Como os bancos centrais inundam
de dinheiro o cassino financeiro global. A moeda do mundo, criada do nada, em
favor do 0,1%. O papel dos EUA. A ascensão subversiva da China. Uma estudiosa
do “novo” capitalismo conta tudo
Ann Pettifor | Outras Palavras | Tradução de Simone
Paz
Greenback, greenback, dollar bill
Just a little piece of paper, coated with chlorophyll
—Ray Charles
Just a little piece of paper, coated with chlorophyll
—Ray Charles
(“Nota de dólar, nota de dólar
verde
Apenas um pedacinho de papel, revestido com clorofila”)
Apenas um pedacinho de papel, revestido com clorofila”)
Conhecemos a história porque
Henry Paulson, que já foi executivo-chefe da Goldman Sachs e, também,
secretário do Tesouro dos EUA durante a última crise, está reunindo os
capitalistas do mundo para defender a globalização contra o reshoring, o
protecionismo e os controles de imigração. Paulson entende isso como uma guerra
de ideias. Nas colunas do Financial Times, defendeu que “a iminente
batalha colocará as forças de abertura — enraizadas nos princípios de mercado —
contra as de fechamento, em quatro dimensões: comércio, fluxos de capital,
inovação e instituições globais”.
Essa “batalha iminente” já se
inclina a favor da classe dos credores do mundo — com o apoio dos bancos
centrais e, em particular, o dos EUA, o Federal Reserve, que emprega sua arma
mais potente: o dólar americano, aquele “pedacinho de papel revestido com
clorofila”. Suas ações deixam claro que pode não haver um comitê internacional
para salvar as pessoas de uma pandemia global, mas existe um comitê
internacional criando uma “grande rede de segurança” para salvar as finanças
privadas, por causa da pandemia. Os dirigentes dos bancos centrais engajaram-se
em uma ação decisiva, expansiva e coordenada internacionalmente para salvar o
capitalismo rentista, enquanto os governos de presidentes como Trump,
Bolsonaro, Modi e Johnson divertem-se, lidando da pior maneira com a crise da
covid-19.
A ascensão do nacionalismo e do
protecionismo, que levou esses líderes autoritários ao poder, juntamente com
ações extraordinárias dos bancos centrais em apoio aos cassinos financeiros de
Wall Street e da City [centro financeiro de Londres], são reações e
consequências de “externalidades negativas” típicas da globalização:
conectividade e integração. A pandemia não deixa de ser também uma consequência dos
riscos sistêmicos à saúde, inerentes à conectividade e à integração do projeto
de globalização.
Onde ficam os progressistas nesse
debate de ideias que envolve globalização e políticas monetárias? A julgar pelo
tom e nível do debate público ocidental, a esquerda se mantém à margem da arena
de batalha entre os pró-globalização e os contrários a ela. Tanto a campanha
eleitoral liderada por Jeremy Corbyn, quanto a candidatura presidencial de
Bernie Sanders nos Estados Unidos, ofereceram uma análise sólida, além de uma
profunda compaixão e solidariedade às vítimas da globalização e do colapso
climático. Mas suas campanhas costumavam focar, com frequência, em questões
domésticas — tais como sistemas de saúde, moradia acessível, a nacionalização
das ferrovias, a atenção para os pobres e sem-teto — e ignoraram tanto a
infraestrutura financeira globalizada (que torna praticamente impossível a
reforma desses setores), como o establishment político que lutará até
a morte para defender o sistema.
Essa ignorância sobre os
elementos nocivos do sistema monetário internacional e seus impactos no Sul
Global abafa o debate e inibe possibilidades radicais. Afinal de contas, não é
possível transformar um sistema e redesenhar sua arquitetura financeira
internacional, enquanto esse sistema não for compreendido, discutido e debatido.
Em outras palavras, para decidir
nosso rumo, precisamos entender como chegamos até aqui.
Como chegamos até aqui
Diferentemente da recente
experiência com a crise internacional, o trauma da Grande Depressão e da
Segunda Guerra Mundial levou a intenso debate público sobre o sistema
financeiro internacional. John Maynard Keynes era colaborador regular da
imprensa popular, inclusive do Daily Mail — de direita –, e envolvia
o público com frequentes transmissões de rádio sobre políticas macroeconômicas.
O presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, fazia o mesmo.
O Acordo de Bretton Woods de 1944
foi parte do resultado desses debates e levou à construção de uma arquitetura
financeira internacional projetada para gerenciar e estabilizar os
desequilíbrios no comércio e nas finanças que perturbaram o sistema mundial — e
tinham aumentado as tensões políticas, levando a uma guerra catastrófica. O
planejamento ajudou a gerenciar os desequilíbrios comerciais no mundo todo por
quase trinta anos. Assegurou que moedas nacionais fossem vinculadas a um ativo
de valor fixo. Isso impediu a especulação cambial e garantiu que a moeda de
cada país refletisse os pontos fortes e as necessidades da economia doméstica,
não os interesses dos mercados de capitais na economia internacional.
Entretanto, logo surgiram tensões
e deformações. Já em 1963, Robert McNamara advertia que os gastos militares
norte-americanos no exterior haviam se tornado tão grandes que ameaçavam o que
ele chamava de “cobertura de ouro” do dólar dos EUA. Em seu estudo magistral da
estratégia econômica do império americano, Michael Hudson relata que, em maio
de 1970, o secretário do Tesouro dos EUA, David Kennedy, alertou que se países
estrangeiros não viabilizassem o aumento das exportações dos Estados Unidos, o
Congresso poderia restringir as importações. Hudson escreve que, “basicamente,
ele queria dizer que, à medida em que o capital privado dos EUA continuasse a
comprar as indústrias e empresas da Europa e da Ásia, estabelecendo um déficit
americano na balança de pagamentos por conta de capital, os países que acabavam
tendo um superávit, ao receber esses dólares de forma forçada, deveriam
aumentar suas importações dos Estados Unidos em quantidades equivalentes ao
custo dos EUA para assumir o controle de seus setores e empresas.
Richard Nixon, o presidente
norte-americano à época, tendo seu objetivo frustrado por causa de aliados
obstinados como o presidente De Gaulle, desmantelou unilateralmente e sem
consultar ninguém, o Sistema de Bretton Woods, suspendendo toda a venda
adicional de ouro dos EUA a bancos centrais estrangeiros. A partir de então, os
US$ 61 bilhões em dívidas líquidas devidas aos estrangeiros seriam pagos apenas
na forma de “uma nota de dólar verde, um pedacinho de papel coberto de
clorofila”. Com os pagamentos em ouro suspensos, a dívida externa dos Estados
Unidos foi, de fato, repudiada. Embora nunca lembrada por economistas e
historiadores dessa forma, a ação de Nixon, conhecida como “o choque Nixon”,
levou, na época, ao calote de dívida da história.
A partir de então, as moedas
estrangeiras não seriam mais conversíveis em um ativo seguro de valor fixo, mas
em dólares americanos de papel. E, em vez de ouro, a dívida de curto prazo dos
EUA (letras do Tesouro), no futuro, seria mantida entre as reservas monetárias
dos bancos centrais estrangeiros. Ou seja, as obrigações da dívida de curto
prazo do governo dos Estados Unidos assumiram o lugar do ouro, e se tornanaram
a reserva monetária oficial mundial.
Mas Nixon ainda tinha mais coisas
a fazer para consolidar os EUA como o poder hegemônico global.
A desacoplagem do dólar em
relação ao ouro em 1971 levou, como se esperava, a uma queda no valor do dólar.
Agora, as receitas obtidas pelos países produtores de petróleo compravam menos
nos mercados internacionais. Para aumentar o desespero dos produtores de petróleo
do Oriente Médio, os EUA apoiaram Israel na guerra árabe-israelense de 1973. Em
resposta, o cartel de petróleo (OPEP) aumentou drasticamente o preço do
petróleo. Os enormes ganhos das vendas de petróleo do Oriente Médio inundaram
bancos e instituições financeiras ocidentais, que relataram taxas
médias líquidas de crescimento anual de depósitos entre 25 e 30%. A alta dos
preços do petróleo, combinadoa com a desregulamentação financeira pós-Bretton
Woods, desencadeou a inflação em todo o mundo.
E assim, William Simon,
recém-nomeado secretário do Tesouro dos EUA, e seu vice, Gerry Parsky, foram
encarregados pelo presidente Nixon e por Henry Kissinger de negociar um acordo
com os sauditas. O objetivo era claro: persuadir o rei Saudita a investir os
retornos de seus campos de petróleo na dívida americana. O rei saudita, Faisal
bin Abdulaziz Al Saud, exigiu apenas uma condição em troca: seu financiamento
do déficit americano, deveria permanecer “em estrito segredo”, de acordo com um
cabo diplomático obtido pela Bloomberg no banco de dados do National Archives.
O segredo saudita foi mantido por
mais de quatro décadas, e o arranjo fez do Reino Saudita um dos maiores
credores estrangeiros dos EUA. Foi, ficou provado, uma arma diplomática útil —
e explica a relutância do governo dos EUA em investigar o assassinato brutal de
um jornalista do Washington Post, dissidente da Arábia Saudita, Jamal Khashoggi
em 2018. Em abril de 2016, a
Arábia Saudita ameaçou vender até $ 750 bilhões de dólares em títulos do
Tesouro dos EUA e outros ativos, se o Congresso norte-americano aprovasse uma
lei que permitisse ao reino ser responsabilizado nos tribunais dos EUA pelos
ataques terroristas de 11 de setembro, segundo
o New York Times.
A dolarização dos combustíveis
fósseis transformou o sistema internacional e levou à criação do petrodólar — a
“chave para o funcionamento do dinheiro neocolonial”, como argumentou Andres
Arauz, ex-ministro equatoriano e conselheiro da Progressive International.
O “Choque Nixon” e o petrodólar
foram cruciais para a criação e manutenção da hegemonia global. Ambos
contribuíram para a desregulamentação, conectividade e integração que
financiaram e carbonizaram a economia global. Nesse sentido, as crises
econômicas, ecológicas e de saúde de hoje são, em grande parte, uma
consequência das decisões geopolíticas tomadas em 1971.
Que é o sistema monetário
internacional atual?
Se o sistema monetário
internacional de hoje é resultado das decisões do governo dos EUA, ele trabalha
com efetividade na proteção dos interesses da classe rentista globalizada —
assim como o padrão-ouro do século XIX e início do século XX protegia os
interesses globais desde o centro financeiro de Londres.
No cume do sistema, está o
Federal Reserve: emissor da moeda de reserva mundial. O dólar é o eixo central
que suporta o peso da arquitetura monetária internacional.
Como tal, o Fed é agora a única
fonte de liquidez global, fornecendo dólares (por meio de ‘linhas de swap’) não
apenas para todos os bancos e credores do mundo, mas também para alguns poucos
Bancos Centrais do mundo. Os excluídos desta generosidade imperial incluem a
maioria dos países de baixa renda, mas também a China
Apesar de seu mandato oficial, a
missão do Fed, atualmente, não é a segurança e a prosperidade da economia
doméstica da qual seus governadores dependem para governar e da qual derivam
seu mandato. Em vez disso, o Fed é, na verdade, uma instituição com apoio
público cujas operações são conduzidas por autoridades privadas, quase
completamente isoladas da supervisão democrática ou da prestação de contas.
Cada vez mais, as variadas e
numerosas intervenções do Fed e de outros bancos centrais são realizadas para
proteger apenas uma classe que opera no sistema internacional: credores,
investidores e especuladores. Por exemplo, as injeções de liquidez do Federal
Reserve — destinadas a apoiar os mercados de capitais privados — são realizadas
no setor bancário paralelo, por meio de operações de mercado de recompra (onde,
tal como nas casas de penhores, as garantias são temporariamente trocadas por
dinheiro), e não através da prática consagrada de compras de ativos de mercado
aberto em troca de liquidez.
Em outras palavras, o Federal
Reserve e outras operações do banco central fornecem agora segurança e proteção
a uma classe global de rentistas, incluindo fundos de private equity (PE) que “aproveitam
o sigilo para fleece investors (investidores que pagam muito acima do
valor esperado ou justo em algo) e contribuintes“. Em vez de tomar
empréstimos em seu próprio nome, as empresas de private equity aversas ao risco
faziam certas companhias-alvo carregar suas dívidas, e então, como “bancos do
sistema financeiro das sombras”, começavam a emprestar dinheiro para cidadãos e
empresas. Quando a pandemia de coronavírus obrigou “os mercados de crédito a
uma queda em março”, o fundo de PE Apollo, depois de evitar impostos, fez um
forte lobby e conseguiu ser socorrido pelos contribuintes. As fantásticas e
inéditas intervenções do Fed em março de 2020, como Trevor
Jackson argumenta, consistiram em “inundar os mercados financeiros com
dinheiro o mais rápido possível, para que os bancos pudessem continuar
emprestando, os compradores de ações pudessem continuar comprando e as
instituições pudessem continuar pagando suas dívidas”. Longe de esvaziar a
bolha da dívida global, o Federal Reserve mantém a dívida e seus proprietários
flutuando.
É por isso que, também, apesar de
todo o seu poder, o Fed não consegue administrar uma economia global
profundamente instável. Na realidade, ele pode até ter contribuído para o
fracasso econômico. Como o FMI explica no Relatório
Global de Estabilidade Financeira de 2020, o Fed preferiu fechar os olhos
quando os mercados de crédito privado se expandiram rapidamente após a crise
financeira global de 2007-2009, atingindo $ 9 trilhões de dólares em todo o
mundo. Simultaneamente, a baixa regulamentação dos bancos centrais reduziu a
qualidade do crédito dos mutuários e enfraqueceu os padrões de subscrição e a
proteção dos investidores. Esses mercados de crédito arriscados — em títulos
“podres” de alto rendimento, empréstimos alavancados e dívida privada —
continuaram a mostrar tensões até o início de abril, apesar da forte injeção de
dinheiro do Fed.
Então, com a ajuda dos credores
internacionais, o Federal Reserve está sustentando firmas altamente
endividadas, quando a economia real dá todas as indicações de uma espiral
descendente para a deflação. Quem se beneficia de uma espiral deflacionária?
Você adivinhou: a classe rentista. À medida que os preços e os salários caem, o
valor relativo da dívida aumenta, assim como o custo do serviço da dívida.
Agora, a deflação assombra a economia
global. Mesmo provocando queda de preços e lucros, e aumento do desemprego,
enriquece os credores. Isso ocorre porque a deflação “envolve uma transferência
de riqueza do resto da comunidade para a classe rentista”, como escreveu Keynes
em seu Tratado sobre a Reforma Monetária, “assim como a inflação envolve o
oposto… [A deflação] supõe uma transferência de todos os tomadores de
empréstimos, ou seja, dos comerciantes, fabricantes e agricultores, aos
credores. Do ativo ao inativo.”
Quais as consequências para o Sul
Global?
Como resultado das ações voláteis
e instáveis dos investidores globais, os mercados emergentes tiveram o maior
fluxo negativo de divisas já registrado, segundo o FMI. Fugiram 100
bilhões de dólares nas últimas semanas de março e início de abril de
2020. O movimento esmagou as moedas dos países de baixa renda, enquanto
aumentava simultaneamente o valor do dólar. Como só o dólar americano é
reconhecido pelos mercados internacionais para o pagamento de importações
essenciais, sua força aumentou o custo das importações denominadas em dólares.
Isso, por sua vez, levou a
desequilíbrios nas contas comerciais e de capital, que levaram os fantasmas da
economia global — as agências de classificação ocidentais — a rebaixar os
países que foram vítimas de fuga de capitais. Os rebaixamentos, portanto,
aumentaram os custos de empréstimos e também a disponibilidade de crédito, num
momento em que os mercados globais de exportações de commodities para países
pobres já estavam debilitados, reduzindo sua renda. Ao mesmo tempo, moedas
enfraquecidas aumentaram o custo da compra de equipamentos vitais e produtos
farmacêuticos do exterior
Os países empobrecidos foram
efetivamente sacrificados na cruz do dólar.
Essa recente debandada do capital
e seu impacto na vida e nos meios de subsistência de milhões de pessoas no Sul
Global passaram despercebidos em círculos progressistas. Mas a fuga de capitais
por mero capricho dos investidores, juntamente com o subsequente fortalecimento
do dólar, não são conseqüências acidentais ou inevitáveis da pandemia.
Afinal, o vírus anuncia um maior
fracasso econômico nos Estados Unidos do que em muitos mercados emergentes.
Tampouco pode ser explicado diretamente por mudanças repentinas nas
circunstâncias econômicas dos países atropelados pela pressa dos investidores em sair. Na verdade,
trata-se de uma conseqüência do design do sistema internacional — uma arquitetura
financeira global destinada a atender aos caprichos dos investidores, não
importa quão irracionais eles sejam, e a proteger os interesses dos credores.
O FMI pode fazer o resgate?
Em todo o universo de comentários
sobre “o que deveria ser feito” em relação à crise financeira internacional
induzida pelo Covid-19, existe um consenso sobre a necessidade de o Fundo
Monetário Internacional (FMI) assumir um papel maior. Em particular, muitos
defendem que o FMI emita bilhões de dólares em Direitos Especiais ,
de Saque, distribuindo-os aos bancos centrais de seus membros. Esses direitos
de saque tornaram-se uma solução essencial para lidar com o problema da
liquidez do dólar no contexto da atual pandemia.
Mas, de uma perspectiva
progressista, há desvantagens reais em legar esse grande poder ao FMI.
Primeiro, porque os países
devedores não confiam na instituição, devido à sua conhecida e consntante
defesa dos interesses dos credores internacionais — públicos e privados. O FMI
atua como agente em nome dos credores e impõe condicionalidades de política a
países cujo objetivo específico — embora muitas vezes disfarçado de ‘programas
de estabilização’ — é gerar recursos para credores estrangeiros e garantir que estes
últimos não tenham perdas em empréstimos feitos a governos soberanos.
Em segundo lugar, a emissão dos
Direitos Especiais de Saque do FMI é apenas outra maneira de os países de baixa
renda adquirirem dólares da própria moeda hegemônica — através do FMI, e não do
mercado aberto. Além disso, o poder de voto da hegemonia no FMI permite vetar
qualquer proposta de alocação de direitos especiais considerados hostis aos
interesses dos EUA — conforme definido pelo presidente americano
Daí a decisão do governo Trump de
vetar, “por enquanto”, o comovido apelo por uma maior alocação de direitos de
saque, declarando que
“não deseja dar à China e ao Irã acesso a reservas extras incondicionais”
Que mudanças são necessárias no
sistema financeiro internacional?
Se quisermos vencer a batalha das
ideias — se quisermos reverter a hiperglobalização e sua cruel preferência pelo
rentismo por sobre os interesses das pessoas e do planeta –, então a esquerda
precisa desenvolver um plano para desmantelar o sistema atual e construir uma
nova arquitetura monetária internacional democrática, mais justa, e,
finalmente, sustentável.
Isso começa desafiando a
supremacia do dólar.
Um propósito que deve ser
explorado é a possibilidade de criar um sistema no qual todas as moedas possam
ser usadas nas transações internacionais e domésticas, independentemente do
tamanho das economias em que são emitidas. Como argumentou Jane D’Arista em 2003, “o ativo de
reserva internacional (a moeda mundial) deve responder à necessidade de
inclusão: seu valor deve ser baseado em uma cesta de moedas ponderada pelo
comércio de todos os países membros”
No ápice de uma arquitetura
monetária internacional progressista, haverá um banco: uma instituição
internacional que facilite as transações entre nações ou regiões de nações. Que
poderia usar seus poderes para desencorajar países que acumulem ‘saques a descoberto’
— déficits em seu comércio — e disciplinar os países-membros que acumulem
superávits maciços: porque o superávit de um país é o déficit de outro. Dessa
forma, poderia ajudar a acabar com os atuais desequilíbrios globais, onde
países como China e Alemanha têm grandes superávits comerciais, mas EUA,
Espanha e Grã-Bretanha têm déficits insustentáveis. Tais desequilíbrios são
política e economicamente desestabilizadores.
E ainda poderia fazer mais.
Poderia armazenar os títulos (do governo) dos países-membros e usar esses
ativos ou reservas para gerar liquidez adicional. Em outras palavras, ativos
seguros de garantia soberana permitiriam ao banco fazer o que o Fed faz
atualmente: gerar liquidez e desempenhar o papel de “credor de último recurso”
Sua supervisão e gestão
democrática — não pela autoridade privada, mas pela autoridade pública — será
fundamental para a saúde do sistema internacional. As finanças devem voltar a
servir a economia global (europeia, ou de qualquer país), e não a dominá-la.
Essas ideias podem parecer
utópicas, mas as figuras do establishment — prevendo a gravidade da conjuntura
atual — estão se mobilizando rapidamente para adotar ideias mais radicais.
“Múltiplas moedas de reserva aumentariam a oferta de ativos seguros, aliviando
as pressões descendentes da taxa de juros de equilíbrio global que um sistema
assimétrico pode exercer”, disse recentemente o ex-diretor do Banco da
Inglaterra, Mark Carney. “E com muitos países emitindo ativos seguros globais
em concorrência entre si, o prêmio de segurança que eles recebem deve cair.
Carney propõe uma alternativa:
uma Moeda Hegemônica Sintética (“SHC”, na sigla em inglês) que seria fornecida
pelo setor público, talvez por meio de uma rede de moedas digitais do Banco
Central. “Uma moeda hegemônica no Sistema Financeiro e Monetário Internacional
(SFMI) poderia fornecer melhores resultados globais, dada a escala dos desafios
do atual SFMI e os riscos que envolvem a transição para uma nova moeda de
reserva hegemônica, como o Renminbi. Uma SHC poderia diminuir a influência
dominante do dólar americano no comércio global. Se a parte do comércio
faturado na SHC aumentasse, os choques nos EUA teriam repercussões menos
potentes por meio das taxas de câmbio, e o comércio se tornaria menos
sincronizado entre os países. Da mesma forma, o comércio global se tornaria
mais sensível às mudanças das condições nos países de outras moedas do grupo
que integra ou apoia a SHC.
Seria difícil descrever Carney,
que ganhou respeito na Goldman Sachs, como um progressista. Mas o fato de que
ele está empurrando essas novas ideias só vai mostrar o quão longe os
progressistas têm que caminhar para recuperar o sistema financeiro
internacional como seu território de luta.
A esquerda tem muito pouco a
dizer sobre uma economia global agora governada efetivamente por tecnocratas
não eleitos e misteriosos. Pelo contrário, alguns daqueles localizados no lado
progressista do espectro político aplaudem o resgate feito por banqueiros
centrais de credores de risco e muitas vezes imprudentes. Adam Tooze
recentemente se entusiasmou com a criação, pelo Fed, de uma “rede gigante de
salvação pública… estendida por todo o sistema financeiro”.
Muitos outros comentaristas e
economistas se uniram na adulação, o que lembra a este autor dos elogios nos
anos 1990 e no começo dos 2000 recebidos pelo infalível “mestre” dos EUA e da
economia global, Alan Greenspan.
Esse entusiasmo por soluções
tecnocratas e essencialmente antidemocráticas pode ser explicado em parte pela
falência da economia. “A financialização é a razão menos estudada e mais
explorada por trás de nossa inabilidade de criar uma prosperidade
compartilhada”, argumenta Rana Foroohar em seu livro Makers and Takers (2016).
E isso ajuda a explicar por que progressistas falham em entender a estrutura e
o objetivo do sistema financeiro internacional e seus ganhos à classe rentista.
Isso também explica a admiração
com que os tecnocratas de bancos centrais são agora vistos por muitos, e o foco
míope nas questões domésticas da maior parte dos debates econômicos de
esquerda. Sem falar na ausência de preocupação séria com as crises enfrentadas
pelos países mais pobres.
Já é tempo de nos organizarmos
para entender melhor, e transformar o sistema.
Conclusão
Transformar o sistema financeiro
internacional é urgente, se quisermos que o mundo reverta os danos feitos tanto
às sociedades quanto ao ecossistema pelo desenfreado sistema de “crescimento”
econômico exponencial e acumulação de capital via rentismo financeiro.
O atual colapso do sistema
capitalista internacional faz com que uma transformação entre na faixa das
“possibilidades radicais”. Mas não nos esqueçamos: a crise pode tanto ser
resolvida pelo conflito — com o poder hegemônico usando seu todo-poderoso poder
militar — ou pela transformação racional e progressista do sistema.
As grandes questões que
enfrentamos são essas: primeiro, por que os progressistas não estão na
vanguarda desse debate? Segundo, como expandir a educação pública e o
entendimento do sistema e suas consequências? Terceiro, como mobilizar apoio
público para uma solução progressista à crise atual.
Talvez, essa Internacional
Progressista, ao convocar ao diálogo global nessa conjuntura crítica, possa
respondê-lo. Talvez, juntos possamos acabar com nossa dependência das “notas de
dólar verde”, que, afinal de contas, são “um pedacinho de papel coberto de
clorofila”.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário