sábado, 9 de maio de 2020

Portugal | Vozes de burro à solta


Inês Cardoso* | Jornal de Notícias | opinião

Paulo esteve 25 dias isolado com covid, mas continua a esconder a informação de vizinhos e amigos, depois de ter sentido reações negativas que o envergonharam. Lorena Viúla colocou o apartamento que tinha vago junto ao Hospital de Cascais à disposição de profissionais de saúde, mas o primeiro telefonema que recebeu foi da gestão do condomínio, a informar que os vizinhos tinham receio de ser infetados e não permitiam. Laura, funcionária de um lar, foi barrada depois de haver casos positivos na instituição, porque o marido e a filha não a queriam em casa. O presidente da Liga dos Chineses de Portugal insurgiu-se contra a xenofobia em relação a esta comunidade, a ponto de num despacho um juiz fazer referência à covid-19 como "vírus chinês".

Os casos são todos reais e descritos na Imprensa. Mostram o clima de discriminação enfrentado por muitas pessoas devido ao medo causado pelo novo coronavírus. As linhas vermelhas têm sido tantas vezes pisadas que já motivaram dezenas de intervenções da Provedoria de Justiça e da Comissão Nacional de Proteção de Dados.

Não se trata sequer de comportamentos individuais e isolados. Houve autarquias a divulgar nomes e moradas de doentes. Pelo menos num caso, foi publicada a etnia. No início do surto em Portugal, uma autarquia suspendeu uma empreitada simplesmente porque vários trabalhadores eram de Felgueiras, um dos primeiros concelhos afetados.

Há mecanismos biológicos desencadeados pelo medo e é admissível que, num momento inicial, ele dificulte a clareza na análise do risco. Mas convivemos com a covid-19 há mais de dois meses e essa convivência está para durar. Já não há desculpas para reações primárias. A proposta do Chega em relação aos ciganos é tão discriminatória e absurda que só poderia merecer o que mereceu: ser arrumada em três tempos com um golo de trivela. O problema é que, sendo absurda, traduz um racismo latente na sociedade. E, pior ainda, outras estigmatizações mais subtis, e por isso mais difíceis de captar e desconstruir.

*Diretora-adjunta

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