quinta-feira, 23 de abril de 2020

O "sumidouro" do capitalismo indiano


Prabhat Patnaik [*]

A desgraça para a qual centenas de milhares de trabalhadores migrantes foram subitamente atirado pela decisão do governo de Narendra Modi de anunciar um confinamento de três semanas – com um aviso prévio de quatro horas e zero planeamento – destacou um aspecto crucial da economia indiana. Este consiste no facto de que a aldeia, com a sua economia baseada na agricultura e no sistema familiar, continua a permanecer a base de apoio de dezenas de milhões de trabalhadores urbanos, os quais estão expostos de modo perene às vicissitudes da vida sob o capitalismo.

Quando subitamente eles foram destituídos de rendimento e de casa, sendo literalmente lançados às ruas, a ideia avassaladora nas suas mentes foi retornar às suas aldeias, ainda que isso envolvesse caminhadas de centenas de quilómetros. Em entrevistas a jornalistas, muitos disseram que com o retorno à aldeia poderiam pelo menos conseguir algum emprego na ceifa de cereais. A aldeia, em suma, e o sector agrícola, permanecem o "sumidouro" do capitalismo indiano.

Ao contrário do mito propagandeado pelos seus porta-vozes, o capitalismo não absorve todos os pequenos produtores que ele desloca. A acumulação de capital é invariavelmente acompanhada por mudanças tecnológicas que poupam trabalho em tal extensão que impede a absorção de todos aqueles que ela desloca, juntamente com o aumento natural da força de trabalho. Ela é portanto invariavelmente caracterizada pela existência de um "sumidouro", um espaço que reúne toda a população miserável, os destituídos. No capitalismo metropolitano este "sumidouro" era fornecido pelas regiões temperadas de colonização branca para as quais ocorria a migração em massa da Europa. Nestas novas terras, os migrantes conseguiam obter um razoável padrão de vida ao, por sua vez, deslocarem os habitantes originais, os ameríndios, da sua terra.

No debate inglês clássico sobre a pobreza e a revolução industrial, mesmo os que como Eric Hobsbawm argumentavam que a pobreza havia aumentado após a revolução industrial admitiram que as coisas haviam começado a melhor na Inglaterra na década de 1820 e atribuíram isto ao facto de a acumulação de capital finalmente levar a uma redução da miséria. Contudo, de facto não foi a acumulação de capital mas sim a emigração – a qual aumentou após o fim das guerras napoleónicas – que fez a diferença. O "sumidouro" do capitalismo europeu, o qual afinal de contas acabou por não ser tão penoso, era o "novo mundo", as regiões temperadas de colonização.

Mas em colónias tropicais como a Índia, onde aqueles deslocados pelo ataque do capitalismo não tinham para onde emigrar, o "sumidouro" foi o sector agrícola interno, onde a dor e a miséria continuaram a acumular-se juntamente com a acumulação de capital na metrópole. Após a independência, houve um interlúdio de dirigismo quando se verificou algum aumento na produção agrícola per capita, embora seus benefícios fossem desigualmente distribuídos entre as classes rurais. Além disso, verificou-se um aumento das oportunidades de emprego fora da agricultura que estava um pouco à frente da taxa de crescimento da força de trabalho. Estes dois desenvolvimentos levaram a uma melhoria marginal de padrões de vida dentro da agricultura, ao contrário da pioria que estivera a ocorrer no último meio século de domínio colonial. Mas agora estamos outra vez com o capitalismo neoliberal quando aqueles no "sumidouro" estão a testemunhar uma redução nos seus padrões de vida.

Nenhuma conversa sobre a Índia a emergir como uma "superpotência económica", ou como uma "economia de 5 triliões de dólares" pode esconder este facto: que a agricultura camponesa continua a ser um "sumidouro" ao qual os trabalhadores urbanos aflitos regressam, e que os mesmos estão a testemunhar um sofrimento crescente ao longo do tempo ao invés de serem beneficiados por processo de acumulação de capital que afasta trabalhadores. Por trás dos chamados "êxitos" da economia indiana sob o neoliberalismo está esta angústia sempre crescente dentro do "sumidouro" no qual ironicamente está concentrada a maior parte da força de trabalho do país e que determina, como argumentamos abaixo, as condições de toda a força de trabalho indiana.

Uma implicação do facto de que a agricultura actua como um "sumidouro" para a economia indiana é a seguinte. O poder negocial dos trabalhadores indianos, incluindo mesmo os organizados, está estreitamente associado aos rendimentos per capita da população trabalhadora dependente da agricultura, isto é, excluindo os latifundiários, os agricultores capitalistas e aqueles camponeses ricos que diversificaram fora da agricultura.

Mesmo os trabalhadores sindicalizados na Índia não estão totalmente desligados das suas raízes rurais e a sua capacidade para fazer uma greve sustentada nos sectores em que estão empregados depende muitas vezes do grau de apoio que conseguem obter a partir de "casa". Depende, por outras palavras, das condições materiais que prevalecem no país, pelo que tomamos como índice o rendimento real per capita da população activa na agricultura.

Podemos portanto visualizar as condições de vida de todos os trabalhadores da economia, constituída por trabalhadores, camponeses e operários agrícolas, a moverem-se para cima e para baixo em sincronia. O disparador deste movimento sincronizado pode vir tanto do lado do crescimento agrícola como do lado do crescimento do emprego urbano e ambos estão inter-relacionados. Se o rendimento agrícola real per capita da população activa na agricultura diminuir devido à retirada de apoios governamentais ao sector agrícola, isto então provoca um movimento descendente sincronizado das condições de todos os trabalhadores na economia. Do mesmo modo, se a capacidade da economia urbana para proporcionar emprego descer abaixo mesmo da taxa natural de crescimento da força de trabalho, então haverá um movimento descendente sincronizado para toda a população trabalhadora. Estes dois factores, como já foi mencionado, estão inter-relacionados – e sob o neoliberalismo operam ambos os factores.

Mas isso não é tudo. Há uma dinâmica cumulativa sob o neoliberalismo, a qual se mantém a pressionar a economia cada vez mais na direcção de um agravamento dos padrões de vida dos trabalhadores. Vamos assumir, para começar, que a capacidade da taxa de crescimento que prevalece no sector não-agrícola para gerar emprego caia abaixo da taxa de crescimento natural da força de trabalho. Esta capacidade, pode-se recordar, depende não apenas da própria taxa de crescimento mas também da taxa de progresso tecnológico que a acompanha.

Se o crescimento natural da própria força de trabalho não pode ser absorvido pelas oportunidades de emprego criadas pelo crescimento, então as condições de vida da população trabalhadora caem por todo o espectro. Isto significa necessariamente um aumento da taxa de exploração na economia, o qual, em termos da habitual contabilidade nacional do rendimento, é manifestada num aumento na fatia do excedente económico no PIB total.

No entanto, a própria taxa de progresso tecnológico poupador de mão-de-obra depende da proporção do excedente económico no produto total, uma vez que o padrão de procura dos que vivem do excedente está mais próximo dos estilos de vida metropolitanos. Tais estilos de vida são não só muito menos intensivos em termos de emprego como também estão sujeitos a uma rápida transformação com novas maquinarias que utilizam e reduzem o emprego. Assim, com um aumento inicial da taxa de exploração, a tendência é para um novo aumento da taxa de exploração.

Estamos a falar aqui do rendimento real per capita dos trabalhadores, de modo que este aumento cada vez mais crescente da taxa de exploração significa um agravamento dos seus padrões de vida absolutos, o que representa um aumento da extensão da pobreza absoluta.

Isto é exactamente o que está a acontecer na Índia, onde a proporção da população que não tem acesso às normas nutricionais de referência utilizadas oficialmente para definir a pobreza na Índia aumentaram durante o período neoliberal. Estas normas, recorde-se, são de 2200 calorias por pessoa por dia nas zonas rurais e de 2100 calorias por pessoa por dia nas zonas urbanas. De acordo com o National Sample Survey, a proporção de pessoas incapazes de aceder a este nível de referência na Índia rural aumentou de 58 por cento em 1993-4 para 68 por cento em 2011-12. Do mesmo modo, a proporção de pessoas incapazes de aceder à norma de 2100 calorias por pessoa por dia na Índia urbana aumentou de 57 por cento para 65 por cento entre estas duas datas.

A pandemia do Covid-19 irá agravar grandemente a magnitude da pobreza, uma vez que levará a um aumento maciço do desemprego urbano como já está a acontecer. Mas o mecanismo através do qual este aumento da pobreza ocorre em todo o espectro foi demonstrado durante o confinamento, nomeadamente, pela migração em massa de volta às aldeias daqueles que subitamente se tornaram indigentes nas zonas urbanas.

19/Abril/2020

Ver também:
  Migrant workers in India

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2020/0419_pd/%E2%80%9Csink%E2%80%9D-indian-capitalism . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

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