Julga-se que ser são é aderir ao
normal — mas a tentativa de segurança permanente é o que adoece. Recorrer à dor
e à angústia, inconformar-se e arriscar são elementos essenciais para a
reconstrução contínua de uma vida saudável
Túlio Coimbra | Outras Palavras
Simão Bacamarte, O Alienista de
Machado de Assis, acreditava que a ciência tinha o poder de estabelecer de
forma absoluta a linha que dividia a normalidade da loucura. Médico respeitado,
viajou pela Europa e pelo Brasil e resolveu voltar para a sua cidade natal,
Itaguaí, onde criou o manicômio Casa Verde.
Inveterado defensor do rigor
científico, dizia ele “a ciência é o meu emprego”. Advogava que a divisão entre
a razão e o desvario era fruto de uma linha clara, de tal modo que incumbia a
ele, cientista circunspecto, separar os loucos da população sã da cidade.
Com o desenrolar do enredo, todos
aqueles que desviavam da sanidade esperada, que apresentavam uma falha de
caráter, que carregavam agruras e sofrimentos, terminavam por ser internados no
manicômio Casa Verde.
Quando quase a totalidade da cidade estava internada no hospício, ele percebe que havia algo de errado com sua teoria, e assim resolve invertê-la, postulando, ao contrário, que na verdade eram aqueles que tinham a personalidade em perfeita conformidade com o esperado — que portavam o equilíbrio perfeito e concatenado de suas funções — que eram os loucos. Seguindo essa linha à risca, as internações novamente se intensificaram, até o ponto em que ele se frustra, percebendo mais uma vez que havia equívocos em sua doutrina.
Por fim, percebe que era ele o
único que tinha as faculdades psíquicas intocadas, balanceadas e em perfeito
funcionamento. Conclui, de uma vez por todas, que só podia ser ele o único
louco da cidade. Fiel à Razão, resolve se internar na Casa Verde, onde morre
só.
Quase 150 anos após a publicação
de O Alienista, há ainda quem ouse precisar de forma definitiva a
separação entre o normal e o patológico.
Hoje, é a expressão saúde mental
que está em alta. Aqui
e acolá, na mídia e nas ruas, em casa e no trabalho se diz: para viver bem, é
preciso ter saúde mental.
Mas, afinal, o que é saúde
mental?
Temos a impressão de que a saúde
mental é uma espécie de condição, um ponto que, atingido, nos permitiria manter
uma relação mais saudável e equilibrada seja com nós mesmos, seja com o mundo a
nossa volta.
Algo como um ponto de harmonia,
um realinhamento de chacras que nos permitiria estarmos de bem com o mundo que
habitamos; o ápice tão esperado de um momento sem conflitos, em que a angústia,
a dor, o sofrimento e o desespero já não fariam mais morada. Munidos da tão
desejada saúde mental, arrimo do nosso ideal de normalidade e sanidade, acredita-se que poderíamos ter uma vida mais plena.
Nessa concepção, a saúde mental é
causa: causa de equilíbrio; de normalidade; de saúde; de paz e plenitude. A
receita é simples: “afasta-te do sofrimento, do que te fazes mal, e terás
saúde, prazer e felicidade!” De um lado, a doença, o mal-estar, o infortúnio, a
miséria, o desprazer e o desvio. De outro, a saúde, o bem-estar, a sorte, a pujança,
o prazer e a retidão. Polos opostos, divididos de forma clara e expressa.
Decerto, parece que vivemos ainda
sob a sombra das tentações de Simão Bacamarte. A ideia que paira ainda é de que
haveria uma separação simples e direta de atributos universais que comporiam
estados de saúde e estados de doença mental.
Todavia, no que se refere à saúde
mental, o recado é evidente: esses referenciais não são tão transparentes. Pois
a saúde mental não se resume ao perfeito equilíbrio das faculdades mentais, como
queria o alienista machadiano.
A vida obstaculiza a saúde, e sua
manutenção não pode depender da obediência restrita de um receituário comum do
tipo: “sorria! seja empático e positivo! faça o bem! gratidão!”
O que essa visão procura negar é
o fato concreto de que, na vida, haverá enrascadas, e o sofrimento pode ser
precisamente o combustível necessário para a superação desses impasses, a força
de que precisávamos para nos libertar deles.
Em quantas ocasiões o controle e
o equilíbrio de uma dada situação não bastam, e ainda assim somos atropelados
pela insatisfação e pelo sofrimento. Ora, e não é justamente o sofrimento, o
mal-estar e angústia que marcam o protesto de uma vida inconformada com sua
configuração e com as normas que a regem?
Sabemos que, em algum momento,
somos naturalmente forçados a reconstituir nossas vidas. E, só depois, ao
olharmos para trás, é que somos capazes de vermos que a aparente estabilidade
daquele arranjo vital era justamente a razão que nos atava a ele.
Foi preciso perceber que a
estabilidade já não era mais condição suficiente para produzir satisfação e
saúde.
É nesse contexto que a
normalidade não se identifica à saúde.
Nesse caso, o percurso em direção
a uma outra vida — uma vida mais saudável propriamente — nutre-se paradoxalmente
da dor, da tristeza, da angústia, que se situam não mais como manifestações
doentias, mas como condições da mudança e motores da transformação.
Portanto, algo se delineia: a
saúde não se reduziria à capacidade de cumprir com prescrições de saúde, mas,
em sentido oposto, deve incluir o potencial de desrespeitar essas mesmas
injunções.
Quando encaramos o problema
assim, vemos que esses polos — entre a saúde e a doença — se embaralham.
Nesse sentido, a vida normal — ao
menos da forma como usualmente a compreendemos — deseja afastar da vida seu
aspecto fundamental: o imprevisível, o instável, que desarticula e
desestabiliza a norma, e que, por isso, mesmo, exige a definição de novas normas
para se viver.
A vida normal visa eliminar da
própria vida as possibilidades e os riscos de ser outra vida. Só assim
percebemos que uma vida normal — que significa forte adesão a normas — não
necessariamente é saudável. Cada instante — em sua absoluta especificidade —
exige de nós atitudes, posturas, afetos e respostas absolutamente diferentes.
É George Canguilhem, célebre
filósofo e médico francês, em seu conhecido O Normal e o Patológico, quem
costumava dizer que a “(…) saúde é a possibilidade de tolerar infrações à norma
habitual e de instituir normas novas em situações novas.”
Cola-se a saúde à normalidade
para justamente amputar da vida o seu traço essencial: a errância, que
reivindica incessantemente a reconstituição de si através outras normas. Logo,
a saúde, de tempos em tempos, é justamente o que desestabiliza a norma, o que a
contraria. Há algo na saúde que teima em não se deixar recobrir pela norma.
Dito isso, fica claro que a
manifestação de desequilíbrios não necessariamente suspende um estado de saúde,
mas pode exatamente expressar-se como um caminho em direção a ele, como um meio
de produzi-lo. Pois se o sujeito está em perpétua interação com um entorno
cambiante, o que a saúde impõe como lei é uma certa decomposição e
recomposição permanente de si.
recomposição permanente de si.
A saúde mental, portanto,
consiste numa certa relação dinâmica com normas de vida. Desse modo, sua
definição não pode se reduzir à expressão de determinados afetos ou à
manutenção de certos quadros de comportamentos. Seu sentido deve ser sempre
algo impreciso, deixar brechas, e não pode se determinar plenamente.
Porque a saúde não se esgota em
normas enunciadas, mas, ao contrário, só se efetiva enquanto tal quando insiste
em desobedecê-las.
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