Os colonizadores tentaram. Mas
seu projeto de pureza, razão, ordem e centralismo sucumbiu à potência da
natureza e da mestiçagem. Esta subversão histórica, e singular, deveria dizer
algo aos movimentos emancipatórios contemporâneos
Ricardo Cavalcanti-Schiel |
Outras Palavras | Imagem: Tarsila do Amaral, Batizado de
Macunaíma(1956)
Antes dos governos de Evo Morales
na Bolívia, sobretudo nas duas últimas décadas do século XX e no primeiro
lustro do século XXI, as organizações de base indígena do país (o que não deixa
de incluir, apesar das marcas históricas específicas, as organizações de
mineiros), quando queriam alçar seus protestos de modo mais contundente,
lançavam mão de um recurso tático de fato impressionante para a realidade dos
demais países latino-americanos: realizavam, por alguns dias (ou, no caso da
derrubada do governo neoliberal de Gonzalo Sánchez de Lozada em 2003, por
várias semanas), um “bloqueo general de caminos”: simplesmente fechavam todas
as estradas do país. E então a Bolívia se mostrava como realmente é: um esquálido
arquipélago de hispanidade em meio a um denso mar indígena. Para ir de uma
cidade a outra, só de avião. Claro que a Bolívia é um caso especial. Trata-se
do único país das Américas com população de maioria indígena (6,2 milhões,
representando 62,2% do total; seguido da Guatemala, com 41%) ― mesmo que a
maior população indígena se concentre no México (17 milhões). Mas talvez, por
isso mesmo, ela nos sugira uma aproximação genética a uma imagem ancestral da
conformação histórico-social do continente. Essa figura de cidades plantadas
como enclaves adventícios ― e pretensamente dominantes ― em um espaço de outra
natureza nos remete a uma elaboração interpretativa do crítico literário
uruguaio Ángel Rama.
Este, que foi um dos mais
intensos pensadores e agitadores culturais latino-americanos da segunda metade
do século XX, interlocutor próximo e constante de Antonio Candido em seu
“projeto latino-americano” comumi,
tragicamente falecido em um acidente de avião em Madri em 1983, junto com o
poeta e romancista peruano Manuel Scorza, partiu, assim como Candido, de uma
inspiração marxista genérica (a precedência lógica do contexto, e não do ator ―
ou, nesse caso, do autor literário), para sugerir uma interpretação estrutural
da produção cultural do subcontinente, em que a ênfase explicativa recai sobre
os processos antes que sobre os produtos. Nesse sentido, uma de suas
contribuições mais relevantes foi a de retomar, para o campo da produção
literária, a ferramenta conceitual proposta em 1940 pelo antropólogo cubano
Fernando Ortiz, em oposição à ideia norte-americana de “aculturação” (qual
seja, da mera “substituição” cultural, medida pelos produtos, ou, diria hoje
seu reloaded pós-moderno ― coisificador e utilitarista ―, pelos
“híbridos”). Ángel Rama e Fernando Ortiz assinalaram, como alternativa, um
processo sempre tenso, heteróclito e incompleto de apropriações de signos e
referentes ― que nem por isso instauram um novo, autonômico e determinante
sistema de significação ―; processo que valeria o apodo de “transculturação”.
A síntese de Rama (Transculturación
narrativa en América Latina), a partir de ensaios dispersos, foi publicada um
ano antes de sua morte. A essa edição seguiu-se, postumamente (em 1984), a
revisão das conferências dessa mesma época, intitulada La ciudad letrada (em
português: A
cidade das letras; São Paulo: Boitempo, 2015). É exatamente essa cidade
letrada (ou antes, talvez ― se acrescentarmos o regime excludente da
lógica do privilégio ―, essa cidadela) que parece traduzir em conceito
aquela imagem boliviana das cidades-enclave. No entanto ― e isso é o que aqui
se defende ―, esse termo capital da colonialidade precisa ser sopesado por
aquele outro, da “transculturação”.
Historicamente, a colonização
hispânica da América caracterizou-se como um processo de plantar centros
urbanos. Estes poderiam oscilar da função tática imediata de praça forte à
função institucional de sede administrativa. Na América hispânica a
consolidação da grande propriedade rural é sucedânea da irradiação da ordem e
da autoridade urbana. Em 1521 Alonso García Bravo projeta, por sobre as formas
monumentais da capital asteca Tenochtitlan, um plano ortogonal de arruamentos e
quadras para moradias e centros administrativos que viria a ser o núcleo da
atual cidade do México. Dois anos depois, o rei Carlos I (e primeiro dos
Áustrias) emite uma ordenança, determinando que, na América, as novas povoações
obedeceriam a uma planta regular, “a cordel y regla” (em linhas retas),
expandida a partir de uma praça central vazia, em torno da qual se assentariam
as instituições do poder, “dexando tanto compás abierto, que aunque la
población vaya en gran crecimiento, se pueda siempre proseguir y dilatar en la
misma forma”ii.
É o grande sonho inclusivo da Monarquia Católica: hierarquia, centralismo e
ordem.
A ideia de uma planta urbana
ortogonal, por oposição à organicidade topográfica e tortuosa da cidade
medieval, evoca tanto modelos clássicos da antiguidade romana, quanto as novas
cidades espanholas dos Reis Católicos do final do século XV, quanto, até mesmo,
os espaços cerimoniais das próprias cidades mesoamericanas. No entanto, a ideia
de um projeto prévio, medido e equilibrado enquanto desenho, é obra renascentista.
Cinquenta anos depois daquela primeira ordenança real, uma outra, de Felipe II,
será tão minuciosa que jamais viria a ser aplicada integralmente em cidade
alguma.
Em 1535, a fundação de Lima
inaugura o desenho da malha expansiva rigorosamente quadriculada ― na cidade do
México e em Puebla, as quadras ainda eram retangulares. A “traza en cuadrícula”
(posteriormente consagrada como “quadrícula espanhola”) era um modelo até então
desconhecido na Europa. Hoje para nós, é absolutamente familiar, a ponto de
reconhecê-lo como “natural” quando pensamos em cidades. Mesmo cidades limitadas
por muralhas, como São Domingos, Montevidéu, Trujillo e até mesmo a “irregular”
Cartagena de Índias, seguiriam o mesmo princípio estruturante. Para as novas
urbes hispano-americanas, a partir de então, o protocolo de autorização da sua
fundação incluía seu traçado prévio, seguindo aquele modelo regular, outorgado
diretamente pela Coroa.
O tipo ideal, evidentemente, não
tem estatuto de universalidade. E aqui já começam as “transculturações”. O
mesmo plano ortogonal de Alonso García Bravo para o Zócalo e seus arredores, na
cidade do México, sucumbia ao emaranhado indígena na sua imediata periferia. Ao
longo de toda a América hispânica, mesmo nos bairros de índios e nos povoados
reducionais (ou seja, aqueles em que os índios eram concentrados para ser
melhor evangelizados) estabelecidos em concordância com a “traza en cuadrícula”,
o valor simbólico dos espaços assumia, para seus ocupantes, a lógica indígena
das organizações dualistas e da sacralização cerimonial dos espaços abertosiii.
A razão planificadora e centralista do Renascimento parece encontrar, na
estranheza do Outro, o limite da sua presumida suficiência, ainda que,
aparentemente, ordene a “infraestrutura” da morfologia.
Em que pese a famosa distinção
interpretativa cunhada por Sérgio Buarque de Holanda no capítulo IV de Raízes
do Brasil entre semeadores e ladrilhadores, para caracterizar,
respectivamente, portugueses e espanhóis quanto ao estilo das suas empresas
coloniais, cabendo aos primeiros uma índole mais desorganizada (Sérgio Buarque
prefere mesmo a qualificação “desleixada”iv),
francamente não planificadora, Ángel Rama, de sua parte, insiste que o projeto
ibérico na América Latina expressa, como essência da colonialidade, o “sonho de
ordem” encarnado na abstração retilínea do plano urbano. Essa cidade
latino-americana seria, antes que tudo, um “parto da inteligência” (A cidade
das letras, 2015: p. 21) e não, como no mundo português de Sérgio Buarque,
resultado casual de um acordo prudente com a contingência.
Mais do que isso, a cidade
americana (também irônica e curiosamente categorizada, a partir da metrópole,
como cidade indiana) expressaria, dessa forma, para Rama a independência
da ordem dos signos, o primado do plano, do traçado da ordem manipulatória do
centralismo monárquico, de modo que Rama chega a sintetizar que, nessa
perspectiva, a ordem existe antes da cidade existir. Nessa quimera da razão e
do poder, as formas do signo e do discurso assumem uma função normativa. A
partir de então, a escritura e o tabelião passam a ser suas figuras culturais
chave. “Dar fé”, que corresponderia a trazer um fato da ordem do cogito para
a ordem da efetividade das relações, significava, antes de mais nada, registrar
em documento. Todo rito fundacional de lugar, território e propriedade era
regido pela fé dada na (e por meio da) palavra escrita. Tal tecnologia do
intelecto, elevada à condição de regente das coisas, ambicionará a condição de
perpetuidade:
“(…) o signo ostenta uma
perenidade que é alheia à duração da coisa. Enquanto o signo existe, está
assegurada sua própria permanência. (…) Fica consagrada a inalterabilidade do
universo dos signos, pois eles não estão submetidos ao decaimento físico, mas
somente à hermenêutica” (A cidade das letras: 28).
A cidade colonial (e seu
intrínseco aparato escriturário) se assentaria e se reproduziria, assim, sobre
um corpo de operadores que fazia funcionar aquele sonho de ordem que produziu,
na América, essa característica experiência burocrática, irmã siamesa do
exercício do poder. Tal poder, operado e mediado pelos artífices do logos (clérigos,
juristas, advogados, escrivães, cronistas, escreventes…), dispensados da
“servidão das circunstâncias” (:38), outorgará à cidade a condição tanto de
sede administrativa quanto de lugar da produção de discurso, ambos
entrelaçados, e de onde, por meio de ordenanças, cédulas e provisões, se
repartirão mercês e privilégios, já que conformado um “cordão umbilical
escriturário” (:53) com a sede metropolitana. Essa é a cidade letrada de
Ángel Rama, seus instrumentos e seus agentes. A partir daí, Rama lançará suas
explorações históricas sobre as especificidades da produção intelectual e
literária na América Latina. Cabe, no entanto, se perguntar se essa chave
dispositiva dá conta da ordem geral dos fenômenos ou se é preciso, como já foi
aventado, ponderar o Rama da cidade letrada com o Rama da transculturação.
Aqui nos afastamos mais
decididamente da terminologia do crítico uruguaio. Rama não faz muita distinção
entre as ideias político-administrativas dos dois primeiros Habsburgos (a casa
dos Áustrias, da Espanha) ― em especial no que viemos nos referindo como um
projeto renascentista ― e o ambiente intelectual que se consolidou na metrópole
e se espraiou com outras reverberações para a colônia a partir do período final
do “siglo de oro”, ou seja, a partir do reinado de Felipe III, que se iniciou
na virada do século XVI para o XVII. À diferença da terminologia que vínhamos
utilizando, para Rama o reconhecimento da cidade letrada leva a rubrica
genérica de “cidade barroca”. E aqui lançamos mão de outras interpretações
latino-americanas, exatamente para tratar de uma certa especificidade cultural,
mesmo que ela continue comportando as linhas mestras até agora insinuadas da
mentalidade da Monarquia Católica: o barroco.
Num dos seus polêmicos
vaticínios, o escritor e crítico cubano José Lezama Lima afirma que “depois do
Renascimento, a história da Espanha passa para a América, e o barroco americano
se ergue com superioridade” (“La curiosidad barroca”. In: La
expresión americana: 79-106. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.
100 ― o ensaio é, originalmente, de 1957). Para Lezama, o que primeiro propicia
esse protagonismo, constituído ao longo do século XVII, é a exuberância da
natureza americana e da sua diversidade, que, contrariamente ao ascetismo de
recursos da Península Ibérica, dispõe para o uso arquitetônico, mobiliário e
imagético uma pletora de materiais tanto quanto de referentes. Se o barroco
americano comporta um “impulso voltado para a forma, na busca da finalidade do
seu símbolo” (idem: 83), tal impulso será regido por uma tensão, na qual o
hispânico (ou, genericamente, o ibérico) tem de se confrontar com o nativo e
com o africano diaspórico, a quem cabem, mais intimamente, dar forma àqueles
materiais e lançar mão daqueles referentes. Mais que apenas escritural, a
cidade barroca se contaminará com uma profusão imagética.
Mesmo o estrito âmbito das letras
parece então se contagiar com um outro gesto, que, nesse caso, Lezama encontra
exemplarmente manifesto em El divino Narciso, de 1689, de Sor Juana Inés
de la Cruz, em que a irremediavelmente “mal resolvida” freira mexicana (verbi
gratia Octavio Paz e suas armadilhas da fé) justapõe o rito asteca de
Huitzilopochtli ao rito católico da comunhão. Nessa perspectiva, o barroco ―
designação a princípio pejorativa, e que só vai receber uma valoração positiva
no final do século XIX ― acaba sendo aquilo que distorce o equilíbrio ordenado
renascentista, para fazer caber dentro da forma a polissemia das misturas. Se a
aposta renascentista instaurara idealmente a independência da ordem dos signos,
o barroco irá inflacionar o signo com a desmesura abundante do significado.
Antes que uma estética do império do logos, ele expressará, para evocar o
título do ensaio de Lezama, uma “estética da curiosidade”, na qual o logos passa
a conviver com o mythos ― tanto o de uma mística católica quanto o
nativo.
Assim, por oposição ao barroco
europeu, caracterizado por Werner Weisbach (1921) como a arte da
Contrarreforma, o barroco americano será, na interpretação de Lezama, uma arte
da Contraconquista (:80). Estamos aqui, plenamente, no horizonte da
transculturação. Mesmo que Lezama pareça sucumbir a uma tentação senhorial,
análoga àquela de ver o mundo a partir da cidadela letrada, quando atribui ao “senhor
barroco” (“detentor de suas riquezas” ― :81) a condição de figura referencial
(quase que sujeito sociológico) dessa nova sensibilidade, a capacidade de ação
desse “senhor barroco” já parece, desde o princípio, limitada pela contingência
de se ver em um mundo onde acaba sendo impossível impor alguma univocidade,
pelo simples império daquela abundância semânticav.
Assim, até mesmo o espanhol Luís de Góngora, “senhor barroco arquetípico”
(:90), encontraria no poeta colombiano Hernando Domínguez Camargo, seguidor do
cânone gongoriano, “um excesso ainda mais excessivo” (:87).
A “tensão barroca” é aquela que
se conforma, então, sob o signo da mestiçagem, tendo-se em conta que
“mestiçagem” aqui é o nome da relação, e não o nome da coisa. Para outro
cubano, Alejo Carpentier que, à diferença de Lezama, preferia inspirar-se no
catalão Eugeni d’Ors (1930) para defender que o barroco seria não um estilo,
mas uma “constante humana” (“O barroco e o real maravilhoso”. In: A
literatura do maravilhoso: 109-129. São Paulo: Vértice, 1987, p. 114), é a
proposição anterior ao revés que assinala o termo do universal: “toda simbiose,
toda mestiçagem, engendra um barroquismo” (idem: 121). Citemos Serge Gruzinski,
ao reportar-se ao caso mexicano, para ilustrar a mestiçagem sob a clave da
relação, e não da coisa:
“Os índios tratavam as novas
imagens da mesma forma que as estátuas e as pinturas pré-hispânicas. O olhar
que dirigiam aos cristos, madonas e santos refletia um modo de ver solidamente
enraizado havia séculos, e até mesmo milênios” (O pensamento mestiço. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 293).
O barroco latino-americano será,
por excelência, o campo de exercício da expressão plástica, musical e
arquitetônica em que sobretudo os mestres e artífices, gente, portanto, à
margem da estrita cúpula da cidade letrada, ingressam para produzir um
artesanato e um discurso voluptuoso, sensual, ambíguo e retorcido. É o espaço
de mulatos e aleijadinhos, de índios ladinos como o cronista aymara
Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui Salcamaygua e o cronista quéchua Felipe
Guamán Poma de Ayala, dos indígenas mestres pintores das escolas cusquenha,
quitenha e potosina. O barroco é, antes que tudo, o espaço de indeterminação
aberto pela mestiçagem, é o que subverte a própria ideia espanhola de “casta”,
assentada sobre a “pureza de sangre”, para transformá-la em possibilidade
combinatória aberta, como o expressam as pinturas mexicanas de castas que, a
partir da segunda década do século XVIII, retratam, cada vez mais
numerosamente, as muitas mestiçagens familiares das gentes. Em lugar do “castizo”
espanhol, que se remete à marcação da origem, abundam agora as muitas “castas”,
que instauram novas “origens”, tanto quanto, por sua própria inflação, as
borram. O sonho de pureza só persistirá como cavalo de batalha simbólico para
os que pretendem, obstinadamente, fazer valer, a seu modo (qual seja, em modo
senhorial ― ou como seu simulacro), a lógica do privilégio. Em lugar da pureza
identitária, nuestra América prova então a proliferação relacional
dos entrecruzamentos, onde se conjugam tanto tensão quanto abertura.
Nesse mundo americano, as
misturas são irremediavelmente frágeis e instáveis, mas ainda assim ― e isso
talvez seja o mais relevante ―, incontroláveis por parte de uma razão
soberanamente ordenadora, responda ela pelo nome de “dominação” (colonial) ou
mesmo pelo nome de “identidade”. Esse é o espaço dinâmico da transculturação.
Nesse mundo, só uma mistura supera outra mistura. E isso, como consequência,
não garante a imposição do controle de uma significação unívoca, tanto quanto a
validade inequívoca de um cânone: o misturado (ou o heterogêneo, para
falar em termos mais precisos, como o defendeu o crítico peruano Antonio
Cornejo Polar) não produz “tradição” ― “tradição” no sentido da autoridade do
cânone. A única “tradição” que resta é a própria mistura reiterada como tal,
como processo, e não como coisa. Mais uma vez Serge Gruzinski:
“As mestiçagens manobram, na
verdade, com tal número de variáveis, que confundem o jogo habitual dos poderes
e das tradições, (…) escapolem das mãos do historiador que as persegue ou são
menosprezadas pelo antropólogo amante de arcaísmos” (:304).
O barroco, como metáfora da
complexidade latino-americana, é, portanto, aquilo que subverte, diante do
sonho de ordem da cidade letrada, tanto a suposição de uma dominação categórica
quanto a racionalidade colonial das purezas, das marcas de origem e da
identidade como atributo fundador da socialidade. Ao defrontar-se (antes que
tão apenas confrontar-se) com a alteridade, seu espírito é inflectido pela
relacionalidade e pela indeterminação do devir, olhando-se então no espelho
daquele princípio regente da socialidade ameríndia que Lévi-Strauss
caracterizara como o da “abertura ao outro” (História de lince. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993), para conformar o que Lezama chamara de
“protoplasma incorporativo do americano” (“Sumas críticas del americano”. In: La
expresión americana: 157-182, p. 177), e que, mais recentemente, Arturo
Escobar, um analista do Projeto Modernidade-Colonialidade-Decolonialidade,
adjudicaria ao contexto das nossas (por que não?) ontologias relacionais (Territories
of difference: place, movements, life, redes. Durham: Duke University Press,
2008), aquelas que têm como horizonte estratégico ver-se diante de outros, e
não apenas diante de um si-mesmo. Relações, e não identidades.
A experiência decolonial de fato
potencialmente subversiva na América Latina não é a experiência da emancipação
do indivíduo, sob o pretexto de alguma pureza identitária e isolacionista do self (ou
de um “étnico” transcrito como utilidade agregada ao ego individual liberal),
mas a experiência muitas vezes imponderável do encontro e da mistura dos
muitos. Claro, ela pode, ainda assim, pretender ser ordenada pelo código
ibérico ― e igualmente inclusivo, como já nos sugeria Richard Morse ― da
hierarquia e do privilégio. Mas pode também se insinuar sob o compromisso da
solidariedade, de estar em relação, e a partir daí sugerir outra ordem para
além da lógica do privilégio e das tenazes da hierarquia. É essa insinuação que
abre caminho para uma utopia civilizacional ainda apenas esboçada, e que hoje
parece repousar em silêncio, aguardando quem lhe retome os fios soltos de uma
história não terminada, mas potente como grande impulso cultural.
A história latino-americana não
começa naquele sonho de ordem, naquele fiat de descobrimentos e
conquistadores. Se ela já estava antes ― não, necessariamente, como
“consciência histórica” (no sentido que lhe precisou Hans-Georg Gadamer) para
seus próprios povos originários ―, ela seguirá efetivamente seu curso no
depois, para além dos sonhos de pureza, e já no transe dos encontros
desencontrados. Recusar tal reconhecimento, em nome das grandes razões
ordenadoras (sejam positivistas, sejam liberais-utilitárias), pode ser não mais
que insistir num sonho um tanto distante das contingências.
—
* O presente texto foi
preparado como base para uma aula ministrada na 11ª Escola de Verão do
Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA), da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, em 14 de janeiro de 2020. Título original: “Revisitando a
Cidade Letrada: do sonho de ordem à subversão das misturas”.
Notas:
i Veja-se
o elucidativo Prólogo de Pablo Rocca para o volume da correspondência entre
Rama e Candido: Conversa Cortada. A correspondência entre Antonio Candido e
Ángel Rama. O esboço de um projeto latino-americano. 1960-1983 (Rio de Janeiro/
São Paulo: Ouro sobre Azul/ EdUSP, 2018).
ii Recopilación
de Leyes de los Reynos de las Indias, Libro Cuarto, Título Séptimo, Ley
Primera. México D. F.: Escuela Libre de Derecho / Miguel Ángel Porrúa Librero
Editor, 1987. Edição fac-similar do original de 1681.
iii Veja-se
a esse propósito: Gutiérrez, Ramón (ed.). 1993. Pueblos de indios. Otro
urbanismo en la región andina. Quito: Abya-Yala.
iv “A
cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não
chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da
paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse
significativo abandono que exprime a palavra ‘desleixo’” (Raízes do Brasil; Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 20ª edição, 1988, p. 76).
v “En
el medio de esa naturaleza que se regala, de esa absorción del bosque por la
contenciosa piedra, de esa naturaleza que parece rebelarse y volver por sus
fueros, el señor barroco quisiera poner un poco de orden pero sin rechazo, una
imposible victoria donde todos los vencidos pudieran mantener las exigencias de
su orgullo y de su despilfarro” (“La curiosidad barroca”. In: La
expresión americana: 79-106. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.
83). Nossa tradução: “No meio daquela natureza deleitosa, daquela absorção da
floresta pela pedra recalcitrante, daquela natureza que parece se rebelar e
retornar aos seus privilégios, o senhor barroco gostaria de pôr um pouco de ordem,
mas sem opor resistência: uma vitória impossível onde todos os derrotados
poderiam manter as exigências do seu orgulho e do seu desperdício”.
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