domingo, 30 de agosto de 2020

Portugal | Rui Pinto em banda desenhada


Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

No mesmo país em que o Tribunal Constitucional chumbou o acesso das secretas à listagem de comunicações de suspeitos de terrorismo, muita gente respeitável defende a intrusão em comunicações por um hacker "justiceiro" - desde que encontre "coisas interessantes". Deverá ser esse o critério?

"Se calhar é a única maneira de apanhar os maus." Foi o que uma amiga me disse numa conversa sobre Rui Pinto. "Se não há outra forma, se as polícias não chegam lá de outra maneira, e não chegam, como já se percebeu, então se calhar tem de haver Ruis Pintos."

Percebo o sentimento dela. Qualquer pessoa que tenha visto por exemplo o filme Laundromat, de Steven Soderbergh, baseado na ocorrência que ficou com o nome de Panama Papers, acompanha a personagem de Meryl Streep na perplexidade, desespero e raiva ante o emaranhado da circulação do dinheiro por empresas fantasma e offshores e a facilidade com que se iludem autoridades, credores e vítimas - como ela.

De facto, a primeira coisa que ocorre perguntar ante Laundromat não é como se soube de tudo aquilo mas como é possível que se permita um sistema assim. A quem, se não a criminosos, terá parecido boa e vantajosa ideia a criação das contas offshore - e por que raio, umas cinco décadas e muita evidência de lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo, da criminalidade em geral e de esquemas cada vez mais sofisticados de subversão dos sistemas políticos depois, os governos mundiais ainda não tomaram a decisão de acabar com tal coisa. É capaz de se chegar à conclusão de que para o chamado sistema capitalista o mais importante é que o dinheiro possa circular à vontade - e o resto que se dane.

Mas o meu texto não é sobre a existência desta rede; é de Rui Pinto que quero falar - ou melhor, dos argumentos sobre Rui Pinto. E esses dividem-se em três campos.

Há o da defesa, explanado na contestação de 130 páginas enviada ao Tribunal Criminal Central de Lisboa, e na qual, para resumir, admite "ter acabado por praticar ilícitos penais para obter os dados que procurava", mas considera que, dados os resultados - a revelação de várias aparentes ilegalidades -, "a censura não deve ser muito forte". É a tese defendida, por exemplo, pela ex-eurodeputada socialista Ana Gomes, talvez a mais notória apologista da tese de que Rui Pinto é um whistleblower, ou denunciante, que tendo divulgado informação de inegável interesse público deve ser tratado como tal pela justiça.

Este argumento tem problemas. Desde logo porque aquilo que está definido numa diretiva europeia sobre proteção de whistleblowers (e que ainda não entrou em vigor) é que estes são definidos como pessoas que tomem conhecimento, no âmbito do seu trabalho ou do contacto com organizações, de factos ocultos de interesse público e os revelem. É o caso clássico do americano Edward Snowden, que ao serviço de uma agência dos serviços secretos americanos se deu conta da existência de um esquema massificado de vigilância e intrusão em comunicações quer em solo americano quer no estrangeiro. Por outras palavras, os serviços secretos americanos "hackam" tudo e todos e Snowden expôs esse facto. Será aliás muito interessante caso Snowden, que está no rol de testemunhas apresentado por Rui Pinto, aceda a falar no julgamento ouvir o que tem a dizer sobre este caso: será que aprova que um indivíduo faça aquilo que se feito pelo Estado considera um crime?

Depois há o argumento da acusação: o hacker invadiu sistemas informáticos alheios, como vulgar larápio que arrombasse casas ou empresas, para ver se encontrava coisas interessantes das quais se pudesse apropriar e usar para benefício próprio - daí a acusação de extorsão, a mais grave no cardápio de 90 crimes por que responderá em tribunal a partir da próxima sexta-feira. No documento entregue pela defesa, Rui Pinto admite ter iniciado a tentativa de extorsão mas desistido de seguida, considerando que teria sido "ingénuo".

Existe por fim um terceiro tipo de argumentos - os que embora dando de barato o interesse público do que Rui Pinto encontrou e revelou e até a sua intenção meritória cotejam isso com as bases do Estado de direito. A ideia fundamental é simples: se a polícia e o Ministério Público pudessem, sem mandado judicial e portanto sem verificação dos fundamentos da necessidade da intrusão, entrar em todos os sistemas informáticos, ouvir todas as chamadas, ler todas as mensagens e mails e fazer buscas em todas as empresas e domicílios também iam encontrar muita coisa "interessante", solucionar muitos crimes e apanhar muito meliante insuspeito. Sucede que não podem fazê-lo porque há garantias constitucionais a impedi-lo - proteção contra a arbitrariedade, garantia de privacidade e de processo justo e adequado. Porque as pessoas só podem ver os seus direitos fundamentais, como o da privacidade, postos em causa se houver base suficiente para tal, e isso tem de ser decidido por um juiz, com base nas premissas da lei. Se assim não for, estamos no domínio dos "métodos proibidos de prova" - como explica o número 3 do artigo 126.º do Código de Processo Penal: "Ressalvados os casos previstos na lei [que são aqueles em que há autorização judicial], são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular."

Talvez a maioria das pessoas não valorize estes princípios ou considere, como a minha amiga, que se pode abrir exceção quando os "apanhados" nunca o seriam por meios legais e legítimos - sem se dar conta de que uma vez aberto o precedente não há regresso. Talvez algumas contraponham que se os sistemas judiciais e fiscais de vários países estão a usar as informações obtidas ilegalmente por Rui Pinto e a construir processos com base nelas não é justo que ele seja condenado por tê-las disponibilizado - e sim, há aí um problema bicudo. Caso Rui Pinto seja condenado, não deverão cair pela base todos os casos que se baseiem nas suas revelações? E caso não seja, poderemos dizer que ainda temos um Estado de direito?

Tomemos como exemplo as Luanda Leaks, o enorme acervo de documentos relacionados com os negócios da empresária angolana Isabel dos Santos, filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos, de cujo "vazamento" Rui Pinto assumiu ser autor. Se o não tivesse feito, poder-se-ia pensar, como sublinhou ao DN o advogado Rui Silva Leal, "que tinham sido reveladas por alguém dentro de alguma das organizações implicadas, um verdadeiro whistleblower tal como está descrito na legislação europeia." Mas, conclui, "a partir do momento em que Rui Pinto assume que lhe chegou através de intrusão informática, são fruto da árvore envenenada." Ou seja, prova proibida. Para sublinhar a importância das suas descobertas e da sua posição de "denunciante", o hacker jogou essa cartada, colocando assim a justiça numa situação impossível: ou fingir que não viu o que está nas Luanda Leaks, que é já do domínio público graças à divulgação jornalística e teve como se sabe inúmeras consequências judiciais (arresto de bens, etc.) quer em Angola quer em Portugal, ou agir com base nessa informação - que é o que está a acontecer - e portanto admitir que o seu revelador prestou um serviço ao "bem".

A perversidade da situação é adensada pelo facto de haver quem defenda que Rui Pinto deve ser "contratado pela Polícia Judiciária para fazer o que saber fazer" - não se percebendo muito bem o que será isso ao certo - e por vermos o próprio diretor da Polícia Judiciária, Luís Neves (também arrolado como testemunha de defesa), a fazer o elogio público do arguido numa entrevista ao DN: "É uma pessoa relativamente jovem e culta, com preocupações de defesa do coletivo, preocupado com questões de igualdade, justiça social, e isso é importante."

Vai ser mesmo muito interessante seguir este julgamento e ver que tese prevalece. Num país no qual o Tribunal Constitucional voltou a chumbar, há um ano, o acesso dos serviços secretos aos chamados metadados das comunicações - que não incluem sequer as próprias conversas ou mensagens -, vamos admitir que um qualquer rapaz com jeito para a informática e "preocupações de defesa do coletivo" entre onde lhe apetecer e tire o que lhe aprouver se algumas das coisas que encontrar permitirem entalar poderosos? E se assim for estamos dispostos a que esse princípio se aplique a toda a gente ou achamos que é assim uma coisa de banda desenhada, que só afeta os "maus"?

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