Em plena pandemia, a
administração Trump pôs em vigor a chamada «Lei César» para reforçar
brutalmente as já muito restritivas sanções que se fazem sentir no dia-a-dia
vivido por cada cidadão da Síria.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A operação genocida montada pela
administração Trump e o Conselho Europeu, em tempos de pandemia, contra a
esmagadora maioria do povo da Síria passa entre os pingos da chuva da
comunicação social corporativa e avança em todo o terreno sem que as Nações
Unidas manifestem a menor intenção de travar a tragédia recaindo sobre pelo
menos 17 milhões de pessoas.
Israel deu o exemplo em Gaza,
submetendo dois milhões de pessoas a um universo concentracionário que se
prolonga há muitos anos. As administrações Obama e Trump, mais o Conselho que
representa os governos da União Europeia seguem o mesmo caminho na Síria – e em
outros países, como se sabe – eventualmente com falinhas mais mansas e
pretensos objectivos libertadores e humanitários cuja simples invocação retrata
o desumano cinismo de quem assim se comporta.
Falemos especificamente da
tragédia que se vive na Síria, de uma actualidade flagrante que não encontra
correspondência junto de quem se limita a consumir as matérias envenenadas da
comunicação dominante.
Em plena pandemia de COVID-19, a administração de Donald
Trump pôs em vigor a chamada «Lei César» para reforçar brutalmente as já muito
restritivas sanções que se fazem sentir no dia-a-dia de guerra vivido por cada
cidadão da Síria; e alguns dias antes, em 28 de Maio, o Conselho Europeu
decidiu prorrogar por mais um ano as sanções que estão em vigor desde 2011 –
supostamente contra «o regime» mas que recaem sobre a população. Por exemplo,
proibir a importação de petróleo num país onde os recursos petrolíferos estão
sob controlo de tropas de ocupação norte-americanas ou de grupos terroristas
por elas tutelados retrata em corpo inteiro o «humanismo» dos governantes
europeus perante uma população que, além de resistir contra uma agressão estrangeira
tem de se desdobrar, com absoluta penúria de energia, na guerra contra o novo
coronavírus.
O comportamento das castas
dominantes transatlânticas com ambições globalistas tem uma designação:
genocídio. E os europeus que não apontem o dedo a Trump, estão ao mesmo nível
ilegal e criminoso.
Vingança raivosa
Aquilo a que estamos a assistir
na Síria, a condenação de um povo à fome e à doença, é uma vingança raivosa. Os
países e os interesses que apostaram numa guerra contra a Síria através de
intermediários terroristas vingam-se da derrota que sofreram castigando uma
população que resistiu e, passo-a-passo, conseguiu libertar quase todo o país
das ocupações que sofreu.
A vingança orienta-se num sentido
prioritário: impedir a reconstrução do país; e deixar o povo numa situação em
que não tenha meios, nem saúde nem ânimo para encontrar caminhos que possam ser
alternativos.
«Atirámos com tudo, menos as pias
de cozinha, para dentro da Lei César», orgulha-se o «enviado» de Donald Trump
para a Síria, James Jeffrey, falando do espectro total abrangido agora pelas
sanções norte-americanas, somadas às europeias.
A «Lei César» destina-se, dizem
os autores – bipartidários no Congresso dos Estados Unidos –, à «protecção
civil» dos sírios. Por aqui se mede a hipocrisia dos legisladores de ilegal
vocação supranacional: «proteger» uma população matando-a à fome e entregando-a
à pandemia até que se revolte e promova a «mudança de regime» ansiada em
Washington e Bruxelas. No léxico «ocidentalez» estamos no domínio da defesa dos
direitos humanos, da civilização e das liberdades políticas.
A origem da designação «César»
para a lei de sanções é, só por si, um exercício de provocação política.
«César» é o «anónimo» cidadão supostamente sírio que em 2014 revelou ter em seu
poder 55 mil fotografias de vítimas das «atrocidades do regime». O espólio não
resistiu a uma análise independente que, em 30 páginas, demonstrou que cerca de
metade dos instantâneos correspondiam a carnificinas cometidas pelos «rebeldes
moderados» e outros heterónimos da al-Qaeda e Isis contra as populações civis.
O próprio Christian Science Monitor, órgão norte-americano da constelação
corporativa, reconheceu na altura que o caso das 55 mil fotografias foi «uma
oportuna acção de propaganda financiada pelo Qatar».
Quando Jeffrey diz que «atirámos
com tudo» para a «Lei César» é mesmo tudo. Empresas e entidades, colectivas ou
individuais, ficam impedidas de negociar com a Síria sob a ameaça de multas
colossais e sequestro de activos. Nem materiais de construção, nem alimentação,
nem energia – como estabeleceu a União Europeia – nem medicamentos,
equipamentos médicos, remessas de refugiados e emigrantes e outros produtos de
primeira necessidade poderão ser importados pela Síria.
Ou seja, os países e interesses
que submeteram a Síria ao conflito são os mesmos que impedem a reconstrução –
para prolongar a guerra agora por outros meios terroristas além da violência
militar. Até à desejada capitulação.
Excepções confirmam a regra do
terrorismo
O novo pacote de sanções norte-americanas
não inova muito, mas reforça o âmbito abrangente da agressão e a perenidade dos
seus efeitos. Os sírios já conhecem as vicissitudes das sanções com que têm de
se deparar no terreno mesmo depois de terem vencido as anteriores fases de
guerra.
Um exemplo. Quando o exército
regular e a resistência nacional libertaram a região de Alepo, cerca de 500 mil
pessoas tentaram regressar às suas residências e propriedades, muitas delas
destruídas. Para a reconstrução conseguiram contar com materiais plásticos, mas
não com cimento e vidro, produtos que não podem entrar no país. Como herança de
uma guerra vitoriosa, aos sírios foi permitido voltar para barracas e
construções precárias, não para as habitações que tinham sido obrigados a
deixar.
Em compensação, os grupos
terroristas da al-Qaeda e do Isis tiveram betão de sobra – graças a milhões de
toneladas fornecidas pelo grupo transnacional francês Lafarge – para construir
bunkers e labirintos subterrâneos através dos quais multiplicaram as suas
actividades terroristas.
É desta cooperação íntima entre a
«civilização» corporativa e o terrorismo dito «islâmico» que fala a «Lei César»
quando assegura que as sanções não são aplicáveis em regiões sírias como Idlib
ou o «Rojava» alegadamente curdo, ou ainda outros territórios sob o controlo
das Forças Democráticas Sírias e demais heterónimos sob o chapéu da NATO.
Idlib, recorda-se, está em poder de uma parceria formada pela al-Qaeda e tropas
turcas de ocupação, confirmando-se que a excepção confirma a regra do
terrorismo, agora reforçado pela «Lei César» e as renovadas sanções europeias.
Neste quadro é de uma lógica naturalíssima que Washington incentive os
«aliados» a investir nos territórios sob ocupação terrorista aquilo não permite
na Síria libertada. Se dúvidas ainda houvesse sobre quem são os patrões dos
mercenários «islâmicos»…
Estratégia integrada
A estratégia integrada da nova
fase da agressão à Síria não se resume à trilogia formada por violência militar
e terrorismo mais sanções, mais pandemia. Há um quarto elemento, comprovando
sempre que o alvo a abater é o povo sírio: o fogo.
Nestas semanas de renovação das
sanções europeias e de intensificação das penalizações de Washington têm-se
multiplicado os fogos devastadores contra campos agrícolas sírios tanto do
Norte como no Sul – tarefas cuja autoria é repartida pela constelação de grupos
terroristas e pelas próprias tropas norte-americanas de ocupação.
Além de não poderem contar com
alimentos importados, as populações sírias estão impedidas de colher os que
produzem.
O silêncio das Nações Unidas e do
seu secretário-geral sobre estas realidades que representam a punição
arbitrária e totalitária do povo de um dos mais antigos e históricos Estados do
planeta é revelador da situação em que se encontra a chamada «comunidade
internacional», verdadeira cúmplice de guerras e actos genocidas.
E uma vez que a falta de
alimentos e de energia na Síria se tornou gritante, os preços sobem
vertiginosamente, a par da multiplicação dos efeitos do terrorismo cambial
imposto pela «Lei César» e respectivas réplicas europeias. Washington postulou
que o Banco Central da Síria é «uma instituição de lavagem de dinheiro», pelo
que as suas actividades internacionais devem ser impedidas – do mesmo modo que
já anteriormente o Conselho Europeu congelara os activos do banco. Resultado: a
libra síria passou do valor de 650 por dólar em Outubro último para 2600 por
dólar actualmente, com os inerentes problemas para a população.
Nesta matéria, porém, também
existem excepções. Certamente com o conhecimento e o beneplácito da Casa
Branca, da União Europeia e da NATO, a Turquia pôs em circulação a sua moeda, a
libra turca, nas regiões sírias ainda sob ocupação terrorista, concentradas no
Norte e Nordeste do território. Mais uma prova do enlace entre o terrorismo e o
atlantismo e também a demonstração de que um dos objectivos da guerra é desmembrar
o Estado sírio – como o único que ainda representa uma sombra regional
para Israel. Está nos anais da História, embora não daquela que é explicada aos
cidadãos, que a guerra contra a Síria começou depois de o presidente sírio,
Bachar Assad, ter rejeitado uma «sugestão» da secretária de Estado
norte-americana, então a democrata Hillary Clinton, no sentido de tornar mais
«flexíveis» as relações com o Estado sionista.
O papel da solidariedade
James Jeffrey, o «enviado» de
Trump já atrás citado, é um homem muito dotado a sintetizar actividades
criminosas em soundbites de fácil circulação.
«O meu trabalho é criar um
atoleiro para os russos», explica ele sobre os objectivos da «Lei César». Faz
todo o sentido: o povo sírio ficará muito mais à mercê da fome, da pandemia e
da guerra sem o apoio militar e civil que a Rússia tem dado à libertação e à
manutenção da integridade territorial da Síria.
Claro que as intenções do carteiro
de Trump não se transformam em realidade só por brandir um slogan com fácil
receptividade e repercussão.
Independentemente da resposta que
a Rússia vier a dar a esta nova situação, há uma componente de solidariedade da
cidadania internacional que pode desenvolver-se através dos canais abertos por
países que estão dispostos a subverter as sanções ilegais impostas contra a
Síria – ilegais por muito que os governos europeus aleguem estar sintonizados
com resoluções da ONU. Pois claro, a destruição da Líbia pela NATO também se
fez a coberto de interpretações de resoluções da ONU e nem por isso foi legal.
A solidariedade cidadã deve e
pode manifestar-se sobretudo nos países cujos governos são cúmplices das
sanções genocidas, exactamente porque os povos não querem sê-lo. Daí que devam
meter mãos à obra para fazer chegar aos sírios aquilo que arbitrariamente lhes
é negado. Espaço e condições para isso existem, imaginação, unidade e acção
também não irão faltar. Trata-se de combater um genocídio friamente programado
e aplicado.
Imagem: Soldados norte-americanos
em patrulha no nordeste da Síria, a 30 de Janeiro de 2020. Os EUA ocupam
ilegalmente essa rica região petrolífera da Síria, na confluência de fronteiras
com a Turquia e o Iraque / Staff Sgt. Jodi Eastham / US Army
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