O tema da animação do momento é a
eutanásia. Os manipuladores da opinião pública, os que colocam as multidões a
olhar para o Sol e convencem as ovelhas que ali está uma girandola
incandescente ameaçam com fogueiras de inferno e penas de morte sem julgamento!
Carlos de Matos
Gomes* | Jornal Tornado | opinião
Vivemos tempos vazios de títulos
de jornais e de reportagens de 6 às 9, o orçamento foi aprovado, já não há
folhetim da Joacine, o Ventura já se viu que não passa de um rufiote suburbano
que não chegará a D. Sebastião dos saudosistas do come e cala, a Isabel dos
Santos, a conselho da Ana Gomes, já sacou o dinheiro que aqui tinha investido,
levando-o para paragens mais seguras e de gente mais sensata, o juiz Alexandre
já está imortalizado em pedra no processo Marquês, o futebol continha a
entreter os fiéis enquanto turbina dinheiro com transferências de rapazes que
chegam de todo a parte do mundo para mostrar o seu valor e ajudar o plantel e o
mister, o presidente viaja e diz que existimos, na meteorologia andamos entre a
seca e a chuva miudinha, o Marques Mendes mexerica, o aeroporto, esgotado o
combustível em estudos que vêm do tempo do Estado Novo, aterrou no Montijo, à
beira rio, mas isso também o novo Hospital da Cuf e a fundação Champalimaud lá
estão e de boa saúde. Enfim isto está uma seca.
Estando numa seca é preciso
animar a malta. Animar é dar ânimo. Nada melhor que meter medo da morte. A
mercadoria dos demagogos. O Satanás está aí! Saiu a sorte grande à eutanásia,
uma discussão que arrasta multidões, com igrejas especializadas em arrastar
multidões crentes na vida eterna. A vida, a vidinha é o que temos. Agarremo-nos
a ela. Passe a publicidade escrevi um romance a que dei o título Basta-me
Viver. Basta-nos a todos. Nem temos mais nada que fazer, nem a fazer a não ser
viver. Por mim, se for fora de qualquer rebanho melhor. Faço por isso.
O tema da animação do momento é a
eutanásia. Os manipuladores da opinião pública, os que colocam as multidões a
olhar para o Sol e convencem as ovelhas que ali está uma girandola
incandescente ameaçam com fogueiras de inferno e penas de morte sem julgamento!
Não matem os velhinhos, anuncia uma adolescente com um cartaz de papelão que
alguém lhe pôs nas mãos numa qualquer sacristia. Faça a guerra, mate jovens e
poupe os velhinhos! Mate gente saudável e deixe os incuráveis a penar, que
esses dão lucro ao sistema de saúde, hospitais, laboratórios, lares.
Esta é a parte de arraial de
discussão. De feira. Daqui a uns dias, como aconteceu no antecedente – e basta
um “penalte que o Var não varou” – e a coisa saiu de antena. Restará a
pesporrência e a estupidez que sustentam a discussão.
Pesporrência, arrogância,
soberba. Os que arrancam cabelos e insultam quem aceita a eutanásia (e não a
querem impor a ninguém) entendem pesporrentemente que são donos da vida dos
outros. É pesporrência e soberba. Eu sou dono e senhor de decidir a minha vida,
do livre arbítrio – até está na Bíblia, para escândalo dos sacerdotes de todas
as confrarias e de todas as graduações. Tenho direito até ao “pecado” , ao
erro, à estupidez, desde que não prejudique o meu semelhante. E sair da
vizinhança, dispensar os meus vizinhos da minha presença é um direito que
tenho.
Quem quiser ficar fica, quem
quiser partir parte. Impedir a eutanásia é ainda pesporrência porque se baseia
na ideia de que andamos cá na vida a fazer coisas importantíssimas, mesmo que
nada possamos fazer, nem pestanejar e que estejamos fartos e desesperados – sem
esperança. O Raul Solnado parodiou estes defensores de causa de vida até ao
último alento na rábula do “Hás-de ser bombeiro voluntário, quer queiras, quer
não queiras!” Viverás agarrado à máquina, algaliado, furado por agulhas,
dorido, entubado, queiras ou não, porque o importante é teres o coração a bater
e as agências funerárias trabalham 24 horas por dia, não és tu que escolhes quando
te vêm buscar. Ora essa!
Ter o direito a escolher a morte,
o momento e o modo é um direito que eu não alieno. Mesmo que seja uma morte
estúpida. O dinamarquês Johannes Kepler, um dos maiores astrónomos de seu
tempo, durante um banquete, recusou-se a deixar a mesa para urinar, porque
considerava isso falta de cortesia. Não se sabe se sua bexiga explodiu ou se
foi seriamente afetada, mas ele morreu 11 dias depois. Pediu para escreverem no
seu epitáfio: “Viveu como um sábio, morreu como um tolo”.
Nem todos podemos viver como
sábios, mas temos o direito (e eu quero tê-lo) de morrer como um tolo. Nem que
seja a saltar de paraquedas aos oitenta anos! (A minha admiração ao João Soares
que se lançou antes dos 70).
Os missionários e apóstolos que
por aí pululam a alertar os estúpidos (todos os que pensam diferente deles)
para o perigos da eutanásia deitam mão ao argumento do perigo de “matarem os
velhinhos” sem eles quererem. É um argumento de pederneira. A morte de quem não
quer ser morto está tipificada há milénios como crime. É mesmo o primeiro
mandamento do livro sagrado de três religiões monoteístas – Não Matarás! –
trouxe o Moisés a ordem do pico do Monte Sinai. Não trouxe: não te matarás, e
talvez fosse mais lógico, porque mais depressa iria para junto de Deus e se
livraria deste vale de lágrimas!
Eu já ouvi pedirem-me durante
toda uma noite para matar e a abreviar o fim do sofrimento. Não me venham com
hipocrisias!
Por mim, entendo que a confusão
entre eutanásia e assassínio é um argumento estúpido, que faz de nós estúpidos.
Também não é necessário um cartaz a dizer: não roubem os velhinhos! Não batam
nos velhinhos! Não os deixem morrer à sede! Nem de frio! Não os abandonem nos
lares! Não os exponham a correntes de ar.
Tal quero ter que me leve com
dignidade às costas na última viagem pretendo o direito a dispor do direito de
ter alguém que me proporcione um fim digno.
*Militar, investigador de
história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz
Por opção do autor, este artigo
respeita o AO90
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