Víctor Silva | Jornal de Angola |
opinião
O Estado, através da
Procuradoria-Geral da República (PGR), tem feito uma série de apreensões de
bens e património, no âmbito da recuperação de activos do Estado que estão ou
foram parar indevidamente às mãos de interesses privados ou de grupos.
São actos que se enquadram na
cruzada contra a corrupção e a impunidade, num combate que se firma como
irreversível face à dimensão, influência e perversidade do fenómeno na
sociedade. Um caminho que partiu do reconhecimento do próprio partido no poder,
o MPLA, de que a corrupção é um dos nossos principais males e que sem a
moralização da sociedade e o fim da impunidade dificilmente poderão ser
materializados os programas de governação que visam o bem-estar dos angolanos.
Dessa tomada de consciência partiu o programa que muitos têm confundido como sendo uma luta pessoal do actual Presidente da República, especialmente contra o ex-Presidente José Eduardo dos Santos, sua família e colaboradores mais próximos.
É preciso dizer que desde sempre se soube que o MPLA poderia ser a força política mais afectada por essa cruzada, por ser o partido no poder desde a independência e, sobretudo, pela existência de notórios indícios de que alguns dos seus militantes e dirigentes estavam implicados nos descaminhos das verbas públicas. E isso foi dito, olho nos olhos, no discurso de eleição de João Lourenço como presidente do MPLA, perante todos os seus camaradas de partido, reunidos
Não são poucas as vezes que objectivos nobres e bem intencionados redundam em fracassos na sua execução. Todos os dias damos com informações que provam esse descompasso entre uma intenção e o seu resultado. Para resumir com uma expressão, o processo de criação da burguesia nacional, que é uma reivindicação justa, acabou no sentido contrário ao slogan da época: “distribuir melhor”. De facto, uma elite apoderou-se do Estado e fez dele sua propriedade privada, subvertendo todos os princípios morais, éticos e idiossincráticos da maioria dos angolanos, de tal modo que serão necessários ainda muitos anos para resgatá-los, tão impregnados que estão entre nós, por mais e pesadas que sejam as penas aplicadas a quem cair nas malhas da lei, incluindo aqueles que se consideravam intocáveis e acima dela.
Uma discussão que se tem levantado tem a ver com o questionamento que tem sido feito, a saber, não será melhor para o Estado avançar para negociações para a recuperação dos activos, ao invés de “perder tempo” em processos judiciais que se podem revelar longos, desgastantes e sem garantia de sucesso, tal a complexidade dos crimes do chamado colarinho branco?
Há a noção de que, devido à actual crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, o encaixe financeiro do Estado baixou bastante e com ele as condições de vida dos cidadãos e famílias têm vindo a degradar-se consideravelmente. E há, até, estudos internacionais que apontam para cenários catastróficos de pobreza e miséria que poderão afectar centenas de milhões de pessoas, mesmo nas latitudes mais desenvolvidas.
Num cenário destes, não seria eventualmente melhor negociar a reparação do dano causado por aqueles que beneficiaram abusivamente do erário e aproveitar essas valias para a melhoria da vida das populações, apostando no fomento da economia e da produção nacional, criando emprego e renda, numa altura em que os sinais são já de grande desespero, agravado pela enorme imprevisibilidade quanto ao futuro próximo?
Se defendemos a criação de um Estado de Direito Democrático, temos de concordar que ele se rege por leis e que, no caso em questão, há legislação específica que foi propositadamente ignorada pelos prevaricadores, pelo que, agora, a mesma está a ser aplicada de forma coerciva. Isso não invalida que possa haver alguma negociação na fase de instrução processual, mas isso não depende apenas do Estado ou dos seus representantes. Os citados, investigados ou arguidos também podem e devem dar o primeiro passo, depois de terem ignorado o período de entrega voluntária dos bens de todos nós, dos quais se acapararam indevidamente.
O que não se pode aceitar é que todo esse património recuperado, arrestado ou confiscado não seja catalogado e posto à guarda ou gestão das entidades devidas e que esteja a ser retalhado ou deixado ao abandono, quando as necessidades são mais do que evidentes.
Não é por acaso que vamos assistindo a invasões e ocupações de propriedades públicas e até privadas, num desafio à autoridade do Estado, num esquema que não tem a ver unicamente com a falta de oferta de habitação, mas também com a acção criminosa organizada, com cumplicidades de quem devia velar pela defesa dos interesses desse mesmo Estado e que, pelos vistos, também se servem deste último para o seu benefício pessoal, tal como os que deviam perseguir.
A gula fez com que uma boa parte desses empreendimentos habitacionais fossem construídos contra todas as regras básicas, sem caboucos e sem infra-estruturas de suporte, desde a água à energia, passando pelos esgotos, o que tem retardado a sua comercialização e utilização. Mas, face à enorme carência e à quantidade de imóveis nessa condição, impõe-se a priorização da sua conclusão, ao invés de se avançar para novas edificações para acomodar instituições que podem e devem aproveitar os bens arrestados, confiscados ou recuperados.
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