Fracasso norte-americano revela
como se tornou frívola a arrogância do norte diante do sul. E a ideia de uma natureza disponível e consumível – típica da bíblia que o ocidente adotou –
desaba sob o peso do sistema que ela própria concebeu
Boaventura de Sousa Santos*
Outras Palavras | Imagem: Michael A. McCoy
Dizia Santo Agostinho: “O que é o
tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei. Se alguém me perguntar, eu não sei”. O
enigma do tempo deriva do facto de o tempo, por ser mudança, não se deixar
aprisionar em medições estanques. Há sempre um antes e um depois que fica
fatalmente de fora de qualquer medição. Foi por esta razão que as ciências
sociais e as humanidades inventaram as estruturas – modos de pôr o tempo entre
parêntesis. Mas a grande razão do enigma é que o tempo, enquanto mudança, é
ambíguo, já que tanto significa mutação como cristalização da mutação. Vejamos
as duas perguntas seguintes. Por quanto tempo nos vamos lembrar da pandemia?
Como vai a pandemia caracterizar o “nosso” tempo? A primeira pergunta aponta
para mudança e a segunda para cristalização da mudança. Por essa razão, o facto
de, eventualmente, nos esquecermos da pandemia não significa que a pandemia se
esqueça de nós. Lembrar-se-á sempre pela marca que imprimirá às consequências,
adaptações e hábitos que decorrerão dela, mesmo que nós as atribuamos a outras
causas.
Qual será a marca da pandemia do
novo coronavírus? A resposta é, por enquanto, especulativa, mas merece a pena
ensaiá-la. Penso que vai provocar um abalo tectónico no nosso modo de ver e
sentir a sociedade em duas linhas de fratura: a hierarquia temporal entre o
antes e o depois, e a hierarquia natural entre o inferior e o superior. As
opções serão a prazo dramáticas e, no melhor dos casos, duas novas ordens
temporais emergirão com destaque: contemporaneidade e complementaridade. Nas
suas versões hegemónicas (liberal e marxista), o pensamento eurocêntrico é
dominado pelo evolucionismo, nos termos do qual a relação entre o antes e o
depois é sempre uma relação entre o pior e o melhor. Esta ideia tem sido
expressa de muitas formas: civilização, progresso, desenvolvimento,
globalização. Foi esta ideia que, sobretudo a partir do século XIX, consolidou
a divisão do mundo entre o norte e o sul. Os países do sul global, que em
grande parte estiveram sujeitos ao colonialismo europeu, foram considerados
países de povos primitivos, atrasados, do terceiro mundo, subdesenvolvidos. A
hierarquia temporal foi a justificação para a hierarquia económica, social,
política, cultural e epistémica.
Os EUA estão “protegidos” de
interferência e de invasão por dois oceanos. Quando se sentiram ameaçados na
fronteira sul começaram a construir milhares de quilómetros de muro,
insondáveis eletrificações e vigilâncias e internaram os potenciais invasores
em campos de concentração, incluindo crianças. O coronavírus é o primeiro
invasor da história dos EUA, um invasor cuja força não pode ser neutralizada
pelo poderio militar. Por ser tão novo, até lhes custa a crer que seja de facto
um invasor. De tão habituados a invadir países, os EUA tiveram uma real
dificuldade em se porem na pele do invadido. Perante tal invasor, revelaram a
mesma debilidade que sempre imaginaram ser a dos países que invadiram, tantas
vezes impunemente. Só que, desta vez, a debilidade é real. Os EUA imaginaram
armas de destruição em massa no Iraque, que facilmente poderiam neutralizar.
Agora, parecem ser vítimas de uma arma real, e não imaginária, de que não
parecem ser capazes de se defender.
A pandemia não inverte as atuais
hierarquias no sistema mundial. Este assenta em três dominações: o capitalismo,
o colonialismo e o patriarcado. Enquanto elas se mantiverem, o Norte global
continuará a impor as suas regras desiguais ao Sul global. O que a pandemia
revela é que não é a superioridade que gera a hierarquia, é a hierarquia que
gera a superioridade. Revela, também, que a hierarquia temporal é o resultado
de uma violenta amputação de tempos históricos. Os países do Sul não vieram
depois, não chegaram “atrasados” à história global. Existiam antes e por vezes
com culturas milenares que antecederam o contacto com o Norte. São posteriores
porque o colonialismo separou violentamente o seu passado do seu futuro. A
pandemia abre a oportunidade para uma transformação epistémica, cultural e
ética que permita ver a diversidade entre países como diferentes formas de a
sociedade global ser contemporânea de si mesma. E a diversidade não enriquece a
experiência do mundo senão pela via da complementaridade. O que só será
possível na exata medida em que forem ganhando força as lutas anticapitalistas,
anticolonialistas e antipatriarcais.
A segunda hierarquia, essa
arquetípica, da modernidade eurocêntrica é a hierarquia natural, a que define,
ex natura, o inferior e o superior. Tem muitas vertentes. Interessa-me
aqui apenas uma delas. A hierarquia entre a natureza e a sociedade/humanidade.
Curiosamente, a hierarquia natural tem implícita uma hierarquia temporal, mas
inversa da anterior. Neste caso, quem vem depois é superior a quem esteve
antes. Esta narrativa natural-temporal é muito específica e contextual, e
muitas outras narrativas competiram com ela, dando conta de outros modos de
conceber as relações entre a natureza e a humanidade. Como sabemos, a Bíblia
não é um documento ocidental, longe disso, mas foi cedo apropriada pelo
cristianismo ocidental e convertida em ordem filosófica natural. Na ordem
bíblica da criação, o ser humano é a última criação, aquela em que o criador
pôs mais complacências. A partir do século XVI, a superioridade natural do ser
humano transformou-se no privilégio de submeter a natureza aos seus interesses
e desígnios. Esse privilégio foi como que uma compensação para a inferioridade
esmagadora do ser humano em relação à divindade. A infinitude indisponível com
que a divindade se impunha ao ser humano foi compensada com a infinitude
disponível da natureza, a natureza infinita, infinitamente disponível para
servir a humanidade.
Também esta hierarquia está a ser
desestabilizada pela pandemia, tanto pelo que ela é como pelo que através dela
se anuncia. A sociedade global não está em guerra defensiva ante o vírus. Como
tenho escrito, não penso que a metáfora da guerra nos ajude a compreender a
condição do nosso tempo. Mas se há guerra, então faz mais sentido imaginar que
quem está a se defender é a natureza. O novo coronavírus é um emissário que só
insidiosa e violentamente impõe a sua missão de ser recebido pelos poderes do
mundo. E a sua mensagem é clara: um basta! Dito na única linguagem
em que aprendemos a temer a natureza, a linguagem dos perigos que não podem
transformar-se em riscos seguráveis. É hoje consensual que a recorrência das
pandemias está ligada aos modelos de economia que dominaram nos últimos
séculos. Estes modelos provocaram a desestabilização fatal dos ciclos vitais de
regeneração da natureza, e, portanto, de toda a vida que compõe o planeta e de
que a vida humana é uma ínfima fracção. A poluição atmosférica, o aquecimento
global, os acontecimentos meteorológicos extremos e a iminente catástrofe
ecológica são as manifestações mais evidentes dessa desestabilização. O basta! é
um grito cujos decibéis se medem pelo número de mortos.
Tal como aconteceu com a
hierarquia temporal, para que a sociedade humana escute este grito, o entenda e
se disponha a tomá-lo em conta tem de passar uma transformação epistémica,
política e ética. A natureza e a humanidade são contemporâneas e
complementares. A natureza somos nós vistos do outro lado da dicotomia. E,
dessa perspectiva, considerar a natureza como totalmente disponível e
consumível e empenhar-se na exploração sem limite dos recursos naturais foi um
processo histórico de autodestruição. O conceito de autonomia da humanidade em
relação à animalidade natural, de que tanto falavam Theodor Adorno e Max
Horkheimer – embora compreensível no contexto histórico em que o fizeram – tem
de ser substituído por um conceito de autonomia sustentável, construída na
complementaridade com a vida do planeta no seu conjunto. A autonomia que
implica a escravatura do outro acaba sempre em auto-escravização. Ser
escravo desta autonomia vale o mesmo eticamente que a autonomia dos escravos.
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Título original:
A difícil construção do contemporâneo e do complementar
A difícil construção do contemporâneo e do complementar
*BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Doutorado em Sociologia do
Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa.
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