Na
década de 90, Mandela enfrentou as farmacêuticas violando as patentes dos
medicamentos antissida. Precisamos de saber salvar vidas de novo agora.
Quando
se percebeu como a pandemia era grave, alguns laboratórios nacionais ofereceram
testes a 200 euros, ou mais. Ainda estão a ser feitos a 125 euros para o
público em geral. Em
março, para garantir mais capacidade, o Governo pagava 100 euros por teste aos
privados. Quando, há duas semanas, alcançámos a fasquia de um milhão de testes,
40% dos quais no privado, ficámos a saber que os laboratórios poderão ter
recebido entre 40 e 50 milhões de euros e, como o Serviço Nacional de Saúde os
realiza com um custo que é menos de metade e neles não será diferente, terão
obtido um lucro generoso. Entretanto, os hospitais privados tinham-se lançado à
cata de doentes e anunciaram que cobrariam 130 euros ao Estado por cada um, até
o ministério lhes fechar essa porta. Uma crise é mesmo uma oportunidade de
negócio.
Ficou
famosa a frase de Rahm Emanuel “nunca desperdiçar uma crise séria” (no “Wall
Street Journal”, 18 de novembro de 2008). Era então chefe de gabinete de Obama,
uma das pessoas mais poderosas em Washington, estava-se em pleno colapso
financeiro do subprime, a recessão viria logo a seguir. O dito tem sido citado
como um bondoso apelo à correção dos erros, mas o que se passou depois não dá
demasiado crédito a tanta expectativa. “O que quero dizer com isto é que é uma
oportunidade para fazer coisas que pensámos que não poderíamos fazer antes”,
acrescentou então Emanuel. Mas, se medirmos os resultados dessa oportunidade,
foram magros. Nem houve modificação substantiva da forma de regulação da
finança, nem as políticas sociais foram suficientes, ainda hoje os EUA se
debatem com o risco de dezenas de milhões de pessoas sem proteção na saúde. Há
poucas semanas, a 25 de março, Emanuel escreveu no “Washington Post” uma nova
versão do mesmo apelo: “Vamos assegurar que esta crise não é desperdiçada”,
sugerindo que o mesmo não pode dizer dos resultados da anterior.
Há
quase 50 anos, Milton Friedman, um economista ultraconservador que viria a
ganhar o Nobel e tinha sido alcandorado à fama por um programa de televisão,
publicou um livro, “Capitalismo e Liberdade”, em que explicava que “só uma
crise, seja real seja percebida como tal, conduz a uma verdadeira viragem”. A
sugestão era mais fria, aproveite-se a crise para fazer o que é impensável por
ser impopular. Não precisamos de ir muito longe para nos lembrarmos de como a
aterragem da troika na Portela foi sentida como a oportunidade de impor o que
nenhum programa eleitoral suportaria, o que o primeiro-ministro pouco depois
admitiu inocentemente ser o programa para “empobrecer Portugal”.
O
dever da empresa é o lucro
Friedman,
ao contrário de Emanuel, tinha uma agenda marcante e por isso é adorado pelos
liberais: na “New York Times Magazine” (13 de setembro de 1970) publicara um
panfleto afirmando que a responsabilidade social da empresa é somente o lucro
dos acionistas, não tem obrigação perante a comunidade. O texto é um manifesto
coerente. Friedman tinha sido o principal assessor económico do candidato
republicano Goldwater, um Trump antes do tempo, e tinha proposto o fim da
Segurança Social. A essa luz, a crise é mesmo uma oportunidade.
Algumas
empresas tomam-no ainda hoje ao pé da letra. Michael Flor esteve internado com
covid durante 42 dias num hospital de Issaquah, que lhe apresentou uma conta de
1,1 milhões de dólares. Neste caso, a Medicare paga. Mas Janet Mendez, em Nova Iorque , tem uma
fatura de 400 mil dólares e não sabe se o seguro cobre uma parte. Entretanto, a
Gilead Sciences cobra 2100 euros pelo tratamento com
Remdesivir, fixando o novo preço depois de o
medicamento ter sido autorizado para alguns casos graves de covid. Para atalhar
razões, anunciou que é um preço fixo para todos os países, os pobres que não se
queixem. E aqui está como uma empresa que faz da crise a oportunidade não
responde a obrigações sociais, mas aos lucros dos acionistas.
Ora,
o que vem é ainda mais duro: há já duas vacinas em teste em larga escala, entre
as 135 em desenvolvimento e, se alguma resultar, vai produzir milhares de
milhões de doses, cobrando o melhor preço. Assim será se lhe for autorizada a
patente, mesmo que o custo da investigação tenha sido suportado por dinheiro
público (a Comissão Europeia já lançou 7,4 mil milhões de euros nestes
projetos). Não há muito tempo, não foi assim: na década de 90, Mandela
enfrentou as grandes farmacêuticas violando as patentes e replicando os
medicamentos antissida, dado que a África do Sul não conseguia pagar os preços
exorbitantes. Salvou vidas (e impôs o recuo da Casa Branca e das
farmacêuticas). Precisamos de saber salvar vidas de novo contra a bela
oportunidade do mercado.
*Esquerda.net
*Artigo
publicado no jornal “Expresso” a 4 de julho de 2020
*Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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