Vale tudo, para que ele não
dispute a Casa Branca. Acusá-lo de “agente russo”, de “antissemita” ou
apontá-lo como contrário ao identitarismo. Nas eleições nos EUA, o
establishment só não aceita que se debatam opções políticas
Jonathan Cook | Outras
Palavras | Tradução: Simone Paz
A corrida pela nomeação
presidencial democrata representa um fascinante estudo de caso para ver como o
poder funciona — principalmente, porque os líderes do Partido Democrata agiram,
claramente, para impor Joe Biden como candidato do partido, mesmo após ficar
claro que ele não está mais apto mentalmente nem para administrar um clubinho
local de ping-pong, muito menos a nação mais poderosa do mundo.
A campanha de Biden nos lembra de
que o poder é indivisível. Donald Trump ou Joe Biden para presidente — dá na
mesma para o establishment. Um egomaníaco infantil representando os
bilionários (Trump), ou um ancião com rápida degeneração neurológica
representando os bilionários (Biden), são igualmente úteis ao poder. Uma mulher
também, ou um negro. O establishment não se preocupa mais com quem
está no palco — desde que essa pessoa não seja gente como Bernie Sanders nos
EUA ou Jeremy Corbyn no Reino Unido.
Não importa mais quem é o
candidato — por mais doloroso que isso soe para alguns, nestes tempos em que
tanto falamos de identidade. É sobre o que o candidato pode fazer uma vez no
cargo. Na verdade, o fato de hoje em dia podermos nos concentrar na identidade
do conteúdo de nosso coração, deveria ser um aviso suficiente de que o
establishment se concentra em esgotar nossas energias na promoção de divisões
com base nessas identidades.
Nem Biden nem Trump serão
empecilhos para o establishment, porque eles estão bem no centro dele. As
lideranças republicanas e democratas estão ali para garantir que, antes de que
um candidato seja eleito para concorrer em nome do partido, ela ou ele já
provou que é amigável com o Poder. Dois candidatos, cada um deles cotados por
sua obediência ao poder.
Embora um rosto bonito ou ser bom
de discurso sejam características desejáveis, incapacidade e incompetência não
configuram barreiras para se classificar, como estes dois homens brancos,
preparados pelos seus respectivos partidos, demonstram. Ambos provaram que irão
favorecer o sistema, ambos perseguirão políticas
bem semelhantes, ambos possuem um compromisso com o status quo e
ambos demonstraram sua indiferença em relação ao futuro da vida na Terra. A
única coisa que separa os dois não é o conteúdo, mas a forma de apresentá-lo —
a criação da ilusão de diferença e de escolha.
Policiando o debate
É interessante reparar em como as
dinâmicas sutis da corrida para as nomeações democratas vêm sendo manipuladas.
São especialmente reveladoras as maneiras pelas quais a liderança democrata
protege o poder do establishment, policiando os termos do debate: o que pode ser
dito e o que pode ser pensado; quem fala e quais vozes são deturpadas ou
demonizadas. A manipulação da linguagem é fundamental.
Como indiquei no meu último
texto, o poder do establishment deriva de sua invisibilidade. O debate
aberto é a criptonita do poder.
A única maneira de interrogar o
poder é por meio da linguagem, e a única maneira de comunicar nossas conclusões
aos outros é através de palavras — como estou fazendo agora. Portanto, nossa
força — e nossa capacidade de despertar do transe do poder — deve ser
subvertida pelo establishment, transformando-a em nosso calcanhar de Aquiles,
em fraqueza.
O tratamento que Bernie Sanders e
seus apoiadores recebem do establishment democrata — e daqueles que repetem
ansiosamente os argumentos do partido — ilustra claramente como isso pode ser
feito de várias maneiras.
Lembremos que tudo começou em
2016, quando Sanders cometeu o terrível pecado de desafiar o direito da
liderança democrata de escolher Hillary Clinton como candidata à presidência do
partido. Naqueles dias, a linha de falha era óbvia e clara: Bernie era um
homem; Hillary, uma mulher. Ela seria a primeira mulher presidente. Os únicos
membros do partido que desejariam negar a Hillary aquele momento histórico — e
apoiar Sanders — deveriam ser homens misóginos. Supostamente, eles manifestavam
seu ódio às mulheres, posicionando-se contra Hillary, que, por sua vez, foi
apresentada às mulheres como um símbolo da resistência à opressão dos homens.
Assim nasceu um meme: “Clubinho
do Bernie”; o qual rapidamente se tornou uma abreviação para sugerir — apesar
de todas as evidências que
provavam o contrário — que a candidatura de Sanders atraía principalmente
homens brancos irritados. De fato, como a corrida de Sanders para 2020 tem
demonstrado, o apoio a ele foi mais diversificado do que para muitos outros
candidatos democratas que procuraram a indicação.
O artificialismo da disputa de
identidades de 2016 teria ficado claro se tivessem deixado alguém explicar esse
fato. Na verdade, não se tratava da liderança democrata respeitar a identidade
de Hillary como mulher. O que pesava era o fato de elogiarem sua identidade
como mulher, ao mesmo tempo em que a promoviam porque era uma excelente provocadora
de guerras e funcionária
de Wall Street. Ela era útil ao poder.
Se o debate tivesse sido
conduzido realmente pelas identidades políticas, Sanders também tinha uma carta
poderosa: ele é judeu. Poderia ter sido o primeiro presidente judeu dos EUA. Em
uma luta de identidades justa, teria dado empate entre os dois. A decisão sobre
quem deveria representar o Partido Democrata teria que ser baseada em
políticas, não em identidade. Mas os líderes do partido não queriam que as
políticas reais de Clinton, ou sua história política, fossem colocadas sob o
microscópio por razões muito óbvias.
Manipulação da identidade
A manipulação da política de
identidade ficou ainda mais claro em 2020. Sanders ainda é judeu, mas seu
principal oponente, Joe Biden, é um homem branco privilegiado mesmo. Se o
formato Hillary fosse seguido novamente pelos chefes democratas, Sanders
desfrutaria de um trunfo da política de identidade. E, no entanto, Sanders ele
foi apresentado como apenas mais
um candidato branco, não diferente de Biden.
(Poderíamos levar esse argumento
ainda mais longe e observar que o outro candidato que ninguém, muito menos a
liderança democrata, mencionou foi Tulsi Gabbard, uma mulher negra. O Partido
Democrata trabalhou muito para torná-la o mais invisível possível nas
primárias, porque, dentre todos os candidatos, ela é a oponente mais forte e
articulada contra as guerras estrangeiras. Isso a privou da chance de arrecadar
fundos e conquistar delegados.)
A identidade judaica de Sanders
não ganha muito destaque, simplesmente, porque ele não é útil ao poder do
sistema. O que mais interessa ao establishment — e que deveria nos importar
também — são suas políticas. Estas, por sua vez, podem limitar o poder do
sistema de travar novas guerras, de explorar trabalhadores e de destruir o
planeta.
Como se não bastasse, os líderes
do Partido Democrata não só ignoram a identidade judaica de Sanders, como
também voltaram a usar a política de identidade contra ele de diversas
maneiras.
O establishment “negro”?
Os apoiadores de Bernie Sanders
reclamam por muito tempo – com base em evidências crescentes – que o Partido
Democrata está longe de ser neutro entre Sanders e Biden. Por ter interesse no
resultado e por fazer parte do poder, o Comitê Nacional Democrata (DNC, na
sigla em inglês) exerce sua influência em favor de Biden. E como o poder
prefere a escuridão, o DNC está fazendo o possível para exercer esse poder nos
bastidores, fora de vista — pelo menos, invisível para aqueles que ainda
confiam na mídia corporativa “convencional”, que também faz parte do
establishment. Como deveria ficar claro para quem está observando, os
procedimentos de nomeação estão sendo controlados para dar a Biden todas as
vantagens e para obstruir Sanders.
Mas a liderança democrata não só
descarta de imediato essas bem justificadas queixas dos apoiadores de Bernie
Sanders, como também utiliza essas queixas contra eles, como mais uma prova da
ilegitimidade deles e de Sanders. Uma nova maneira de fazer isso surgiu logo
após Biden vencer na Carolina do Sul, apoiado por um forte grupo de eleitores
negros mais velhos — a primeira vitória estadual de Biden, que serviu como
impulso para sua aparição no Super Tuesday alguns dias depois.
A melhor expressão disso foi o
tuíte de Symone Sanders, que, apesar do sobrenome, é uma consultora sênior da
campanha de Biden. Ela também é negra. Eis o que ela escreveu: “Aqueles que
continuam se referindo aos eleitores negros como ‘o establishment’ são surdos
e, obviamente, não entenderam nada”.
A referência genérica a
“aqueles”, foi entendida precisamente como um código para lembrar do “Clubinho
do Bernie”. Agora, parece que os apoiadores do Bernie Sanders não são só
misóginos, mas potenciais recrutadores da Ku Klux Klan.
O tuíte viralizou. E, apesar das
ferozes contestações nos comentários abaixo, ninguém conseguiu produzir um
único exemplo de alguém realmente dizendo algo como o sentimento atribuído por
Symone Sanders ao “Clubinho do Bernie”. Combater o fanatismo não era o objetivo
real dela. Ela não fez o comentário com a intenção de que os apoiadores de
Bernie refletissem de forma profunda sobre a questão negra. Foi uma manipulação
de alto nível, feita por uma funcionária de alto escalão do Partido Democrata,
aos próprios eleitores do partido.
A sobrevivência da maior mancha
O que Symone Sanders realmente
tentou fazer foi passar pano para o poder — esconder o fato de o DNC estar
tentando impor seu candidato escolhido aos membros do partido. Como ocorreu
durante o confronto entre mulheres e homens confusos, Hillary x “Bernie Bros”,
Symone Sanders estava testando em campo uma ferramenta de gerenciamento de
narrativa semelhante, como parte dos esforços do establishment em aperfeiçoá-la
para obter um efeito aprimorado. O establishment aprendeu — através de uma espécie
de “sobrevivência da maior mancha” — que a política de identidade de dividir e
governar é a maneira perfeita de proteger sua influência, enquanto favorece um
candidato do status quo (Biden ou Hillary) sobre um candidato visto
como um ameaça ao seu poder (Sanders).
Em seu tuíte, Symone Sanders
mostrou exatamente como a elite do poder procura ocultar seu papel tóxico em
nossas sociedades. Ela confundiu ordenadamente “o establishment” — do qual ela
é um componente muito pequeno, mas bem pago — com “eleitores negros” comuns. A
mensagem dela é a seguinte: se você tentar criticar o establishment (que tem um
poder excessivo para danificar vidas e destruir o planeta), nós o
demonizaremos, fazendo parecer que você está realmente atacando pessoas negras
(que na grande maioria dos casos — embora Symone Sanders seja uma exceção
notável — não exerce nenhum poder).
Symone Sanders recrutou sua
própria negritude e os “eleitores negros” da Carolina do Sul para serem um
escudo humano de proteção ao establishment. Cinicamente, ela transformou os
negros pobres, bem como as dezenas de milhares de pessoas (presumivelmente
negras e brancas) que gostaram de seu tuíte, em um exército de defesa do
sistema.
Colocado desse jeito, parece
muito mais feio. Mas, rapidamente virou um dos pontos cruciais das falas de
Biden, como ocorreu no dia 4 de março, quando declarou: “O establishment são os
trabalhadores, as pessoas de classe média, os afro-americanos… eles são o
establishment!”
A estratégia mais ampla do DNC é
conferir a Biden direitos exclusivos de falar pelos eleitores negros (apesar de
seu infeliz histórico em
questões de direitos
civis) e, além disso, despojar Sanders e seus conselheiros negros de
qualquer direito de fazê-lo. Quando Sanders protesta a respeito disso, ou do
comportamento racista do campo de Biden, os apoiadores de Biden aparecem,
geralmente, de forma agressiva, embora, é claro, ninguém os esteja censurando
por sua linguagem dura e violenta.
Grosseiro com bilionários
Esse tipo de defesa especial, do
sistema para o sistema — utilizando o exemplo da Symone Sanders, que evidencia
o zeitgeist da política de identidade — é muito mais comum do que
podemos imaginar. A abordagem é constantemente refinada, geralmente usando as
mídias sociais como o grupo objetivo final. A fusão bem-sucedida de Symone
Sanders do “establishment” com “eleitores negros” segue-se aos esforços
anteriores e desajeitados do sistema, que se mostraram muito menos eficazes
para proteger seus interesses contra Sanders.
Lembre-se de como, no outono
passado, a mídia corporativa tentou nos dizer que era cruel criticar
os bilionários (comumente, donos dessa mesma grande mídia), porque
eles também tinham sentimentos e que ao falar duramente sobre eles, estaríamos
“desumanizando-os”. Mais uma vez, o recado foi dirigido a Sanders, que acabara
de comentar que, em um mundo que funcionasse corretamente, não existiriam
bilionários. O raciocínio de Bernie era óbvio: permitir que um punhado de
pessoas controle quase toda a riqueza do planeta, não priva só o restante de
nós (e prejudica o planeta), mas também dá a esses poucos bilionários poder
demais. Eles poderiam comprar toda a mídia, nossos canais de comunicação e a
maioria dos políticos para cercar seus interesses financeiros, corroendo
gradualmente até as mais mínimas proteções democráticas.
Essa campanha teve uma morte
rápida, porque poucos de nós sofremos lavagem cerebral a ponto de aceitar a ideia
de que um punhado de bilionários precisaria ser protegido — de nós! Muitos
ainda estamos bem ligados no mundo real e compreendemos que os bilionários são
mais do que capazes de cuidar de seus próprios interesses, sem a necessidade de
nossa ajuda por meio de um voto de silêncio auto imposto.
Mas não se pode culpar o
establishment por ser sempre inventivo ao buscar novas formas de reprimir
nossas críticas sobre a maneira como ele exerce seu poder unilateralmente. A
corrida pela nomeação democrata está testando essa ingenuidade até o limite.
Aqui está uma nova regra contra a “conduta odiosa” no Twitter, onde o déficit
neurológico de Biden vem sendo submetido a um escrutínio muito crítico por meio
do compartilhamento de dezenas de vídeos de
seus “momentos senis mais embaraçosos”.
Sim, deficiência e idade também
são identidades. E assim, sob o pretexto de proteger e respeitar essas
identidades, agora, as mídias sociais de qualquer pessoa ou veículo que tente
destacar as deficiências mentais de um idoso que em breve, poderá passar a
receber os códigos nucleares e será o responsável por travar guerras em nome
dos norte-americanos, poderão ser eliminadas. O Twitter está cheio de
comentários denunciando qualquer pessoa que tente chamar a atenção para o fato
da liderança democrata estar impondo Biden ao partido, apesar de suas
dificuldades cognitivas.
“Ativos” e “agentes” russos
Nada disso deve ignorar o fato de
que outra variação da política de identidade foi armada contra Sanders: a de
deixar de ser um patriota “americano”. Mais uma vez ilustrando quão
estreitamente os interesses das lideranças democrata e republicana se alinham,
a questão de quem é patriota — e quem está realmente trabalhando para os
“russos” — esteve no centro das campanhas de ambos os partidos, embora por
razões diferentes.
Trump foi submetido a inúmeras
alegações, sem evidências, de que ele seria um “agente russo” secreto, em um
esforço conjunto para controlar seus impulsos originais isolacionistas na
política externa, que poderiam ter tirado do establishment — e de sua ala
industrial militar — o direito de travar guerras de agressão e reavivar a
Guerra Fria, onde achassem que poderiam ser obtidos lucros, sob o disfarce de
“ajuda humanitária”. Trump se inoculou contra essas críticas, em parte, entre
seus apoiadores, graças ao slogan “Make America Great Again”, e em parte
aprendendo — dolorosamente para um egoísta — que seu papel presidencial era só
o de carimbar decisões tomadas em outros lugares, sobre as guerras a serem
travadas e sobre como projetar o poder dos EUA.
Bernie Sanders já enfrentou
tentativas similares do sistema em desprestigiá-lo, incluindo a última
candidata presidencial do DNC, Hillary Clinton — naquele tempo, chamando-o de
“ativo russo”. (“Ativo” no sentido de sugerir um conluio entre ele e o Kremlin,
baseado em evidências ainda mais frágeis do que o necessário para acusar alguém
de ser um agente). Num mundo em que a política de identidade não fosse
simplesmente uma ferramenta armada pelo establishment, haveria uma real
apreensão ao se envolver nesse tipo de injúria contra um socialista judeu.
Uma das armas anti semitas
preferidas da extrema-direita — e que existe há mais de 100 anos, promovida
desde a publicação dos Protocolos dos Sábios de Sião — é a de que os
bolcheviques judeus estariam envolvidos numa conspiração
internacional para subverter os países que habitam. Hoje, chegamos ao
ponto em que a mídia corporativa fica feliz em reciclar reivindicações sem
evidências, citadas pelo Washington Post, de “funcionários dos EUA”
anônimos e agências de inteligência dos EUA, reinventando uma versão dos
Protocolos, só que contra Sanders nos EUA. E essas difamações não suscitaram
uma palavra de crítica sequer por parte da liderança democrata, nem dos fiscais
de antissemitismo habituais que estão sempre prontos para atacar aos menores
sinais do que eles afirmam ser anti-semitismo de esquerda.
Mas a urgência de lidar com
Sanders pode ser a razão pela qual as convenções normais foram descartadas.
Sanders não é um egoísta desbocado como Trump. Votar em Trump é votar no
establishment, ou votar em seu teatro de ser contra o establishment. Trump foi
fortemente domado a tempo para um segundo mandato. Por outro lado, Sanders,
como Corbyn no Reino Unido, é mais perigoso porque ele pode resistir aos
esforços que tentam domesticá-lo e porque se lhe for permitida qualquer medida
significativa de sucesso político — como se tornar um candidato a presidente —
pode inspirar outras pessoas a seguirem seus passos. O sistema pode começar a
nos vomitar mais figuras estranhas e novas Ilhan Omars.
Então, agora, Sanders está sendo
tachado de “fantoche do Kremlin”, assim como fizeram com Trump, acusando-o de
não um verdadeiro americano. Como ele cometeu o grave erro de contestar o
“Russiagate” quando ele foi usado contra Trump, Sanders agora tem pouca
credibilidade, num momento em que as acusações foram recicladas e reutilizadas
contra ele. E, dado que, pelos padrões empobrecidos de cultura política dos
EUA, ele é considerado de extrema esquerda, foi fácil confundir seu socialismo
democrático com o comunismo e depois confundir seu suposto comunismo com a
atuação em nome do Kremlin (que, é claro, ignora o fato da Rússia ter
abandonado o comunismo há muito tempo).
Manchas de antissemitismo prontas
Existe mais um uso da política de
identidade como arma que o establishment democrata adoraria usar contra
Sanders, se eles precisarem e puderem se safar. É a marca mais tóxica – e,
portanto, a mais eficaz – do desprestígio baseado em identidade, e foi
extensivamente testada em campo no Reino Unido contra Jeremy Corbyn, com grande
sucesso. O DNC gostaria de denunciar Sanders como um antissemita.
Efetivamente, apenas um fator os
deteve até agora: o fato de Sanders ser judeu. Isso pode não ser um obstáculo
insuperável, mas dificulta muito a credibilidade da acusação. As outras
difamações baseadas em identidade compõem o segundo melhor ligar, uma coisa
temporária até encontrar uma maneira de desencadear a mancha de antissemitismo.
O establishment já vem testando
o terreno com acusações implícitas de antissemitismo contra Sanders há
um tempo, mas suas chances foram aumentadas recentemente quando Sanders se
recusou a participar do encontro anual da AIPAC, o Comitê de Assuntos Públicos
de Israel nos EUA, um proeminente grupo de lobby cuja missão principal é
defender Israel das críticas nos EUA. Tanto o establishment republicano quanto
o democrata frequentam fortemente a conferência da AIPAC e, em anos anteriores,
o evento contou com discursos de Barack Obama e Hillary Clinton.
Mas Sanders recusou-se a
comparecer por décadas e manteve essa postura este mês, mesmo sendo candidato à
indicação democrata. No último debate das primárias, Sanders justificou sua
decisão chamando (justificadamente)
o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, de “racista” e descrevendo a
AIPAC como uma plataforma “para líderes que expressam fanatismo e se opõem aos
direitos básicos dos palestinos”.
O vice-presidente de Trump, Mike
Pence, replicou que
Sanders apoiava os “inimigos de Israel” e que, se eleito, seria “o presidente
mais anti-Israel na história dessa nação” — tudo isso para sugerir
implicitamente que Sanders seria antissemita.
Mas, ainda assim, aquele é Mike
Pence. Críticas piores vieram do bilionário Mike Bloomberg, que é judeu e que
até há pouco pagava de democrata para tentar ganhar a indicação do partido.
Bloomberg acusou Sanders de usar linguagem desumanizadora contra um monte de
identidades inclusivas que ele sugeriu — mas que é bem pouco provável que seja
verdade — que a AIPAC representa. Ele alegou:
“Esta é uma reunião de 20 mil
apoiadores de Israel de todas as denominações religiosas, etnias, fés, cores,
identidades sexuais e partidos políticos. Chamar isso de plataforma racista é
uma tentativa de desacreditar essas vozes, intimidar as pessoas de virem para
cá e enfraquecer a relação EUA-Israel.”
Para onde isso aponta? Na
conferência da AIPAC de semana passada, recebemos um aperitivo. Ephraim Mirvis,
o principal rabino do Reino Unido e amigo do líder conservador Boris Johnson,
foi calorosamente recebido pelos delegados, incluindo os principais membros do
establishment democrata. Ele se gabou de que ele e outros líderes judeus no
Reino Unido haviam conseguido prejudicar as chances eleitorais de Jeremy
Corbyn, sugerindo que ele era um antissemita por seu apoio aos direitos
palestinos (assim como Sanders).
O tratamento que deu a Corbyn,
ele argumentou, conseguiu oferecer um modelo para as organizações judaicas dos
EUA se replicarem contra qualquer candidato à liderança que possa causar
problemas semelhantes para Israel, deixando para o seu público captar a quase
explícita dica sobre quem precisaria ter sua reputação destruída.
O manual de establishment
Para qualquer um que queira enxergar,
os últimos meses expuseram o manual do establishment: ele usará a política de
identidade para dividir aqueles que, de outra forma, poderiam encontrar uma voz
unida e uma causa comum.
Tudo bem celebrar a identidade de
alguém, especialmente quando ela é ameaçada, difamada ou marginalizada. Mas
apegar-se a uma identidade não é desculpa para permitir que ela seja cooptada
por bilionários, pelos poderosos, por Estados com armas nucleares que oprimem
outras pessoas, por partidos políticos ou pela mídia corporativa, para que
possam armá-la com a intenção de impedir que fracos, pobres e marginalizados
sejam representados.
É hora de acordar para os
truques, decepções e manipulações dos poderosos que exploram nossas fraquezas —
e que nos tornam ainda mais vulneráveis. Já chega de sermos ingênuos perante o
establishment.
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