domingo, 23 de agosto de 2020

Portugal | O punho da escrita contra o racismo, a xenofobia e o populismo


Pertencem a diferentes gerações. Divergem em credos, convicções ou concepções estéticas e políticas. Encontram-se espalhados por vários continentes. São homens e são mulheres. São poetas, prosadores, ensaístas e dramaturgos. Escrevem para adultos e para crianças. Alguns são músicos e compositores de canções. Vários receberam prémios literários, entre eles os mais importantes da língua portuguesa. Há os que dirigem ou representam associações de autores.

Todos estão unidos por uma única vontade: não transigir com o racismo, a xenofobia e o populismo em Portugal. Porque, explicam, «como sempre nos mostrou a História, quem adormece em democracia acorda em ditadura».

O dever da palavra

São «escritores portugueses e de língua portuguesa». Estão, «por ofício, cientes do poder da palavra», mas também «do poder da sua omissão». Por isso, «em tempos normais», dizem, não dariam palco a comportamentos racistas, xenófobos e populistas.

As «circunstâncias vividas em Portugal» neste domínio, que consideram «graves e inquietantes», levam-nos a «correr esse risco». Até porque «cultura e literatura não florescem» em «tempos sufocantes» em que o «mais repugnante pode emergir de uma sociedade em crise e em estado de medo».

«Não podemos olhar para o lado nem continuar calados, sob pena de emudecermos», afirmam. Exigem «compromissos políticos que detenham a escalada do populismo, da violência, da xenofobia». Dão o exemplo: «assumimos o compromisso de jamais participarmos em eventos, conferências e/ou festivais conotados – seja de que maneira for – com ideias que colidam com os princípios da tolerância e da dignidade humana».

Porque há valores a defender, «antes que seja tarde». Elencam: democracia, multiculturalismo, justiça social, tolerância, inclusão, igualdade entre géneros, liberdade de expressão e debate aberto. «Tais», afirmam, «são as nossas grandes riquezas: a diversidade e a tolerância», expressas na «língua portuguesa, feita de aglutinação, inclusão e aceitação da diferença».

E gritam: «quem gosta de Portugal jamais diz “Vão!”, antes diz “Venham!”».


A cada um a sua responsabilidade

Que cada um cumpra o seu dever, é tudo o que pretendem os signatários da carta aberta.

«A todos os cidadãos portugueses, à sociedade civil, aos professores das escolas e das universidades», os escritores apelam «a que se distanciem de projectos e movimentos antidemocráticos e ajudem na consciencialização das novas gerações para a urgência dos valores humanistas e para os riscos das extremas-direitas; aos órgãos de justiça, que investiguem, processem e condenem os interesses económico-financeiros que se servem dos novos populismos; às autoridades policiais e aos seus agentes, que se abstenham de condescender com movimentos e acções promotores da exclusão, da discriminação e da violência; à comunicação social, que assuma com veemência o seu papel de contraditório e de defesa da verdade; aos partidos políticos, que sejam capazes de recuperar os princípios esquecidos no decurso do jogo partidário de vocação eleitoral; ao Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo, que exerçam um escrutínio rigoroso da constitucionalidade e assegurem que o fascismo não passará».

A origem e o texto completo do carta aberta

A iniciativa partiu dos escritores Joel Neto e Ana Margarida de Carvalho. Ambos os autores prestaram declarações ao Jornal 2 da RTP-2, que podem ser ouvidas aqui.

Ao jornal Contacto (Luxemburgo), Ana Margarida de Carvalho, um dos poucos autores a receber por mais de uma vez o Grande Prémio do Romance e da Novela da APE, o maior galardão literário português, explicou que a ‘Carta aberta dos escritores de língua portuguesa contra o racismo, a xenofobia e o populismo e em defesa de uma cultura e de uma sociedade livres, plurais e inclusivas’ «está alojada na página da Fundação José Saramago» e que «continua a recolher assinaturas de várias mulheres e homens da literatura».
No primeiro grupo de assinaturas, durante um único fim-de-semana, eram cerca de 150 escritores. Hoje são mais de 200. Representam um autêntico quadro de honra da escrita em língua portuguesa.


AbrilAbril

Imagem: Manifestação contra a morte do actor Bruno Candé e em defesa das vítimas do racismo, em Lisboa, a 31 de Julho de 2020. Bruno Candé, de 39 anos, foi baleado em 25 de Julho, num crime com claros contornos de racismoCréditosMiguel A. Lopes / LUSA

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