segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Marrocos: Economia e Direitos Humanos


"Tal como a Indonésia em Timor-Leste, o regime marroquino invadiu o Sara Ocidental em 1975, não permitindo a auto-determinação da sua população. O Sara Ocidental é por isso a última colónia de África e faz parte da lista dos territórios em vias de descolonização da ONU."

Augusto Joaquim de Carvalho Lança* | Diário de Notícias | opinião

Os campos de refugiados de Tindouf, na Argélia, estão muito perto de Portugal. Tal como o nosso vizinho do sul, o Reino de Marrocos. Laços históricos e de amizade muito profundos ligam os povos de Portugal e de Marrocos, tal como muito bem afirma e escreveu recentemente no Diário de Notícias o politólogo e arabista Raul Braga Pires ("De Mazagão ao Algarve vão 76 marroquinos"). Defende também uma maior aproximação de Portugal a Marrocos, e uma maior presença das empresas portuguesas em território marroquino.

É no entanto estranho e grave que como politólogo Raul Braga Pires omita completamente no seu texto o contencioso político de Marrocos com a comunidade internacional. O reino de Marrocos ocupa ilegalmente desde 1975 e após a saída dos colonizadores espanhóis, aquilo a que chama as suas "Províncias do Sul". Basta olhar para qualquer mapa do mundo para se verificar que aquilo a que o regime marroquino considera como suas províncias é de facto o Sara Ocidental, um país reconhecido por dezenas de outros países e com assento na União Africana... ao lado de Marrocos.


Tal como a Indonésia em Timor-Leste, o regime marroquino invadiu o Sara Ocidental em 1975, não permitindo a auto-determinação da sua população. O Sara Ocidental é por isso a última colónia de África e faz parte da lista dos territórios em vias de descolonização da ONU. No cessar fogo com a Frente Polisário nos anos 90 (Frente Popular de Libertação de Saguia el Hamra e Rio de Ouro, organização que representa o povo saraui na ONU) e depois de anos a bombardear a população saraui com napalm e bombas de fósforo, Marrocos comprometeu-se com a Frente Polisário e a ONU a realizar um referendo que permitisse a auto-determinação do povo saraui. Oregime marroquino não só nunca cumpriu esta obrigação assumida internacionalmente como construiu um muro com 2700 km , uma das zonas mais minadas do mundo, que divide o Sara Ocidental de norte a sul impedindo a Frente Polisário e a população refugiada em Tindouf de entrar no seu território, podendo apenas circular numa estreita faixa desértica, a chamada Zona Libertada.

Espanha e, principalmente, a França, dão total cobertura internacional ao regime marroquino e bloqueiam na ONU e na EU qualquer condenação das suas ilegalidades, favorecendo o impasse que hoje existe. Visitei a Zona Libertada em Março deste ano. Estive nos campos de refugiados de Tindouf, onde milhares de pessoas vivem com a ajuda da Argélia, do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e de muitas organizações da sociedade civil espanhola, bem como dos muitos países que reconhecem a RASD (República Árabe Saraui Democrática), em que se destaca a África do Sul.

Na Zona Libertada, em Tifariti, pernoitei junto a um dos grandes quartéis da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental), onde permanecem há vários anos militares de vários países esperando pelo referendo.... Existem mais 3 quartéis da MINURSO, um na Zona Libertada e dois na Zona Ocupada por Marrocos. Nesta zona, mais de dois terços do território saraui, Marrocos explora na total ilegalidade os vastos recursos minerais do Sara Ocidental, principalmente fosfatos. Ainda há poucas semanas a ativista portuguesa dos Direitos Humanos Isabel Lourenço foi expulsa de Marrocos por pretender assistir a um dos julgamentos dos muitos presos políticos sarauis em Layoun. O mesmo destino que têm tido muitos advogados espanhóis mal pisam o aeroporto de Layoum. Talvez seja para as "Províncias do Sul" que Raul Braga Pires queira atrair as empresas portuguesas. Resta-nos a esperança de que, tal como em Timor-Leste, um dia triunfe a justiça e a legalidade internacional. Que o pequeno mas bravo povo do Sara Ocidental tenha enfim o direito de não ser tratado como estrangeiro na sua própria terra.

*Professor no Instituto Politécnico de Beja e na Universidade Nacional de Timor Lorosa'e

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