A
União Europeia guarda sobre a execução extrajudicial de George Floyd e o
racismo congénito nos EUA a mesma discrição que assumirá quando Israel fizer
flutuar a bandeira sionista no Vale do Jordão.
José
Goulão | AbrilAbril | opinião
Benjamin
Netanyahu, o aparentemente eterno primeiro ministro de Israel, agora geminado
com um dos carrascos de Gaza, Benny Gantz de sua graça, vem anunciando que a
partir do início do próximo mês dará os passos governamentais, parlamentares e
militares que considera necessários para anexar o Vale do Jordão, no território
palestiniano da Cisjordânia. Além disso, tenciona integrar no Estado de Israel
os colonatos construídos ilegalmente no mesmo território durante os últimos 60
anos. Estes movimentos representam, de facto, a extinção da chamada «solução de
dois Estados» na Palestina histórica, estabelecida em 1948 pelas Nações Unidas
e reactivada durante os passados anos noventa. Os criminosos não escondem o
crime, os avisos estão feitos: ninguém poderá dizer que será apanhado de
surpresa.
A
chamada «comunidade internacional», a começar pela ONU e respectivo
secretário-geral, assiste de camarote aos acontecimentos. A repetição, como um
mantra, de que «a solução de dois Estados» continua a ser o caminho para
regularizar a situação na Palestina servirá para fazer de conta, ou para
manifestar um apego inconsequente aos princípios estabelecidos, ou até para
marcar presença num quadro de inutilidade. Mas não tem lastro para travar
o buldozzer sionista e o seu guarda-costas yankee empunhando
a arma do «acordo do século» – aquilo a que a «comunidade internacional» não
atribui qualquer valor legal mas que, na realidade, guia as acções dos únicos a
mexer-se neste processo – a caminho da anexação da Cisjordânia.
O
facto consumado dos factos consumados
Ao
investigar minuciosamente os comportamentos de países e entidades com poder de
decisão sobre as coisas do mundo não se detecta um único indício de que esteja
em desenvolvimento uma acção internacional concertada para demover Israel de
dar o golpe anunciado.
Um
golpe que, sem paninhos quentes nem contorcionismos semânticos, tem o mesmo
significado, à luz das leis internacionais, que o improvável acto de Espanha
anexar Portugal, ou Portugal deitar a mão à Galiza, ou a França aboletar-se com
a Valónia, ou a Alemanha engolir o Luxemburgo, ou a Áustria, coisa que já nem
seria original mas sabemos em que circunstâncias aconteceu.
São
comparações retiradas dos cadernos do absurdo. Porém, têm absoluta
legitimidade. O Estado da Palestina é reconhecido por dois terços dos países da
ONU e tem assento na organização. A sua consumação territorial tem sido
impossível apenas porque existe um Estado ocupante que se nega a cumprir a
legalidade internacional e que não sofre quaisquer consequências por isso,
tornando as leis reféns da força bruta e da cumplicidade de interesses
abjectos.
Gaza,
Cisjordânia e Jerusalém Leste são os territórios onde, no quadro da «solução de
dois Estados», deverá assentar territorialmente o Estado da Palestina. Jerusalém
Leste foi anexada por Israel, com a cobertura dos Estados Unidos da América e
sob protestos verbais envergonhados, inúteis e efémeros dos seus parceiros e
aliados da NATO e da União Europeia. Gaza é um campo de concentração cercado
militar e fisicamente, onde dois milhões de pessoas estão condenadas a
condições infra-humanas, à espera da morte ou de que Israel e os Estados
Unidos, talvez com ajuda da Arábia Saudita e o Egipto, decidam o que fazer com
elas – no âmbito, claro, do «acordo do século», esse instrumento sem valor
legal.
E
a Cisjordânia, além de retalhada por mil e um colonatos, serpenteada por um
muro intransponível que separa famílias, propriedades, aldeias e cidades,
arrasada pelo terrorismo dos militares ocupantes e dos colonos, poderá ser
anexada praticamente na totalidade já a partir de Julho.
Consumada
a anexação do Vale do Jordão, integrados os colonatos na soberania do Estado
sionista, nada restará na Cisjordânia onde possa erguer-se alguma coisa que se
pareça com um Estado soberano e viável. Fim da «solução de dois Estados».
Estamos
a menos de meia dúzia de semanas de que isso aconteça, ou pelo menos sejam
dados passos que tornem o processo irreversível. Bem na linha da política de
factos consumados através da qual Israel se tem consolidado como Estado
colonial e os palestinianos têm perdido os direitos que lhe estão garantidos
nos papéis onde está inscrito o direito internacional, papéis cada vez mais
imprestáveis em geral, totalmente imprestáveis neste caso. Será o supremo facto
consumado na torrente dos factos consumados com que Israel humilha a legalidade
internacional.
Confirmadas
a inutilidade e a indignidade da União Europeia
A
Rússia tem afirmado que se opõe a qualquer acção israelita para anexação do
Vale do rio Jordão.
A
China diz a mesma coisa, mais palavra, menos palavra.
Se,
durante o processo, for necessário recorrer a vetos no Conselho de Segurança
das Nações, as duas nações não hesitarão em utilizá-los. O
mesmo acontecerá do lado dos Estados Unidos, anulando-se mutuamente os efeitos
de cada veto. Não se espera, portanto, que o Conselho de Segurança adopte
qualquer medida dissuasora dos objectivos sionistas. Porém, será muito
previsivelmente o mais longe que Moscovo e Pequim irão na tentativa – nesse
caso ineficaz – de fazer prevalecer os direitos dos palestinianos.
Há
ainda a União Europeia, essa defensora incansável do direito internacional, dos
direitos humanos, da soberania dos povos – para quem acredita ainda no discurso
hipócrita e cínico dos seus dirigentes.
Em
15 de Maio reuniram-se em Bruxelas os ministros dos Negócios Estrangeiros dos
27 e o tema da anunciada anexação do Vale do Jordão surgiu em cima da mesa.
Como
se sabe, a União Europeia defende oficialmente a «solução de dois Estados» na
Palestina. Então, alguns Estados membros, entre os quais a França, Espanha,
Bélgica, Luxemburgo, ousaram propor a imposição de sanções a Israel no caso de
concretizar as intenções anunciadas. Nada de muito relevante, tudo muito suave,
apenas a exclusão do envolvimento de Israel no quadro científico-técnico
denominado Horizonte 2027. Sanções inúteis, simbólicas numa entidade que
decidiu flagelar-se a si própria – sobretudo aos seus agricultores – por conta
das sanções pesadas impostas à Rússia pela «ocupação» da Crimeia, um território
histórica e inegavelmente russo, tal como demonstraram massivamente os seus
habitantes em referendo.
Apesar
dos pezinhos de lã contra uma atrocidade terrorista como a prometida por
Israel, devastadora para o direito internacional, para os direitos nacionais e
humanos de milhões de palestinianos, foram vários os países que se opuseram
desde logo a essas sanções, ainda que inconsequentes, e confirmaram aquilo que
todos sabemos: a inutilidade da União Europeia na cena internacional, neste
caso reflectindo a sua indignidade por ser incapaz, como quase sempre, de fazer
cumprir aquilo que diz defender.
Fica
então sentenciada a passividade – a cumplicidade – da União Europeia quando
Israel avançar para a anexação.
Dez
dias depois dessa reunião, num encontro com embaixadores alemães, deu-se o caso
de o chefe da «política externa» da União Europeia, o espanhol Josep Borrell,
ter falado no «fim da liderança norte-americana», fazendo soar o tambor das
especulações e das conjecturas dos geopolitólogos de plástico. Com aquilo que
está a passar-se nos Estados Unidos, parece aconselhável adoptar uma certa
distância e dizer coisas que pareçam reflectir vida e existência próprias para
além da subserviência militar, económica, financeira e política. Se passarmos
do discurso à prática, nada a registar. A União Europeia guarda sobre a
execução extrajudicial de George Floyd e sobre o racismo congénito dos Estados
Unidos a mesma discrição que assumirá quando Israel fizer flutuar a bandeira
sionista no Vale do Jordão. Discursos inflamados ainda poderá haver, actos nem
vê-los.
A
partir da anexação, como tem acontecido ao longo de décadas, facto consumado
atrás de facto consumado, ouviremos os convictos dirigentes europeus, da
globalização e da ONU «exigir» que Israel se retire do Vale do Jordão e dos
territórios ocupados para que possa ser aplicada «a solução de dois Estados».
Um insulto à inteligência, um alinhamento objectivo com a ilegalidade, uma
traição repugnante contra o povo palestiniano.
Entre
os dirigentes mundiais com peso nas decisões internacionais muitos haverá que
estarão dispostos a brandir discursos solidários e de firmes princípios
teóricos até ao último dos palestinianos. Nada mais do que isso.
Os
palestinianos não se rendem
Os
palestinianos, mais de sete milhões na Palestina e no mundo, podem contar
apenas com eles próprios. Não é certo, inclusivamente, que venham a sentir o
apoio do governo «autónomo» instalado em Ramallah, enredado na teia montada
pelo sionismo que o tem conduzido frequentemente a desempenhar tarefas de
«segurança» – de repressão do seu povo, portanto – em sintonia com forças
militares israelitas. O presidente Mahmmud Abbas já deixou agora de atender os
telefonemas de Trump, desligou-se dos Acordos de Oslo mas as medidas pecam por
tardias. Num quadro em que o apoio de países árabes é duvidoso e em muitos
casos inexistente – e será sempre insuficiente perante as forças em presença –
os palestinianos podem contar somente com as próprias forças. E com o apoio que
povos solidários considerem dar-lhes através de lutas cívicas e institucionais.
Sabendo que terão de enfrentar até a infame acusação de anti-semitismo, que o
monstruoso aparelho mundial de propaganda sionista quer obrigar a associar a
qualquer manifestação ou expressão de repúdio contra actos terroristas e
ilegais praticados pelo Estado de Israel. Anti-sionismo não é anti-semitismo;
muito menos a condenação dos desumanos e ilegais actos israelitas pode ser
considerada anti-semitismo. Mas a ideia está a fazer o seu caminho na União
Europeia, sempre pronta a fazer trabalhos sujos recomendados pelo sionismo –
ainda que seja para cobrir o terrorismo.
Os
palestinianos, onde quer que estejam, não ficarão de braços cruzados perante
esta manifestação aguda do terrorismo sionista em preparação. Fala-se
em «terceiro Intifada», quanto mais não seja pelo hábito rotineiro de catalogar
acontecimentos. Mas haverá seguramente resposta, que será definida pelos
próprios, como aconteceu com o levantamento das pedras de 1988 e que pôs pela
primeira vez em xeque, até aos olhos do mundo, a fama e as «legitimidades» do
sionismo todo-poderoso. O movimento nacional de resistência, é certo, não está
organizado e unido como então, a fractura entre a Organização de Libertação da
Palestina (OLP) e o Hamas, entre a Cisjordânia e Gaza, enfraqueceu a capacidade
de reacção. Contudo, nesse Intifada de 1988 que explodiu em Gaza as raízes
populares foram determinantes e vão sê-lo de novo, unindo até o que por ora
continua desunido.
Chegado
esse momento ouviremos então dirigentes europeus e mundiais, que por enquanto
guardam silêncio sonso, apelar à calma de ambos os lados e condenar o «terrorismo
palestiniano», que só «prejudicará» a procura de «soluções».
Que
soluções? As que estão contempladas no direito internacional e que os
detentores dos mecanismos legais, ONU incluída, não fazem cumprir?
Nova
e tenebrosa tempestade está a explodir na Palestina – com muitos focos através
do Médio Oriente. Não acreditem, portanto, nos dirigentes nacionais e
internacionais que irão dizer-se chocados, surpreendidos e que neste momento,
comprometidos com interesses ilegais e desumanos, são espectadores hipócritas
dos ensaios de uma tragédia anunciada.
*José
Goulão, Exclusivo O
Lado Oculto/AbrilAbril
Na imagem: Palestinianos
confrontam tropas israelitas em
Al Sawiya , na Cisjordânia ocupada, a 15 de Maio de 2020.
Apesar de a pandemia em curso ter condicionado este ano o dia da Nabka, o 72.º
aniversário da expulsão de 750 mil palestinianos pelo então recém-formado Estado
de Israel não foi assinalado apenas online. Mohamad Torokman /
Reuters
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