Claro que o apoio do Estado aos
media, através da compra de publicidade institucional, criou polémica: os
critérios, previstos em lei de Passos, não são nem claros nem justos para o
efeito anunciado. Mas ver o Observador a acusar tudo e todos de vendidos porque
lhe coube pouco é realmente impagável.
Fernanda Câncio* | Diário de Notícias
| opinião
Há um mês, escrevi aqui sobre o anunciado apoio do Estado - reparem que
escrevi Estado e não Governo - aos media, antecipando o que era óbvio a
partir da leitura da lei de 2015 que regula a publicidade institucional,
a qual estabelece tiragens, audiências e alcance de difusão como critérios: uma
empresa como a Cofina iria levar uma parte de leão desse apoio.
Chamei a atenção para o facto de
que quer o Presidente da República, através de um desmentido no seu site,
quer o PS, através de uma queixa à Entidade Reguladora da Comunicação Social,
terem nessa mesma semana acusado o Correio da Manhã e a CMTV, ambos
da Cofina, de publicar uma falsidade que, decerto por mais um mero acaso de
muitos iguais, alinhava totalmente com o discurso do líder do Chega: a asserção
de que as medidas especiais para as prisões no âmbito da pandemia iriam "soltar"
pedófilos e homicidas. E de como essa coincidência demonstrava que um
apoio aos media nos termos anunciados não podia servir os efeitos que
a ministra da Cultura propalara, os da "sustentabilidade do
jornalismo", da "promoção de fontes de informação credível e
validada", da "literacia mediática" e do "combate à
desinformação", destinando-se aos projetos "nos quais podemos dar às
pessoas a garantia de que podem confiar".
Sendo evidente para qualquer
conhecedor das regras do jornalismo que os mencionados produtos da Cofina fazem
gala de não as aplicar - lembremos, por exemplo, como aquando de uma ida a
tribunal do pai e da madrasta de Valentina um funcionário da CMTV andou a
perguntar a populares "não acha que este é um caso para justiça popular",
permitindo, com deleite, que estes descrevessem as sevícias medievais que
infligiriam ao progenitor se pudessem -, é-o também que nenhum Governo ou
maioria parlamentar pode estabelecer critérios de qualidade e de
"jornalismo" quando os reguladores, que têm essa incumbência, não o
fazem. Pelo que no mesmo texto reconheci não haver forma de dar a volta à
situação nem de fazer, para efeito deste apoio, a destrinça que a jornalista
Leonete Botelho, presidente de um dos reguladores - a Comissão da Carteira de
Jornalistas -, disse ser fundamental, e que cabe precisamente à instituição que
preside e à Entidade Reguladora para a Comunicação Social: distinguir órgãos
realmente jornalísticos, que fazem jornalismo, dos outros.
Era pois inevitável aquilo que
aconteceu - que a Cofina fosse uma das empresas mais favorecidas nas contas do
apoio. E que as duas TV privadas de sinal aberto - SIC e TVI - levassem outra
parte de leão, apesar de dificilmente alguém poder considerar que a programação
destes canais é sobretudo jornalística ou contribui de algum modo para "o
combate à desinformação" - como Rui Rio disse e bem, o valor ali alocado pelo Estado paga
também, ou sobretudo, os Big Brothers e os programas da manhã.
Ainda assim surpreendi-me, quando
os valores foram conhecidos, com o que calhava ao Observador - menos
de 20 mil euros. Se considero a secção de opinião daquele diário e rádio
digitais totalmente ridícula, reconheço-lhes bom e por vezes mesmo ótimo
jornalismo, pelo que aquela quantia (entretanto retificada pelo Governo: afinal são 90 mil euros) me confirmava a ideia de injustiça
de critérios, reforçando a curiosidade quanto à forma de cálculo.
Dei aliás nota da minha surpresa no
Twitter, sublinhando a injustiça feita ao Observador, antes de
conhecer a reação do seu publisher/administrador, que, atropelando-se de
raiva e mencionando várias vezes ter "as tripas às voltas", declarou no site respetivo que o diminuto
valor adstrito ao projeto se devia a retaliação governamental: "Como
somos independentes, somos incómodos, não passamos recados, não afinamos pelo
diapasão do poder, deste poder ou de qualquer outro poder, de resto, este é o
resultado."
A seguir, porém, quando a
jornalista que o questionava perguntou "Então achas que isto foi uma
retaliação política?", não teve sequer a coragem de assumir o que acabara
de dizer: "Eu sinceramente não acho nada a não ser uma coisa: que o Governo
tem de explicar os critérios." Sinceramente, portanto, José Manuel
Fernandes, depois de ter acusado as outras empresas que receberam mais de não
serem independentes, de não serem incómodas, de "passarem recados",
de "afinarem pelo diapasão do poder", "não acha nada".
Poderíamos ficar por aqui, e com
a mesma sinceridade não achando "nada" quanto à hombridade e à
credibilidade deste publisher, cuja hipocrisia o Público, em editorial da direção nesta sexta-feira, bem denuncia
ao sublinhar que o Observador só recusou a verba depois de a
conhecer, tendo participado em toda a discussão com o Governo que antes teve
lugar e, de acordo com o secretário de Estado para a Comunicação Social, Nuno
Artur Silva, fornecido todos os elementos que lhe foram requeridos para o
cálculo dos valores a atribuir.
Poderíamos não achar nada sobre o
facto de a empresa só se ter lembrado dos alegados princípios perante a
exiguidade da quantia (errada, como se viu) anunciada, optando por
instrumentalizar o episódio como propaganda não só contra o Governo como contra
todos os outros projetos jornalísticos.
Podíamos não achar nada do facto
de, alegadamente em defesa do verdadeiro jornalismo - o do Observador e
de mais ninguém - José Manuel Fernandes contribuir com denodo para a narrativa
daqueles que como Trump acusam os jornalistas em geral de serem serventuários
(do inimigo, claro) e provedores de fake news.
Mas já que estamos a falar de
serventuários, talvez seja de lembrar os esquecidos de que este
"publicador" que proclama não passar recados nem afinar por diapasões
de poder era diretor do Público quando este deu manchete, a um mês
das legislativas de 2009, a
uma acusação da Presidência da República de Cavaco de que estava a ser "escutada" pelo então
Governo.
E que quando foi conhecida, quer
através da divulgação de e-mails do jornal quer pela coluna do provedor do leitor do Público (Joaquim
Vieira, que acusou o jornal de "permitir que o guião da investigação fosse
ditado pela Presidência da República), a génese dessa "notícia" - um
sopro do então assessor de imprensa de Cavaco, Fernando Lima, a um funcionário
do Público, acompanhado da entrega de um dossiê sobre um adjunto qualquer
do Governo -, este "publicador" começou por negar a veracidade dos
e-mails para a seguir certificar que fora o Serviço de Informações de Segurança
que os tinha "escutado" nos servidores do Público, no que foi desmentido pela administração do jornal, que negou
qualquer intrusão exterior.
O episódio incluiu também, segundo o então provedor Joaquim Vieira, acusações do
diretor a um jornalista (que primeiro tinha sido encarregado de publicar a
"notícia" e que investigando não encontrara qualquer consubstanciação)
e ao próprio provedor, assim como a ordem para "vasculhar" todos os e-mails do
jornal para se perceber de onde tinha saído a fuga. E acabaria por
determinar a saída de Fernandes, em desgraça, da direção do Público logo
no mês seguinte.
Esclarecido quem é,
verificadamente, soprador de recados e serventuário de poderes, passemos a
coisas realmente importantes. Como perceber em que registos de audiências,
difusão e publicidade se basearam os cálculos do Governo que resultaram
naquelas verbas. Para começar, sugiro que o tão perseguido Observador publique
os números que forneceu ao executivo. Custa a crer, mas parece que no meio de
tanta tripa revoltosa ninguém lá na administração se lembrou dessa coisa tão
simples: factos. Há?
*Jornalista
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