quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Tribunal da Relação usado para julgamento privado que rendeu 280 mil euros ao juiz


Portugal dos abusos de poder e da corrupção*

O juiz Luís Vaz das Neves, arguido na Operação Lex, terá usado as instalações do Tribunal da Relação de Lisboa para um processo privado de que foi árbitro, em 2018.

O ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Luís Vaz das Neves, usou o salão nobre do tribunal para um julgamento privado com o qual ganhou 280 mil euros, avança, esta quinta-feira, o jornal Público.

De acordo com o jornal, em causa está um litígio entre o grupo Altis e o fundo de investimento imobiliário Explorer relacionado com o Altis Park, um hotel nas Olaias, em Lisboa.

Em vez de recorrerem à justiça tradicional, as duas partes decidiram utilizar uma forma alternativa de resolver o diferendo, recorrendo à criação de um tribunal arbitral, como está previsto na lei. O árbitro presidente foi indicado pelo líder do Tribunal da Relação de Lisboa, Orlando Nascimento, que apontou o nome do seu antecessor no cargo, Luís Vaz das Neves, que presta serviços de arbitragem extrajudicial.

A questão problemática é que Luís Vaz das Neve é jubilado - e a lei não permite aos juízes no ativo nem aos jubilados que recebam pagamentos provenientes de fora do exercício da magistratura.

Segundo a ata constitutiva do tribunal, data de janeiro de 2018 e citada pelo Público, os honorários dos árbitros e do secretário do julgamento corresponderam a um total de 700 mil euros. E se, de acordo com a lei, o árbitro presidente recebe 40% do valor total dos honorários, Vaz das Neves terá recebido 280 mil euros por este julgamento privado.

Além disso, a arbitragem decorreu no salão nobre do Tribunal da Relação de Lisboa, que cedeu gratuitamente as instalações, independentemente de não existir interesse público no caso. A situação pode representar um crime de peculato.

Questionado pelo Público, o atual presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Orlando Nascimento, recusou explicar a cedência do salão do tribunal para este caso.

Quanto a Vaz das Neves, defendeu ser comum, quando um árbitro é magistrado, ser solicitado que o julgamento decorra naquelas instalações e alegou não se lembrar de qual o montante que recebeu por participar no julgamento privado.

"Vai contra princípios éticos"

Ouvido pela TSF, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Ramos Soares, admite que o uso do salão do Tribunal da Relação para um julgamento privado não seja um crime, mas sublinha que "o facto de não ser ilegal não quer dizer que se deva fazer".

"Acho que não é ilegal, porque o Tribunal da Relação tem o seu espaço, que às vezes cede para conferências e outro tipo de iniciativas. Não vejo nenhum impedimento direto na lei de que o edifício do tribunal seja utilizado para um julgamento desta natureza, mas o facto de não ser ilegal não quer dizer que se deva fazer", disse o representante sindical dos juízes.

"Pode, pelo menos, ser contra princípios éticos", apontou Manuel Ramos Soares. "Pessoalmente, se fosse eu a mandar num tribunal, não o autorizaria."


Situação diferente é a da remuneração obtida por Vaz das Neves por ter arbitrado um caso privado, que, de acordo com a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, está totalmente proibida.

"Um juiz jubilado, como um juiz no ativo, está sujeito a um dever de exclusividade remuneratória absoluto - não pode fazer nenhuma outra atividade remunerada", explicou Manuel Ramos Soares.

"O juiz jubilado pode ser juiz árbitro, desde que peça autorização e a obtenha, mas depois não pode ser remunerado por essas funções", esclareceu.

Por este motivo, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses pediu ao Conselho Superior de Magistratura que faça uma sindicância ao Tribunal da Relação de Lisboa. O presidente do sindicato clarifica que não se trata de uma "desconfiança" para com a instituição, mas uma forma de investigar "a fundo" um problema: "ver se ele existe, qual a dimensão que tem, e resolvê-lo".

"Este é o momento essencial para agir, sem hesitações", declarou.

"Justiça pública e justiça privada devem ser separadas"

Em declarações à TSF, o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, afirma estar "muito preocupado" com as denúncias do uso das instalações do Tribunal da Relação de Lisboa para um caso privado.

"Normalmente, as arbitragens decorrem em espaços adequados e que são obtidos pelos próprios. Não é muito comum estarem a ocorrer arbitragens em tribunais judiciais", apontou Menezes Leitão.

De acordo com o bastonário, não está prevista na lei "uma determinação de espaços para as arbitragens". Mas as "regras gerais da contratação pública implicam que os edifícios públicos sejam objeto de contratação adequada".

Luís Menezes Leitão defende que "a justiça pública e a justiça privada devem ser completamente separadas", frisando que o esclarecimento deste caso deve ser uma "grande prioridade".

Lembrando que a Associação Sindical do Juízes Portugueses já pediu que o Conselho Superior de Magistratura fizesse uma sindicância, Menezes Leitão sublinhou que agora "o Conselho Superior de Magistratura deveria mandar inspetores judiciais para averiguar o que se está a passar no Tribunal da Relação de Lisboa".

Luís Vaz das Neves foi constituído arguido por suspeitas de corrupção e abuso de poder, no âmbito da Operação Lex, processo em que se investigam também suspeitas de tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, de branqueamento e de fraude fiscal.

O juiz desembargador Rui Rangel, a sua ex-mulher e juíza Fátima Galante e o funcionário judicial Octávio Correia, todos da Relação de Lisboa, o advogado Santos Martins e o presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, estão também entre os arguidos.


Rita Carvalho Pereira com Paula Dias | TSF

*Subtítulo PG

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