domingo, 17 de maio de 2020

Saúde mental é poder desrespeitar normas


Julga-se que ser são é aderir ao normal — mas a tentativa de segurança permanente é o que adoece. Recorrer à dor e à angústia, inconformar-se e arriscar são elementos essenciais para a reconstrução contínua de uma vida saudável

Túlio Coimbra | Outras Palavras

Simão Bacamarte, O Alienista de Machado de Assis, acreditava que a ciência tinha o poder de estabelecer de forma absoluta a linha que dividia a normalidade da loucura. Médico respeitado, viajou pela Europa e pelo Brasil e resolveu voltar para a sua cidade natal, Itaguaí, onde criou o manicômio Casa Verde.

Inveterado defensor do rigor científico, dizia ele “a ciência é o meu emprego”. Advogava que a divisão entre a razão e o desvario era fruto de uma linha clara, de tal modo que incumbia a ele, cientista circunspecto, separar os loucos da população sã da cidade.

Com o desenrolar do enredo, todos aqueles que desviavam da sanidade esperada, que apresentavam uma falha de caráter, que carregavam agruras e sofrimentos, terminavam por ser internados no manicômio Casa Verde.

Quando quase a totalidade da cidade estava internada no hospício, ele percebe que havia algo de errado com sua teoria, e assim resolve invertê-la, postulando, ao contrário, que na verdade eram aqueles que tinham a personalidade em perfeita conformidade com o esperado — que portavam o equilíbrio perfeito e concatenado de suas funções — que eram os loucos. Seguindo essa linha à risca, as internações novamente se intensificaram, até o ponto em que ele se frustra, percebendo mais uma vez que havia equívocos em sua doutrina.

Por fim, percebe que era ele o único que tinha as faculdades psíquicas intocadas, balanceadas e em perfeito funcionamento. Conclui, de uma vez por todas, que só podia ser ele o único louco da cidade. Fiel à Razão, resolve se internar na Casa Verde, onde morre só.




Quase 150 anos após a publicação de O Alienista, há ainda quem ouse precisar de forma definitiva a separação entre o normal e o patológico.

Hoje, é a expressão saúde mental que está em alta. Aqui e acolá, na mídia e nas ruas, em casa e no trabalho se diz: para viver bem, é preciso ter saúde mental.

Mas, afinal, o que é saúde mental?

Temos a impressão de que a saúde mental é uma espécie de condição, um ponto que, atingido, nos permitiria manter uma relação mais saudável e equilibrada seja com nós mesmos, seja com o mundo a nossa volta.

Algo como um ponto de harmonia, um realinhamento de chacras que nos permitiria estarmos de bem com o mundo que habitamos; o ápice tão esperado de um momento sem conflitos, em que a angústia, a dor, o sofrimento e o desespero já não fariam mais morada. Munidos da tão desejada saúde mental, arrimo do nosso ideal de normalidade e sanidade, acredita-se que poderíamos ter uma vida mais plena.

Nessa concepção, a saúde mental é causa: causa de equilíbrio; de normalidade; de saúde; de paz e plenitude. A receita é simples: “afasta-te do sofrimento, do que te fazes mal, e terás saúde, prazer e felicidade!” De um lado, a doença, o mal-estar, o infortúnio, a miséria, o desprazer e o desvio. De outro, a saúde, o bem-estar, a sorte, a pujança, o prazer e a retidão. Polos opostos, divididos de forma clara e expressa.

Decerto, parece que vivemos ainda sob a sombra das tentações de Simão Bacamarte. A ideia que paira ainda é de que haveria uma separação simples e direta de atributos universais que comporiam estados de saúde e estados de doença mental.

Todavia, no que se refere à saúde mental, o recado é evidente: esses referenciais não são tão transparentes. Pois a saúde mental não se resume ao perfeito equilíbrio das faculdades mentais, como queria o alienista machadiano.

A vida obstaculiza a saúde, e sua manutenção não pode depender da obediência restrita de um receituário comum do tipo: “sorria! seja empático e positivo! faça o bem! gratidão!”

O que essa visão procura negar é o fato concreto de que, na vida, haverá enrascadas, e o sofrimento pode ser precisamente o combustível necessário para a superação desses impasses, a força de que precisávamos para nos libertar deles.

Em quantas ocasiões o controle e o equilíbrio de uma dada situação não bastam, e ainda assim somos atropelados pela insatisfação e pelo sofrimento. Ora, e não é justamente o sofrimento, o mal-estar e angústia que marcam o protesto de uma vida inconformada com sua configuração e com as normas que a regem?

Sabemos que, em algum momento, somos naturalmente forçados a reconstituir nossas vidas. E, só depois, ao olharmos para trás, é que somos capazes de vermos que a aparente estabilidade daquele arranjo vital era justamente a razão que nos atava a ele.

Foi preciso perceber que a estabilidade já não era mais condição suficiente para produzir satisfação e saúde.

É nesse contexto que a normalidade não se identifica à saúde.

Nesse caso, o percurso em direção a uma outra vida — uma vida mais saudável propriamente — nutre-se paradoxalmente da dor, da tristeza, da angústia, que se situam não mais como manifestações doentias, mas como condições da mudança e motores da transformação.

Portanto, algo se delineia: a saúde não se reduziria à capacidade de cumprir com prescrições de saúde, mas, em sentido oposto, deve incluir o potencial de desrespeitar essas mesmas injunções.

Quando encaramos o problema assim, vemos que esses polos — entre a saúde e a doença — se embaralham.

Nesse sentido, a vida normal — ao menos da forma como usualmente a compreendemos — deseja afastar da vida seu aspecto fundamental: o imprevisível, o instável, que desarticula e desestabiliza a norma, e que, por isso, mesmo, exige a definição de novas normas para se viver.

A vida normal visa eliminar da própria vida as possibilidades e os riscos de ser outra vida. Só assim percebemos que uma vida normal — que significa forte adesão a normas — não necessariamente é saudável. Cada instante — em sua absoluta especificidade — exige de nós atitudes, posturas, afetos e respostas absolutamente diferentes.

É George Canguilhem, célebre filósofo e médico francês, em seu conhecido O Normal e o Patológico, quem costumava dizer que a “(…) saúde é a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas.”

Cola-se a saúde à normalidade para justamente amputar da vida o seu traço essencial: a errância, que reivindica incessantemente a reconstituição de si através outras normas. Logo, a saúde, de tempos em tempos, é justamente o que desestabiliza a norma, o que a contraria. Há algo na saúde que teima em não se deixar recobrir pela norma.

Dito isso, fica claro que a manifestação de desequilíbrios não necessariamente suspende um estado de saúde, mas pode exatamente expressar-se como um caminho em direção a ele, como um meio de produzi-lo. Pois se o sujeito está em perpétua interação com um entorno cambiante, o que a saúde impõe como lei é uma certa decomposição e
recomposição permanente de si.

A saúde mental, portanto, consiste numa certa relação dinâmica com normas de vida. Desse modo, sua definição não pode se reduzir à expressão de determinados afetos ou à manutenção de certos quadros de comportamentos. Seu sentido deve ser sempre algo impreciso, deixar brechas, e não pode se determinar plenamente.

Porque a saúde não se esgota em normas enunciadas, mas, ao contrário, só se efetiva enquanto tal quando insiste em desobedecê-las.

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