Os portugueses continuam a
aguardar que a União Europeia e o governo da República Portuguesa se pronunciem
sobre a tentativa de invasão da Venezuela patrocinada pelo «presidente
interino» que reconhecem.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A esperança é a última a morrer,
dizem. Daí que o mundo e, por inerência, os portugueses continuem a aguardar
que a União Europeia e o governo da República Portuguesa se pronunciem sobre a
tentativa de invasão da Venezuela patrocinada pelo «presidente interino» que
reconhecem, Juan Guaidó, e cujo «objectivo principal», confessado
contratualmente, era o de capturar, enviar para os Estados Unidos ou assassinar
o presidente legítimo, Nicolás Maduro.
Sabemos que a União Europeia,
depois do período de compungido recolhimento a que se submeteu enquanto os
estados-membros combatiam a peste para defender os seus cidadãos, não tem agora
mãos a medir preparando o «novo normal pós-COVID-19»: oleados canais de
transferência de dinheiro dos contribuintes para as contas das grandes empresas
e os reforçados sacrifícios austeritários a que os cidadãos serão condenados
para reerguer a economia carcomida pelo vírus.
Igualmente se compreende que o
governo de Portugal, desdobrando-se entre «emergências» e «calamidades
públicas», a marcação de lugares nas praias como quem organiza uma grande
parada militar ou as listas de recomendações aos cidadãos, como a de pousarem
as mãos no colo enquanto viajam em transportes públicos, pouco tempo tenha de
sobra para se ocupar do que se passa lá longe – onde aliás vivem mais de um
milhão de portugueses e luso-descendentes.
Mesmo assim, verificando-se que,
a propósito da tentativa de invasão, estão em causa temas tão presentes nos
discursos oficiais como o direito internacional, a soberania das nações, o
terrorismo e os direitos humanos, os acontecimentos parecem dignos de uma
curta-mensagem, um soundbite do ministro Santos Silva, que seja.
Até agora, porém, apenas o
silêncio. Tal como sucedeu em relação ao golpe fascista na Bolívia, que
derrubou um governo em La Paz
tão legítimo como o de Caracas. Um silêncio sonso, que não levanta ondas, não
suscita desdobramentos na comunicação social susceptíveis de alertar ouvidos
porventura menos anestesiados. Um silêncio que pode ser cobarde, cúmplice e
podre, mas é cómodo.
No passado 3 de Maio, tal como em
Novembro, Abril, Fevereiro e Janeiro de 2019, Agosto de 2017 e outras datas que
não vale a pena enfileirar, pois levavam-nos pelo menos até 2002, um bando de
mercenários armados contratados por uma «empresa de segurança» norte-americana
designada Silvercorp, propriedade de um ex-membro das forças especiais dos
Estados Unidos da América, tentou desembarcar na Venezuela. Um contrato
entretanto divulgado por alguns meios de comunicação social, entre eles o
insuspeito Washington Post – e cuja autenticidade foi confirmada por
um dos homens de mão de Guaidó – revelou o «objectivo principal» da missão:
derrubar, prender, enviar para os Estados Unidos ou matar o presidente legítimo
da Venezuela, Nicolás Maduro.
A comunicação social corporativa
e os robots de vários tipos – digitais e humanos – nas redes sociais
tentam desacreditar e até ridicularizar a operação alegando que dezenas de
mercenários infiltrados não teriam capacidade para atingir os propósitos
pretendidos. E que o contrato seria «fake».
Tais interpretações ignoram que o
desembarque partia do pressuposto, tal como em ocasiões anteriores, de que
haveria rebeliões nas forças armadas e de segurança venezuelanas encorajadas
por uma correspondente e simultânea enxurrada de mensagens e dados sobre os
supostos êxitos da invasão.
Basta recuar um ano para
encontrar um exemplo destas práticas. Em 30 de Abril de 2019, o «interino
Guaidó» e o seu parceiro fascista Leopoldo López, depois acoitado na Embaixada
de Espanha em Caracas, puseram a correr pelo mundo, através de órgãos de
comunicação corporativos e das redes sociais, que se encontravam no interior de
uma base militar sediciosa, a qual, juntamente com outras na mesma situação,
tinham iniciado um levantamento para «libertar a Venezuela». Afinal, Guaidó e
López estavam no exterior da base; e, no interior, meia dúzia de efectivos
insurrectos tinham sido facilmente dominados pela guarnição – por sinal alguns
deles integraram agora o contingente que tentou o desembarque no início de
Maio.
Tanto o contrato como as
confissões dos mercenários capturados, entre eles dois cidadãos
norte-americanos ex-membros de forças especiais, conduzem, sem qualquer dúvida,
ao envolvimento da administração Trump nesta operação, embora num quadro que
lhe permitisse negar responsabilidades em caso de fracasso – o que não tardou a
registar-se. Há muito tempo, sobretudo a partir do início deste século, que os
Estados Unidos e as instituições imperiais em geral «terceirizam» guerras e
operações terroristas, incluindo práticas de tortura, para empresas de
segurança, os famosos «contractors», e grupos que podem assumir muitas e
variadas chancelas, incluindo as de «Al-Qaeda» ou «Estado Islâmico».
Juan Guaidó, obviamente, também
negou a participação no fracasso terrorista. No entanto, o seu nome e
assinatura brilham no contrato com a Silvercorp, mais os de alguns dos seus
habituais agentes – um dos quais, JJ Rendón, confirmou a autenticidade do
documento. Na definição da estrutura operacional que pode ser consultada no
contrato o nome de Juan Gerardo Guaidó surge no cargo de «comandante em chefe».
Os depoimentos dos mercenários capturados
pelas forças de defesa venezuelanas revelaram, entretanto, que a escolha da
Silvercorp para realizar o serviço não foi feita por atribuição directa. O
terrorismo funcionou em termos de mercado; deverá dizer-se que houve um
«concurso» em que, pelo menos, participou também a Academi, outrora designada
Blackwater, tão famosa pelos seus crimes e chacinas no Iraque que teve de mudar
de nome para continuar a merecer a confiança do Pentágono. Se dúvidas houvesse
ainda, aqui está, preto no branco, uma marca registada do envolvimento
político-militar norte-americano na operação.
A Silvercorp fez a proposta mais
vantajosa: um preço mais baixo, 212 milhões de dólares, para uma actividade de
495 dias, durante os quais deveria contribuir para o derrube de Maduro, a
instauração de um regime fascista capitaneado por Juan Guaidó e a eliminação
das «forças hostis». E assim chegaria ao poder em Caracas, transitando de
«presidente interino» para ditador, o homem que, segundo o ministro Santos
Silva, nos tempos em que ainda falava sobre os acontecimentos na Venezuela,
garante o caminho para a realização de eleições democráticas e a normalização
da democracia no país.
Cumplicidade à vista
O que temos então, chegados até
aqui?
Mais uma tentativa de golpe na
Venezuela conduzida por Juan Guaidó, o presidente «interino» reconhecido pela
maioria dos países da União Europeia, entre os quais Portugal, com apoio da
administração Trump através de uma empresa que vende operações terroristas.
Uma confissão de tentativa
premeditada de assassínio do presidente Nicolás Maduro e de outros dirigentes
do Estado venezuelano feita por Juan Guaidó através de um contrato arrematado
em Outubro de 2019 para concretizar a «mudança de regime» em Caracas, a
instauração do fascismo no país e a eliminação dos adversários políticos.
Uma operação armada contra um
Estado soberano, neste caso a Venezuela, tentando mesmo tirar proveito das
condições excepcionais criadas pela necessidade de mobilizar todo o aparelho
civil e militar para proteger as populações da pandemia do novo coronavírus.
Perante esta cadeia de
acontecimentos, inequivocamente terroristas e fascistas, contra a democracia, o
direito internacional, os direitos humanos, a União Europeia e o Governo de
Portugal permanecem em silêncio passadas três semanas. Uma atitude que
desrespeita grosseiramente a Constituição da República Portuguesa.
Através do silêncio, Bruxelas e
Lisboa seguem atreladas aos comportamentos criminosos, mafiosos e
irresponsáveis de um indivíduo cada vez mais desacreditado e que apenas
sobrevive no activo como «interino» por ser uma marioneta privada de figuras
como Trump, Pompeo e o senador fascista Marco Rubio. Grande parte dos acólitos
e de grupos políticos que lhe eram afins já desertaram – alguns dialogam com o
governo dentro da ordem constitucional. A sua «popularidade» medida em
sondagens anda pelos dez por cento.
Podemos ir um pouco mais além e
suspeitar objectivamente da inocência deste silêncio. Quando os cães de guerra
se abeiraram das costas venezuelanos é sabido que não estavam sós nas
imensidões atlânticas, alguém lhes protegia as intenções sabendo-se que navios
de guerra norte-americanos, franceses e britânicos têm estado activos na região
– «contra o narcotráfico» e «contra o COVID-19», naturalmente – e que as Antilhas
Holandesas vão servindo de base para múltiplas actividades contra Caracas; e
até um navio de bandeira portuguesa chegou a entrar em cena abalroando
recentemente uma pequena embarcação da Guarda Costeira da Venezuela não se sabe
bem com que propósito – suspeitando o governo venezuelano de actividades
relacionadas com transporte de mercenários. Será?
De que não existem dúvidas é do
silêncio da União Europeia e do governo português em relação às actividades
terroristas de desestabilização da Venezuela comandadas em chefe por Juan
Guaidó, que ainda é, até dito em contrário, o «presidente interino» reconhecido
por Bruxelas e Lisboa. E continua a sê-lo mesmo depois de assinar um contrato
em que uma das cláusulas é a captura ou o assassínio de um chefe de Estado
constitucional de um Estado soberano.
O ministro Santos Silva costuma
tornar públicas as suas aversões de estimação. Devemos então concluir do
silêncio nestas circunstâncias que nem o criminoso Guaidó nem o terrorismo como
arma política estão na sua lista.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril | Imagem: US Department of State
Sem comentários:
Enviar um comentário