segunda-feira, 16 de março de 2020

Portugal | Costa devia ouvir Costa a ser líder


Ferreira Fernandes | Diário de Notícias | opinião

Costa tem defeitos? Olá, se tem! Perdoo-lhe isso porque a certos níveis ele exige qualidade. Deixou Fernando Medina como sucessor na Câmara de Lisboa, um bom moderado, e não impediu que um bom truculento, o ministro Pedro Nuno Santos, deixe crescer os dentes no Governo - a esse nível, António Costa aceita jacarés, valha-nos isso. Infelizmente, nos jornalistas, por exemplo, tem tendência para apaparicar lagartixas.

António Costa é um prático, o que é na política um defeito útil. Defeito - porque se houver (e há) um interesse nacional em construir um Museu dos Descobrimentos, por exemplo, ele há de se desinteressar, já que a denominação controversa causaria problemazitos com potenciais aliados à esquerda. Útil - porque se o país acordar numa noite de legislativas, a de 2015, por exemplo, com a direita em soma insuficiente e o PS minoritário (noite de crise política irremediável, parecia), ele tira da cartola uma legislatura inteira e ganhadora. O truque? O ir buscar alianças que não se supunham e o ganhar aliados pensados fora da caixa. Um simples "Jerónimo de Sousa, posso ir à sua sede?" e mais outro "Catarina Martins, eu vou ter consigo...", e ficou resolvido. Soluções fáceis como o ovo de Colombo. Mas que só são encontradas pelos raros que são práticos.

António Costa é um combinador exímio, o que na política significa saber acordar, ajuntar, pactuar... Um elogio maior, num país muito sujeito a chicanas e ruturas espúrias. No balanço positivo, não me esqueço do tandem que ele fez com Marcelo, quando se juntaram os dois parceiros adeptos da água na fervura, tão necessária no nosso passado recente.


Se em tempos não perigosos prefiro quem me fale como Bernie Sanders, e me faça sonhar que a estupidez não é inevitável, em tempos perigosos, de pandemias de coronatrump, bolsonaro-19 e do propriamente dito covid-19, basta-me quem me garanta ser líder político. Dos cientistas, espero o antivírus; do líder político, espero que saiba levar-nos ao bom porto possível.

No discurso de António Costa de domingo foi flagrante a sua intenção de nos falar como falou a Jerónimo na sede do PC e a Catarina na Rua da Palma. Preciso de vocês, porque os portugueses precisam de vocês - disse ele aos portugueses. Há cinco anos foi exatamente assim que se fez o sucesso da geringonça. No domingo, com a mesma habilidade de acordar, ajuntar e pactuar - os portugueses com os interesses dos portugueses - ele usou connosco todos seus dotes de combinador.

Explicou como com Espanha ele conciliou - as fronteiras são assunto comum (e deu-nos uma lição de como os outros países são companheiros do mesmo drama, não inimigos) - mas foi intransigente com a data da Páscoa, porque os turistas espanhóis não podem ser um problema suplementar. Explicou como a declaração de emergência nacional não é um instrumento grátis, corta liberdades. E se for necessário cortar o direito de circular, outros direitos são intocáveis, o de expressão, por exemplo (e aqui insistiu e insistiu...) Explicou que se o Presidente decidir a emergência, estado de emergência haverá, porque o direito é para ser obedecido. Envolveu a atitude cidadã de cumprir as decisões nacionais como parte necessária da solução - e elogiou-nos, elogiou-nos, elogiou-nos, porque é a função dos chefes nas crises: conquistar-nos a vontade.

No domingo, António Costa foi um combinador connosco. É maneira de ser dele e faz isso como ninguém. Já fez isso com um pantomineiro que num dia de greve usou os três filhos levando-os para a residência do primeiro-ministro num acordo de dois oportunistas - usual no pantomineiro, que fazia pela vida e pôs o espetáculo degradante ao peito, mas indesculpável num primeiro-ministro. Agora, da sua habilidade de conciliar António Costa fez uma arma para cumprir a sua função de líder nacional que lhe calha ser nesta grande crise. Desde domingo que acredito mais nele para resolver questões práticas, como mais camas e mais ventiladores nos hospitais. Agora, acato-o como chefe que tem mostrado ser. Amanhã cobro-lho essa confiança.

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