sábado, 23 de maio de 2020

Portugal | FAZER DAS TRIPAS DIFAMAÇÃO


Claro que o apoio do Estado aos media, através da compra de publicidade institucional, criou polémica: os critérios, previstos em lei de Passos, não são nem claros nem justos para o efeito anunciado. Mas ver o Observador a acusar tudo e todos de vendidos porque lhe coube pouco é realmente impagável.

Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião

Há um mês, escrevi aqui sobre o anunciado apoio do Estado - reparem que escrevi Estado e não Governo - aos media, antecipando o que era óbvio a partir da leitura da lei de 2015 que regula a publicidade institucional, a qual estabelece tiragens, audiências e alcance de difusão como critérios: uma empresa como a Cofina iria levar uma parte de leão desse apoio.

Chamei a atenção para o facto de que quer o Presidente da República, através de um desmentido no seu site, quer o PS, através de uma queixa à Entidade Reguladora da Comunicação Social, terem nessa mesma semana acusado o Correio da Manhã e a CMTV, ambos da Cofina, de publicar uma falsidade que, decerto por mais um mero acaso de muitos iguais, alinhava totalmente com o discurso do líder do Chega: a asserção de que as medidas especiais para as prisões no âmbito da pandemia iriam "soltar" pedófilos e homicidas. E de como essa coincidência demonstrava que um apoio aos media nos termos anunciados não podia servir os efeitos que a ministra da Cultura propalara, os da "sustentabilidade do jornalismo", da "promoção de fontes de informação credível e validada", da "literacia mediática" e do "combate à desinformação", destinando-se aos projetos "nos quais podemos dar às pessoas a garantia de que podem confiar".

Sendo evidente para qualquer conhecedor das regras do jornalismo que os mencionados produtos da Cofina fazem gala de não as aplicar - lembremos, por exemplo, como aquando de uma ida a tribunal do pai e da madrasta de Valentina um funcionário da CMTV andou a perguntar a populares "não acha que este é um caso para justiça popular", permitindo, com deleite, que estes descrevessem as sevícias medievais que infligiriam ao progenitor se pudessem -, é-o também que nenhum Governo ou maioria parlamentar pode estabelecer critérios de qualidade e de "jornalismo" quando os reguladores, que têm essa incumbência, não o fazem. Pelo que no mesmo texto reconheci não haver forma de dar a volta à situação nem de fazer, para efeito deste apoio, a destrinça que a jornalista Leonete Botelho, presidente de um dos reguladores - a Comissão da Carteira de Jornalistas -, disse ser fundamental, e que cabe precisamente à instituição que preside e à Entidade Reguladora para a Comunicação Social: distinguir órgãos realmente jornalísticos, que fazem jornalismo, dos outros.


Era pois inevitável aquilo que aconteceu - que a Cofina fosse uma das empresas mais favorecidas nas contas do apoio. E que as duas TV privadas de sinal aberto - SIC e TVI - levassem outra parte de leão, apesar de dificilmente alguém poder considerar que a programação destes canais é sobretudo jornalística ou contribui de algum modo para "o combate à desinformação" - como Rui Rio disse e bem, o valor ali alocado pelo Estado paga também, ou sobretudo, os Big Brothers e os programas da manhã.

Ainda assim surpreendi-me, quando os valores foram conhecidos, com o que calhava ao Observador - menos de 20 mil euros. Se considero a secção de opinião daquele diário e rádio digitais totalmente ridícula, reconheço-lhes bom e por vezes mesmo ótimo jornalismo, pelo que aquela quantia (entretanto retificada pelo Governo: afinal são 90 mil euros) me confirmava a ideia de injustiça de critérios, reforçando a curiosidade quanto à forma de cálculo.

Dei aliás nota da minha surpresa no Twitter, sublinhando a injustiça feita ao Observador, antes de conhecer a reação do seu publisher/administrador, que, atropelando-se de raiva e mencionando várias vezes ter "as tripas às voltas", declarou no site respetivo que o diminuto valor adstrito ao projeto se devia a retaliação governamental: "Como somos independentes, somos incómodos, não passamos recados, não afinamos pelo diapasão do poder, deste poder ou de qualquer outro poder, de resto, este é o resultado."

A seguir, porém, quando a jornalista que o questionava perguntou "Então achas que isto foi uma retaliação política?", não teve sequer a coragem de assumir o que acabara de dizer: "Eu sinceramente não acho nada a não ser uma coisa: que o Governo tem de explicar os critérios." Sinceramente, portanto, José Manuel Fernandes, depois de ter acusado as outras empresas que receberam mais de não serem independentes, de não serem incómodas, de "passarem recados", de "afinarem pelo diapasão do poder", "não acha nada".

Poderíamos ficar por aqui, e com a mesma sinceridade não achando "nada" quanto à hombridade e à credibilidade deste publisher, cuja hipocrisia o Público, em editorial da direção nesta sexta-feira, bem denuncia ao sublinhar que o Observador só recusou a verba depois de a conhecer, tendo participado em toda a discussão com o Governo que antes teve lugar e, de acordo com o secretário de Estado para a Comunicação Social, Nuno Artur Silva, fornecido todos os elementos que lhe foram requeridos para o cálculo dos valores a atribuir.

Poderíamos não achar nada sobre o facto de a empresa só se ter lembrado dos alegados princípios perante a exiguidade da quantia (errada, como se viu) anunciada, optando por instrumentalizar o episódio como propaganda não só contra o Governo como contra todos os outros projetos jornalísticos.

Podíamos não achar nada do facto de, alegadamente em defesa do verdadeiro jornalismo - o do Observador e de mais ninguém - José Manuel Fernandes contribuir com denodo para a narrativa daqueles que como Trump acusam os jornalistas em geral de serem serventuários (do inimigo, claro) e provedores de fake news.

Mas já que estamos a falar de serventuários, talvez seja de lembrar os esquecidos de que este "publicador" que proclama não passar recados nem afinar por diapasões de poder era diretor do Público quando este deu manchete, a um mês das legislativas de 2009, a uma acusação da Presidência da República de Cavaco de que estava a ser "escutada" pelo então Governo.

E que quando foi conhecida, quer através da divulgação de e-mails do jornal quer pela coluna do provedor do leitor do Público (Joaquim Vieira, que acusou o jornal de "permitir que o guião da investigação fosse ditado pela Presidência da República), a génese dessa "notícia" - um sopro do então assessor de imprensa de Cavaco, Fernando Lima, a um funcionário do Público, acompanhado da entrega de um dossiê sobre um adjunto qualquer do Governo -, este "publicador" começou por negar a veracidade dos e-mails para a seguir certificar que fora o Serviço de Informações de Segurança que os tinha "escutado" nos servidores do Público, no que foi desmentido pela administração do jornal, que negou qualquer intrusão exterior.

O episódio incluiu também, segundo o então provedor Joaquim Vieira, acusações do diretor a um jornalista (que primeiro tinha sido encarregado de publicar a "notícia" e que investigando não encontrara qualquer consubstanciação) e ao próprio provedor, assim como a ordem para "vasculhar" todos os e-mails do jornal para se perceber de onde tinha saído a fuga. E acabaria por determinar a saída de Fernandes, em desgraça, da direção do Público logo no mês seguinte.

Esclarecido quem é, verificadamente, soprador de recados e serventuário de poderes, passemos a coisas realmente importantes. Como perceber em que registos de audiências, difusão e publicidade se basearam os cálculos do Governo que resultaram naquelas verbas. Para começar, sugiro que o tão perseguido Observador publique os números que forneceu ao executivo. Custa a crer, mas parece que no meio de tanta tripa revoltosa ninguém lá na administração se lembrou dessa coisa tão simples: factos. Há?

*Jornalista

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