qual descreveu o estado de saúde deteriorado numa audiência de gestão do caso em 21/Out/2019. [4] , [5] Assange apareceu na audiência pálido, com baixo peso, envelhecido e a mancar, e ele havia visivelmente lutado para lembrar informação básica, centrar seus pensamentos e articular suas palavras. No fim da audiência, ele "disse à juíza distrital Vanessa Baraitser que não havia entendido o que acontecera no tribunal" [6]

Nós redigimos uma carta ao secretário do Interior do Reino Unido, a qual rapidamente reuniu mais de 60 assinaturas de médicos da Austrália, Áustria, Alemanha, Itália, Noruega, Polónia, Sri Lanka, Suécia, Reino Unidos e EUA, concluindo: "É nossa opinião que o sr. Assange exige urgente avaliação média tanto do seu estado de saúde físico como psicológico. Qualquer tratamento médico indicado deveria ser administrado num hospital de ensino universitário (cuidados terciários) adequadamente equipado e com staff qualificado. Caso tal avaliação e tratamento urgente não se verifique, temos preocupações reais, com a evidência actualmente disponível, de que o sr. Assange poderia morrer na prisão. A situação médica é portanto urgente. Não há tempo a perder". [1]

Em 31/Mai/2019 o Relator Especial da ONU sobre Tortura, Nils Melzer, informou sobre a sua visita de 09/Mai/2019 a Assange em Belmarsh, acompanhado por dois peritos médicos. "O sr. Assange mostrava todos os sintomas típicos de exposição prolongada a tortura psicológica, incluindo stress extremos, ansiedade crónica e trauma psicológico intenso". [7] Em 01/Nov/2019, Melzer advertiu: "A continuada exposição do sr. Assange à arbitrariedade e ao abuso pode em breve custar-lhe a vida". [8] Exemplos das comunicações imperativas a governos do Relator Especial da ONU sobre Tortura são mostrados no apêndice.

Tais advertências e a apresentação de Assange na audiência de Outubro talvez não devessem ser uma surpresa. Assange havia, afinal de contas, antes da sua detenção na prisão de Belmarsh em condições equivalentes a confinamento solitário, passado quase sete anos restringido a algumas salas na embaixada do Equador em Londres. Ali, ele foi privado de ar fresco, luz do sol, da capacidade de se mover e exercitar livremente e do acesso a cuidados médicos adequados. Na verdade, o Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU sustentou que o confinamento equivalia a "privação arbitrária da liberdade". [9]

O Governo do Reino Unido recusou-se a conceder a Assange transferência segura para um hospital, apesar de pedidos de médicos que puderam visitá-lo na embaixada. [10] Havia também um clima de medo em torno da provisão de cuidados de saúde na embaixada. Um médico que visitou Assange na embaixada documentou o que um colega de Assange informou: "Tem havido muitas dificuldades em encontrar médicos praticantes que estivessem dispostos a examinar o sr. Assange na Embaixada. As razões dadas eram a incerteza sobre se o seguro médico cobriria a Embaixada Equatoriana (uma jurisdição estrangeira); se a associação com o sr. Assange poderia prejudicar seus meios de vida ou atrair atenção indesejada para eles e suas famílias; bem como desconforto respeitante à exposição desta associação quando entrando na Embaixada. Um praticante médico manifestou preocupação a um dos entrevistados depois de a polícia tomar notas do seu nome e do facto de que estava a visitar o sr. Assange. Um praticante médico escreveu que concordava em produzir um relatório médico só sob a condição de que o seu nome não ficasse disponível para o público, temendo repercussões". [11]

De modo perturbador, parece que este ambiente de insegurança e intimidação, mais uma vez comprometendo o cuidado médico a Assange, era intencional. Assange foi sujeito a uma cobertura de vigilância 24 horas por dia dentro da embaixada, como mostrou a emergência de vídeo e registos secretos de áudio. [12] Ele foi vigiado em privado e com visitantes, incluindo família, amigos, jornalistas, advogados e médicos. Não só foram violados seus direitos a privacidade, vida pessoal, privilégio legal e liberdade de expressão como, também, o seu direito à confidencialidade médico-paciente.

Condenamos a tortura de Assange. Condenamos a recusa ao seu direito fundamental de cuidados de saúde adequados. Condenamos o clima de temor em torno da provisão de cuidados de saúde para ele. Condenamos as violações do seu direito à confidencialidade médico-paciente. Não se pode permitir que a política interfira com o direito à saúde e à prática da medicina. Na experiência do Relator Especial da ONU sobre Tortura, a escala de interferência do estado é sem precedente: "Em 20 anos de trabalho com vítimas de guerra, violência e perseguição política nunca vi um grupo de estados democráticos conspirarem para deliberadamente isolar, demonizar e abusar de um indivíduo isolado por tão longo tempo e com tão pouco respeito pela dignidade humana e pelo estado de direito". [7]

Convidamos médicos nossos pares a juntarem-se como signatários a nossas cartas e acrescentar mais vozes aos nossos apelos. Desde que médicos começaram a avaliar Assange na embaixada equatoriana em 2015, a opinião médica e as recomendações urgentes de médicos foram sistematicamente ignoradas. Mesmo quando as autoridades designadas do mundo sobre detenção arbitrária, tortura e direitos humanos acrescentaram seus apelos a advertências de médicos, governos marginalizaram a ética médica, a autoridade médica e o direito humano à saúde. Esta politização de princípios médicos fundamentais é de grave preocupação para nós, pois isto traz implicações para além do caso de Assange. Abuso por negligência médica politicamente motivada estabelece um perigoso precedente, pelo qual a profissão médica pode ser manipulada como uma ferramenta política, minando em última análise a imparcialidade da profissão, o compromisso para com saúde para todos e a obrigação de não prejudicar.

Caso Assange morra numa prisão do Reino Unidos, como advertiu o Relator Especial da ONU sobre Tortura, ele efectivamente terá sido torturado até à morte. Grande parte daquela tortura terá tido lugar numa ala prisional médica, sob observação de médicos. A profissão médica não pode permitir-se permanecer em silêncio, do lado errado da tortura e do lado errado da história, enquanto tal farsa se desdobra.

No interesse da ética médica, da autoridade médica e do direito humano à saúde, e tomando uma posição contra a tortura, juntos podemos desafiar e despertar a consciência dos abusos pormenorizados nas nossas cartas. Nossos apelos são simples: estamos a conclamar governos a finalizarem a tortura de Assange e a assegurarem o seu acesso ao melhor cuidado de saúde disponível antes que seja demasiado tarde. Nosso pedido a outro é isto: por favor juntem-se a nós.

Somos membros do Doctors for Assange. Declaramos não ter interesses conflitantes. Os signatários desta carta estão listados no apêndice .

17/Fevereiro/2020

Imagem: Manifestação dos médicos no presídio de Belmarsh, onde Assange está encarcerado.

Notas:

O original encontra-se em www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30383-4/fulltext .   Para descarregá-lo em formato PDF clique aqui .

Este documento encontra-se em https://resistir.info/ 

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