Não é crime uma pessoa
prostituir-se, mas sim a exploração dessa actividade por outros. Com
a legalização do lenocínio, são os que gravitam em torno deste negócio, e
não as mulheres, que ficam salvaguardados.
AbrilAbril | editorial
Já são vários os elementos de uma
nova investida no sentido de legalizar o proxenetismo em Portugal. A agenda não
é nova mas tem tido maior visibilidade em torno da recente petição para
legalizar o lenocínio e regulamentar a prostituição enquanto profissão.
Ontem, o Público noticiou
um acórdão do Tribunal Constitucional que pela primeira vez vem defender que
facilitar a prostituição não deve ser crime. Assumindo que é um assunto que não
reúne consenso, o artigo expõe alguns dos argumentos utilizados pelos
magistrados para defender a descriminalização daqueles que lucram com a
prostituição de terceiros.
Chega a ser espectacular a
contradição do que é defendido. Se por um lado os juízes não ignoram a
violência que existe no mundo da prostituição, consideram que é o facto de a
actividade – o proxenetismo – ser crime o que aumenta essa
violência. «Os riscos que [com o crime de lenocínio] se querem esconjurar (em
todo o caso, sempre existentes em algum grau) resultam mais da criminalização
da actividade em causa (e assim da natureza "subterrânea",
clandestina, para que é remetida) do que da mesma», pode ler-se no texto.
Mas, sobretudo, este acórdão vem
colocar o ónus na questão moral, afirmando que as mentalidades evoluíram desde
a altura em que se considerou que a exploração de outros através da
prostituição devia ser ilegal. A essa perspectiva presidia então «uma certa
ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da
sexualidade». Os vários acórdãos que até agora consideravam o proxenetismo
crime mais não faziam «do que tutelar "sentimentalismo" ou "uma
ordem moral convencional particular"». Legalizar os patrões das
prostitutas é, portanto, coisa do progresso, e considerar que aqueles que
lucram com a exploração sexual são criminosos é conservadorismo.
E, finalmente, importa referir a
distância imensa a que estes juízes consideram estar a prostituição por
coacção, que deverá continuar a ser crime, e aquela que é facilitada a alguém
por livre e espontânea vontade. Mas não será a liberdade de escolha daquelas
que se prostituem inseparável, com ou sem uma arma apontada à cabeça, das
condicionantes económicas e sociais que determinam os seus percursos?
O caso da Ana e das «suas
meninas»
«Legalização da Prostituição em
Portugal e/ou Despenalização de Lenocínio» é o título da petição, que foi
entregue para ser debatida na Assembleia da República e que, a par das
entrevistas dadas pela promotora e proxeneta Ana Loureiro, constituem um caso
paradigmático desta campanha amplamente difundida pelo Correio da
Manhã e pela TVI.
Todas as suas afirmações deixam
claro que é o desespero que leva estas mulheres à prostituição. «Entraram nesta
vida porque não tinham como sustentar os filhos», diz Ana Loureiro, e
acrescenta que estas «não pedem o rendimento mínimo porque correm um risco, uma
vez que os filhos são sinalizados pelo CPCJ». Mas podíamos ficar-nos pelo
exemplo da própria, ao afirmar que, se não tivesse perdido o emprego no
Infarmed, «talvez nunca tivesse entrado na prostituição».
Outro dos casos apresentado tem
contornos semelhantes: «Eu vim para a prostituição devido ao ordenado mínimo do
País. É impossível, com 620 euros, pagar um quarto, a alimentação e o resto das
despesas»; ou ainda: «Eu vim cá parar porque fui vítima de violência doméstica,
sou mãe solteira, bati a todas as portas e ninguém me abriu.»
Em Portugal, a prostituição não é
crime. Porém, a alteração que decorreria da sua regulamentação como profissão
conduziria à descriminalização do lenocínio e, consequentemente, à
descriminalização da actividade dos proxenetas, que passariam a «empresários do
sexo», objectivo que é avançado com a maior das clarezas pela promotora da
petição. Com a legalização do lenocínio, mais do que os direitos das mulheres,
são os dos que gravitam em torno deste negócio que ficam salvaguardados.
A prostituição é mais uma forma
de exploração e de violência exercida essencialmente sobre as mulheres e é
expressão de desigualdades sociais, que são indissociáveis das injustiças
sociais que o actual quadro socioeconómico encerra, indissociável da pobreza,
da exclusão social, do desemprego, da precariedade laboral, da falta de
protecção social, da negação de direitos.
A prostituição é então exemplo
acabado de duas das mais tenebrosas características do capitalismo: a
desigualdade e a mercantilização – neste caso, do corpo da mulher – que pode
ser comprado e usado.
E o que dizer em relação ao
alegado «empoderamento» das ditas «trabalhadoras do sexo» que resultará da
legalização? Será uma trabalhadora com direitos e uma mulher emancipada o que o
cliente está à procura? Não será isso incompatível com a linguagem utilizada
nas ofertas nos sites e jornais «reserve uma rapariga agora» ou «menina para
sua satisfação à distância de um clique»?
A discussão política em torno da
dita legalização da prostituição em Portugal assume vários problemas. O
primeiro é precisamente ser levada a cabo por muitos que não colocam como
central a necessidade de construir uma alternativa a este sistema económico e
às políticas que levam muitas mulheres a esta situação. Outro dos problemas é
ser uma discussão que, tentando apelar ao sentimento de justiça das pessoas
para com uma necessidade de resolver a situação degradante em que vivem estas
mulheres, pretender na verdade legalizar a actividade dos proxenetas.
O que precisamos não é de
empresários que «facultem» um apartamento limpo numa zona segura para
«proteger» estas mulheres. Nem que estas sejam obrigadas a exames médicos
regulares para manter a sua «actividade». Nem que descontem para a Segurança
Social para ter acesso a uma baixa médica. O que precisamos é de direitos para
quem trabalha, de igualdade de oportunidades e de uma justa distribuição da
riqueza, para que mais nenhuma mulher seja forçada a prostituir-se para
sobreviver.
Imagem: iStock
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