terça-feira, 10 de março de 2020

Putin salva Erdogan de si próprio


Pepe Escobar [*]

No início de sua maratona de discussões em Moscovo, na quinta-feira, o presidente russo Vladimir Putin destinou ao presidente turco Recep Tayyip Erdogan a mais extraordinária jogada diplomática do jovem século XXI.

Putin disse: "No início de nossa reunião, gostaria de expressar mais uma vez minhas sinceras condolências pela morte dos seus militares na Síria. Infelizmente, como já lhe disse durante o nosso telefonema, ninguém, incluindo as tropas sírias, sabia o paradeiro deles.

Eis como um verdadeiro líder mundial diz a um líder regional, a fim de salvar a sua face, que se abstenha de posicionar suas forças como apoiantes de jihadistas – incógnitos, em meio de um teatro de guerra explosivo.

A discussão cara-a-cara Putin-Erdogan, apenas intérpretes foram permitidos na sala, perdurou três horas, antes de uma outra hora com as respectivas delegações. No final, tudo se resumiu a Putin vender uma maneira elegante de Erdogan salvar a face – na forma de mais um cessar-fogo em Idlib, o qual começou à meia-noite da quinta-feira, assinado em turco, russo e inglês – "todos os textos tendo igual força legal".

Além disso, em 15 de Março, começará o patrulhamento conjunto turco-russo ao longo da auto-estrada M4 – o que implica que não será permitido que as intermináveis estirpes mutantes da Al-Qaeda na Síria a retomem.

Se tudo isso parece déjà vu, é porque é. Algumas fotos oficiais da reunião em Moscovo mostram o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, e o ministro da Defesa, Sergey Shoigu – os outros dois pesos pesados na sala, além dos dois presidentes. Na esteira de Putin, Lavrov e Shoigu devem ter dado uma reprimenda a Erdogan em termos inequívocos. Basta: agora comporte-se, por favor – ou então enfrente consequências drásticas.

O segundo Ataturk

Uma característica previsível do novo cessar-fogo é que tanto Moscovo como Ancara – partes do processo de paz de Astana, juntamente com Teerão – permanecem comprometidos em manter a "integridade e soberania territorial" da Síria. Mais uma vez, não há garantia de que Erdogan cumpra.

É crucial recapitular o básico. A Turquia está em profunda crise financeira. Ancara precisa de dinheiro – muito. A lira está em colapso. O Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) está a perder eleições. O antigo primeiro-ministro e líder do partido Ahmet Davutoglu – que concebeu o neo-otomanismo – abandonou o partido e está a criar o seu próprio nicho político. O AKP está atolado numa crise interna.

A resposta de Erdogan foi ir à ofensiva. É assim que ele restabelece a sua aura. Combine Idlib com suas pretensões marítimas em torno de Chipre e a pressão chantagista sobre a UE inundando a ilha grega de Lesbos com refugiados e temos o modus operandi da marca Erdogan em pleno andamento.

Em teoria, o novo cessar-fogo forçará Erdogan a finalmente abandonar toda aquela miríade de metástases al Nusra/ISIS – aquilo que o Ocidente chama de "rebeldes moderados", devidamente armados por Ancara. Esta é uma linha vermelha absoluta para Moscovo – e também para Damasco. Não haverá território para jihadistas. O Iraque é outra história: o ISIS ainda está à espreita em torno de Kirkuk e de Mosul.

Nenhum fanático da NATO alguma vez admitirá isto, mas mais uma vez foi apenas a Rússia que impediu a ameaçada "invasão muçulmana" da Europa anunciada por Erdogan. Mas nunca houve qualquer invasão em primeiro lugar, só uns poucos milhares de migrantes económicos do Afeganistão, Paquistão e Sahel, não de sírios. Não há "um milhão" de refugiados sírios prestes a entrar na UE.

A UE, como de costume, continuará a tagarelar. Bruxelas e a maioria das capitais ainda não entendeu que Bashar al-Assad tem estado a combater o Nusra/ISIS o tempo todo. Eles simplesmente não entendem a correlação de forças no terreno. Sua posição recuada é sempre o CD arranhado dos "valores europeus". Não é de admirar que a UE seja um actor secundário em toda a tragédia síria.

Recebi um excelente feedback de analistas turcos progressistas quando tentei conectar as motivações de Erdogan Khan com a história da Turquia e os impérios das estepes.

O argumento deles, basicamente, é que Erdogan é internacionalista – mas apenas em termos islâmicos. A partir de 2000, ele conseguiu criar um clima de negação dos antigos motivos nacionalistas turcos. Ele usa a "turquidade" (turkishness) mas, como enfatiza um analista, "ele nada tem a ver com os antigos turcos. Ele é um Ikhwani . Ele tão pouco se importa com os curdos, desde que eles sejam seus 'bons islâmicos' ".

Outro analista destaca que "na Turquia moderna, ser 'turco' não está relacionado à raça, porque a maior parte dos turcos são da Anatólia, uma população mista".

Então, em poucas palavras, com o que Erdogan se importa é Idlib, Alepo, Damasco, Meca e não o sudoeste da Ásia ou a Ásia Central. Ele quer ser "o segundo Ataturk". Mas ninguém, excepto os islâmicos, o encara deste modo – e "por vezes ele mostra a sua raiva por causa disto. O seu único objectivo é derrotar Ataturk e criar um oposto islâmico de Ataturk". E a criação deste anti-Ataturk seria através do neo-otomanismo.

O historiador independente Dr. Can Erimtan, que tive o prazer de conhecer quando ele ainda vivia em Istambul (ele agora está no exílio), apresenta antecedentes eurasianistas abrangentes para os sonhos de Erdogan. Bem, Vladimir Putin acaba de oferecer ao segundo Ataturk algum espaço para respirar. Todas as [suas] apostas estarão perdidas se o novo cessar-fogo se transformar numa pira funerária.
06/Março/2020

Do mesmo autor:

Sem comentários:

Mais lidas da semana