TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Em todo o mundo, segundo a ONU,
há mais de 40 milhões de escravos, que geram, anualmente, cerca de 120 mil
milhões de euros. O fenómeno tem um nome que é conhecido de todos: tráfico
humano. A fotógrafa norte-americana Matilde Simas dedica o seu trabalho, há
vários anos, a este flagelo e partilha, agora com o P3, as histórias e os
rostos destas vítimas.
Ana Marques Maia* | Imagem: Matilde Simas
A queniana Sarah (nome fictício),
mãe solteira de duas crianças pequenas, nunca pensou que, um dia, a sua
história de vida viria a engrossar uma estatística de proporções alarmantes.
Desempregada e desesperada por encontrar trabalho, foi traficada por alguém em
quem confiava. “Ela viajou com esse amigo sob a promessa de um emprego como
empregada doméstica”, narra a fotógrafa Matilde Simas, a autora
da série Hidden,
em entrevista ao P3.
Sarah entrou numa camioneta nos
arredores da capital do Quénia e foi conduzida, durante quatro horas, até
outra cidade, Mombaça. À chegada, foi lentamente compreendendo que o emprego
que a esperava não era o que lhe fora prometido; não se tratava de trabalho
doméstico, mas sim de trabalho
sexual. Foi conduzida até a uma casa rodeada de arame farpado, guardada por
homens armados e cães. Finalmente percebeu: não podia escapar. “Um ano depois,
graças à ajuda de um cliente, conseguiu fugir. Pediu dinheiro nas ruas, durante
semanas, até obter o suficiente para comprar três bilhetes para o regresso a Nairobi.”
Sarah é uma das muitas vítimas de tráfico de seres humanos que
a fotógrafa norte-americana retratou no Quénia, um país que é considerado um
ponto nevrálgico no que concerne a este problema na África Oriental. Em todo o
mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas, há mais de 40
milhões de escravos. O trabalho que realizam gera cerca de 120 mil milhões
de euros anualmente. “Com alto rendimento e baixo risco, a comercialização de
seres humanos transformou-se no maior sector criminal do mundo, suplantando venda de armas e de tráfico de droga”,
explica a fotógrafa. “Como é possível?”
À semelhança de Sarah, as
mulheres que Simas retratou só se aperceberam de que eram vítimas de algum tipo
de violência quando “já era tarde demais”, quando já não conseguiam soltar-se
da “armadilha” que havia sido montada especificamente para elas. “Os traficantes
de pessoas estão treinados para perscrutar a vulnerabilidade dos outros e
usam técnicas avançadas de manipulação para persuadir e controlar as suas
vítimas”, diz a norte-americana. O tráfico humano ocorre quando alguém exerce controlo
sobre outra pessoa, com recurso a violência física ou psicológica, com o
objectivo de a explorar comercialmente.
Um traficante pode estar em
qualquer lugar, pode ser “qualquer pessoa” no “exterior de uma escola, de uma
casa-abrigo, de um centro comercial”, refere Simas. “As redes sociais e as
aplicações de dating também começam a ganhar relevo neste contexto.”
Tudo começa quando um traficante escolhe um alvo e, após contacto, identifica
os sonhos e objectivos da potencial vítima. Esta pertence, preferencialmente, a um grupo frágil. O traficante tem, quase sempre,
preferência por pessoas que se encontram excluídas ou em risco de exclusão
social por ser mais fácil isolá-las, para evitar um “salvamento”.
Segue-se o grooming. "Quando
um traficante avalia, testa e colecciona informação sobre uma ‘presa’, começa a
fazê-la sentir-se ouvida, especial (...) e promete preencher o vazio que ela
sente”, diz a fotógrafa. Para isso, apresenta uma oportunidade única de cumprir
um sonho. Uma promessa de emprego, de bolsa de estudo, uma viagem — é esse,
aliás, o aspecto do flagelo do tráfico humano que mais a impressiona. “É, para
mim, difícil de compreender como um ser humano pode simplesmente aproveitar-se
da ingenuidade do outro.” Quando a relação de confiança é já forte e a ‘presa
morde o isco’, ou seja, quando deixa o seu destino nas mãos do traficante, “a
teia de mentiras” já se tornou demasiado densa para que a vítima a possa
abandonar sem mazelas. A vítima percebe que emprego de sonho nunca existiu, a
viagem de sonho é afinal uma armadilha. O que a espera é, afinal, uma situação
de escravatura, de exploração sexual.
Mas de que forma consegue um traficante
“convencer” a vítima a permanecer refém? Não são incomuns as ameaças de
morte, de assassinato de familiares, de humilhação pública; é frequente o
uso de violência física, a apreensão de documentos por parte do traficante. É
também comum a “invenção” de uma dívida para com o traficante, que a vítima é
forçada a pagar — um valor, por vezes, indeterminado, com juros que nunca
são definidos claramente.
Desempregada e mãe solteira, Mary
(nome fictício) também caiu na teia de uma rede de tráfico para exploração
sexual. “Uma amiga levou-a a uma agência de recrutamento no centro de Nairobi,
onde acabou por assinar um contrato que a levaria até à Arábia Saudita,
onde realizaria trabalho doméstico”, conta a fotógrafa. “À chegada, foi
informada de que devia à agência cerca de 18 mil euros pelo serviço de
agenciamento, pelas despesas de deslocação e burocracia.” Mary trabalhou
arduamente, sem folgas, 24 horas por dia sem receber um salário. Enquanto
realizava tarefas domésticas e cuidava dos filhos do seu empregador, foi
agredida verbal, física e sexualmente. “Vivia confinada numa parte da casa,
onde era observada por seguranças”, descreve Simas. Conseguiu escapar quando
alguém se esqueceu de trancar uma das portas da sua “prisão”.
A vítima, isolada, “sofre trauma
prolongado e repetido”. “As consequências, a longo prazo, podem ser severas”,
observa a fotógrafa. “Uma experiência de tráfico tem impacto em todos os
aspectos da vida do sobrevivente. Ao contrário de outros crimes violentos, o
tráfico humano é uma experiência que se prolonga no tempo e reúne vários
crimes, que se repetem inúmeras vezes. Pode envolver violência física, sexual,
abuso psicológico, manipulação, tortura, uso forçado de drogas.” E o resultado
para a vítima pode ser trágico, irreversível. “Muitos sobreviventes acabam com
diagnósticos de stress pós-traumático, depressão, perdas de memória,
ansiedade, medo, culpa, vergonha e outras formas de trauma psicológico.”
Matilde desenvolveu o projecto Hidden com
a colaboração da associação
não-governamental HAART,
que tem sede em Nairobi e intervém no sentido de erradicar o tráfico humano. “A
situação no Quénia é particularmente preocupante”, diz, pois “existe um fluxo de imigração de países vizinhos, de
pessoas que procuram oportunidades de trabalho e competem pelo melhor lugar”. É
“o ambiente perfeito” para os traficantes, “que utilizam as promessas de trabalho para atrair as vítimas para
situações terríveis”. E as mulheres são alvos mais fáceis e mais apetecíveis, devido à dimensão da exploração sexual. “Algumas
das mulheres que retratei foram exploradas por alguém que elas já conheciam,
por um familiar ou vizinho ou amigo. Em alguns casos, foram vendidas pela
família para se casarem com um estranho ou para servirem de empregadas
domésticas ou escravas sexuais.”
Foi o caso de Paula (nome
fictício), que cresceu numa aldeia rural da Etiópia e foi vendida pela própria
família, na condição de noiva, a “um homem velho” que não conhecia. “Ele
prometeu à família dela que ela iria frequentar a escola, mas, em vez disso,
obrigou-a a trabalhar na sua quinta 18 horas por dia, justificando que uma
esposa não tem direitos.”
O flagelo não deixa de fora
nenhum país ou comunidade. “Ocorre em cidades, subúrbios, aldeias.” Ninguém
está realmente imune, refere. “Mas todos nós podemos fazer algo para prevenir
este tipo de crime. Existem organizações que permitem que os cidadãos intervenham
no sentido de aumentar a consciencialização para o problema. E podemos dedicar
o nosso tempo, talento e competências a esse movimento.” Em Portugal, a Associação para o Planeamento da
Família tem vários centros de acolhimento e protecção de vítimas de
tráfico humano; a Associação de Apoio à Vítima (APAV)
disponibiliza, também, mecanismos de apoio às vítimas. “Podes ser voz activa no
que toca ao respeito pelos direitos humanos e podes ajudar a diminuir a pegada
do trabalho escravo ao consumir produtos cuja cadeia de produção é rastreada”,
aconselha a norte-americana.
Hidden é o contributo de
Matilde Simas, enquanto mulher, mãe e fotógrafa. “Dar voz aos sobreviventes e
representar as suas histórias de forma digna ajuda-os a ganhar controlo sobre a
sua narrativa pessoal, algo que pode ser muito fortalecedor. A fotografia
é uma ferramenta poderosa no que toca à consciencialização relativa à injustiça
social.” Espera, por isso, “contribuir para a transformação da percepção
pública do problema”.
Sem comentários:
Enviar um comentário