Fernanda Câncio* | Diário de
Notícias | opinião
Alegando que por ter igrejas
fechadas não tem "receitas" para pagar salário dos sacerdotes, a
Igreja Católica quer ir para lay-off. Não espanta: desde que a conhecemos que
esta alegada benemérita se pendura no erário público enquanto esconde os
proventos. O ponto é: vai o governo nesta vergonha?
O Tribunal de Contas de Espanha
debruçou-se, pela primeira vez, sobre as contas da Igreja Católica espanhola.
Fê-lo com base no financiamento efetuado pelo Estado à instituição por via da
possibilidade de consignação de 0,7% do IRS devido por cada contribuinte, que
anda numa média de 250 milhões anuais, e em relação a 2017.
Uma das primeiras conclusões do
relatório preliminar, divulgado em fevereiro na imprensa, é de que a Igreja
Católica é pouco transparente na justificação do destino que dá a esse dinheiro
- e "os sucessivos governos da democracia não se preocuparam em exigir que
acabe com essa opacidade". Outra é de que a Igreja Católica apresentou
naquele ano um superavit - ou seja, um lucro - de 15,9 milhões de
euros.
Esse superavit foi
usado pela Conferência Episcopal Espanhola para financiar uma sociedade
comercial, a cadeia Trece (o canal de TV católico), para criar um fundo de
reserva. Os juízes lembram, porém, que o compromisso acordado com o Estado
espanhol em 1979, na Concordata, é de que este "cooperará com a Igreja
Católica na prossecução do seu adequado sustento económico". Os
magistrados consideram que sobrar dinheiro à instituição pode constituir uma
violação do acordo.
Acresce, dizem, que a Concordata
não especifica quais as necessidades da Igreja Católica para cujo adequado
sustento deve contribuir o Estado, e que "seria conveniente concretizar a
natureza desses gastos", até porque o relatório anual entregue pelos
bispos não permite descortiná-la. Aliás, nem sequer tem contas certas: no de
2017, entregue em setembro de 2019, falta justificar 300 mil euros do valor
recebido via consignação. Ainda assim, frisam os magistrados, a Igreja Católica
dá as contas como "definitivas sem que se explique a origem e a razão da
desconformidade", usando termos vagos como "envio para as dioceses
para seu sustento" ou "atividades pastorais nacionais".
Atividades nas quais, segundo o diário El País, a Igreja Católica incluía
até há poucos anos o financiamento do referido canal de TV católico. Em 2013,
por exemplo, 80% do valor dedicado às "atividades pastorais" - seis
milhões de euros, o mesmo que entregou à Cáritas nesse ano - foram para
financiar o canal.
Tudo isto é, para qualquer
português minimamente informado, caso para ficar de queixo caído. Não pelas
revelações - temos o caso da Cáritas, com milhões no banco enquanto se queixava
de falta de dinheiro para ajudar os pobres em plena crise da troika, e de
misericórdias investigadas por pagamentos "debaixo da mesa" de
milhares de euros para aceitar idosos em lares e "sacos azuis"
assumidos como forma de esconder a riqueza do Estado e poder continuar a
pedir-lhe dinheiro - mas pelo extraordinário que é um Tribunal de Contas
analisar contas da Igreja Católica. O simples facto de haver contas
apresentadas é um maravilhamento: ao contrário do que se passa em Espanha desde
1980, a Igreja Católica portuguesa não está obrigada a qualquer relatório de
contas. Se o Tribunal de Contas espanhol se queixa de opacidade, que dirão os
portugueses?
Poder-se-á alegar que a Igreja
Católica portuguesa como tal (há inúmeras organizações católicas que o fazem)
não aderiu à possibilidade de consignação do IRS, que em Portugal é de 0,5%.
Podendo escolher entre a consignação e a devolução do IVA, preferiu esta última
(confiará pouco nos seus fiéis?). Mas num caso ou noutro trata-se de uma
benesse estatal, ou seja, um subsídio direto efetuado com o dinheiro de todos
os contribuintes (mesmo a consignação, sendo dinheiro devido ao Estado pelo
contribuinte, é de todos e não do indivíduo considerado), o que deveria
pressupor apresentação de contas.
De resto, a soma de subsídios
estatais de que a Igreja Católica beneficia é algo que nunca foi contabilizado.
Gozando, para a generalidade do seu património imobiliário, de isenção de IMI,
ninguém parece saber a quanto isso corresponde em termos de impostos não
cobrados (já pedi essa informação ao Ministério das Finanças e nunca obtive
resposta). Só sabemos que quando em 2016 o fisco quis aplicar a letra da lei,
cobrando IMI aos imóveis da Igreja Católica não afetos ao culto, os protestos
furiosos dos bispos, falando da "forma sôfrega com que se tenta cobrar
impostos por tudo e por nada e em todo o lado", levaram a melhor, e ficou
tudo na mesma.
Sabemos também que os sacerdotes
só começaram a pagar IRS a partir de 2005 - mesmo os que como professores de
Religião e Moral ou capelães nos hospitais e nas Forças Armadas eram
funcionários públicos não pagavam até aí - e que em termos de Segurança Social
tiveram até muito recentemente (2009) um regime específico, no qual o total da
TSU era de apenas 12% (4% para o padre e 8% para a Igreja), acrescendo a isso
que a média de salário declarado andava, em 2008, nos 366 euros, bastante longe
do valor efetivamente auferido, cerca de 800. Uma das justificações de uma taxa
tão baixa de TSU e de os sacerdotes escolherem fazer o cálculo sobre um valor
tão baixo era o facto de não recorrerem a subsídio de desemprego - por não
estar em causa alguma vez um padre ser despedido.
É imperioso recordar tudo isto
agora que a Igreja Católica portuguesa anuncia querer recorrer ao instituto
do lay-off. Definido no Código do Trabalho e no decreto especial que lhe
permite o acesso simplificado em tempo de pandemia, o lay-off é um
instituto de socorro do Estado, por via da Segurança Social, a empresas em
risco que visa salvaguardar postos de trabalho. Tal está claramente explicitado
no decreto-lei 10-G/2020, de 26 de março, que "estabelece uma medida
excecional e temporária de proteção dos postos de trabalho, no âmbito da
pandemia covid-19 (...) tendo em vista a manutenção dos postos de trabalho e a
mitigação de situações de crise empresarial".
Talvez por falta de capacidade
minha, não vislumbro como é que a Igreja Católica portuguesa, cujas contas
ninguém conhece e faz parte de um conglomerado internacional riquíssimo
governado pelo Vaticano, para o qual, como é uso nas multinacionais, remete
parte dos seus proventos, pode alegar risco de falência ou de despedimento de
sacerdotes. Não podendo invocar nenhuma dessas coisas, que legitimidade tem
para pedir à Segurança Social, sem mãos a medir perante a crise que
atravessamos, que a ajude?
Mais incrível ainda é conhecer as
justificações apresentadas. "A maior parte das receitas chegam dos
peditórios e dos ofertórios que a igreja faz nos locais de culto. Com as
igrejas fechadas temos dificuldades em fazer face aos vários salários que temos
nas nossas instituições", diz um padre da Diocese do Porto à TSF, enquanto
no Correio da Manhã fazem-se contas: "Com a anulação de
celebrações, festas e romarias e o fecho de igrejas e santuários, a quebra de
esmolas e oferendas, entre 15 de março e 15 de maio, deverá ser superior a 55
milhões de euros."
E o melhor, também
no Correio da Manhã: "Mais de metade dos católicos que costumam pagar
a côngrua (o valor de um dia de trabalho) na altura da Páscoa, este ano, devido
ao afastamento da vida da Igreja, acabarão por não o fazer. Só neste
particular, o prejuízo será superior a 33 milhões de euros."
Devemos, pois, concluir, pelas informações prestadas, que o "prejuízo" causado à Igreja Católica advém da falta de esmolas - as esmolas, ficamos a saber, que considera "receitas". E que numa situação de crise, ao invés de se disponibilizar para servir, recorrendo às suas reservas, Igreja Católica procura servir-se.
Nada de surpreendente, dir-se-á.
Não é de facto. A única coisa que importa mesmo é saber se o governo vai ceder,
aceitando financiar de mais esta forma uma organização que se esmera em fugir a
todas as contribuições e se furta a qualquer sindicância, tendo ainda por cima
a suprema lata de querer apresentar-se como a grande provedora dos pobres.
*Jornalista
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