sábado, 5 de setembro de 2020

Diplomacia TikTok: Uma doutrina de contenção digital


#Publicado em português do Brasil
A venda forçada da TikTok pela Administração Trump faz parte de um esforço mais amplo para impedir a independência econômica chinesa no setor de tecnologia.

Colectivo Qiao [*]

Com as recentes polêmicas a respeito do TikTok, Donald Trump está exercendo a sua "art of the deal" de praxe, a coerção do Departamento de Estado estadunidense. Depois de meses fingindo preocupação de que o aplicativo viral TikTok representaria um "cavalo de Troia" para o Partido Comunista da China acessar os dados dos consumidores dos EUA, a administração Trump emitiu um ultimato à empresa chinesa: vender o aplicativo a um comprador americano ou ter a certeza de que seria terminado.

Microsoft se apresentou como um comprador em potencial ao TikTok, um clone do aplicativo de vídeo chinês "Douyin" feito sob medida para o público ocidental. O aplicativo possui cerca de 100 milhões de usuários nos EUA e sua empresa controladora, ByteDance, foi avaliada em US$100 mil milhões.

Os avanços da Microsoft, juntamente com a estipulação de Trump de que a empresa controladora do TikTok pague "uma quantidade substancial de dinheiro" ao Tesouro dos EUA para facilitar a transação, deixa claro que não se trata de proteger os dados do consumidor. Certamente, nem o Vale do Silício, nem Washington, têm preocupações legítimas sobre questões de segurança, dadas as colaborações de longa data e bem documentadas entre os gigantes da tecnologia como o Facebook, a Amazon, a Microsoft e outros com NSA (National Security Agency), CIA (Central Inteligence Agency), FBI (Federal Bureau of Investigation) e ICE (Immigration and Customs Enforcement). Mas a proteção ao consumidor é uma história de cobertura conveniente para o que realmente está acontecendo: a venda forçada do TikTok, sob coação política nada mais é do que um roubo do Vale do Silício em conivência com o Departamento de Estado estadunidense.

A saga TikTok é parte de uma estratégia geopolítica maior para obstruir, isolar e descarrilar a crescente indústria de tecnologia chinesa. A China alcançou a inovação tecnológica, por meio de sua iniciativa inovadora "Made in China 2025" (MIC 25), como a pedra angular de seus esforços mais amplos para escalar a cadeia de valor da manufatura e abandonar seu papel de "fábrica mundial" para entrar no domínio da inovação e da alta fabricação de tecnologia. Esta extremidade superior da cadeia de valor tem sido historicamente domínio exclusivo dos EUA, Europa e aliados estratégicos como Japão e Coreia do Sul.

Os EUA revelaram uma nova doutrina de contenção digital projetada para manter a China em seu lugar histórico como um centro de manufatura semiperiférico.

Agora está mais claro do que nunca que os EUA não estão dispostos a ceder essa supremacia tecnológica sem luta. Da venda forçada do TikTok às sanções à gigante chinesa das telecomunicações Huawei, os EUA revelaram uma nova doutrina de contenção digital projetada para manter a China em seu lugar histórico, um centro de mão de obra barata e manufatura de semiperiféricos.

A modernização industrial tem sido a chave para a construção socialista chinesa desde a era Mao. Durante décadas, o PCC identificou a "produção social atrasada" e as crescentes necessidades materiais do povo como a principal contradição que a sociedade chinesa enfrenta. Desde as aspirações de Mao de aumentar a indústria e reduzir a dependência externa, transformando a China em um exportador líquido de aço, tornar a China tecnologicamente competitiva no cenário mundial tem sido de suma importância para a construção socialista chinesa.

Planos ambiciosos como o MIC 2025 mostram o quão longe a China avançou desde a época de Mao, com fornos de aço de fundo-de-quintal. A iniciativa econômica, apresentada pela primeira vez pelo Conselho de Estado em 2015, visa transformar a China em um líder global nas áreas de inteligência artificial, robótica, telecomunicações e tecnologia da informação por meio de subsídios, indústria estatal e transferência de tecnologia em larga escala.

Autoridades chinesas conceberam a iniciativa como uma forma de superar a manufatura de baixo valor e contornar a chamada "armadilha da renda média". Esta visão de soberania econômica de alta tecnologia opõe-se ao papel econômico predeterminado pelas potências ocidentais que mediaram a entrada da China no mercado capitalista global nas últimas quatro décadas. Como a 'fábrica mundial', a China fabrica mais de 90 por cento dos smartphones do mundo, mas até recentemente, as marcas chinesas representavam uma parcela insignificante das vendas. O papel da China como um centro de manufatura de baixo valor – uma fonte de mão de obra barata para as "Apples" e "IBMs" do mundo – foi algo extremamente lucrativo para os capitalistas ocidentais. Claro, como resultado desse processo histórico, também permitiu que a China capturasse alguma fração desses lucros, a serviço da construção da capacidade produtiva da nação, a serviço da construção socialista e do investimento na promoção de indústrias domésticas competitivas que vemos hoje florescerem.



Para a China, dominar o mercado global dos eletrônicos de consumo de marca é perturbar o sistema mundial econômico predeterminado pelo Ocidente. Portanto, não é surpresa que a revelação do MIC 2025 correspondeu a um aumento do antagonismo econômico ocidental em relação à República Popular da China. Invocando a linguagem imperialista do livre comércio, os conselheiros econômicos da UE e dos EUA protestaram contra o plano de "minar as regras do comércio internacional" e "inclinar o jogo em favor dos jogadores chineses". Na linguagem hipócrita do livre comércio e das aberturas de mercado que definiram a hierarquia econômica neocolonial da era "pós-colonial", a indústria estatal da China, os subsídios e a priorização duma "inovação autoctone" equivalem ao que o Ocidente demoniza como "discriminação" contra empresas estrangeiras. (Não importa que muitas dessas mesmas políticas econômicas definam a abordagem dos chamados "tigres asiáticos", a maioria dos quais são elogiados por sua fidelidade à agenda geopolítica dos EUA.)

Nessa visão de mundo, a China é apenas uma fábrica enorme e estúpida, uma imitadora e ladrão de comércio, na melhor das hipóteses, incapaz do tipo de inovação e criatividade necessária para ser um líder mundial em tecnologia de consumo. O êxito da Huawei, TikTok e outros inovadores chineses prova que a visão racista do mundo está errada.

Junto a essas alegações está um sentimento paternalista de que a China deve 'saber o seu lugar'. Um relatório sobre o MIC 2025 para a Câmara de Comércio da União Europeia advertiu : "A China tem sido a fábrica do mundo e agora quer mais." As descrições das aspirações de desenvolvimento da China como "arrogantes", até mesmo agressivas, revela a mentalidade chauvinista ocidental quanto ao lugar "adequado" da China na cadeia de abastecimento global. Nessa visão de mundo, a China é apenas uma fábrica enorme e estúpida, uma imitadora e ladrão de comércio, na melhor das hipóteses, incapaz do tipo de inovação e criatividade necessária para ser um líder mundial em tecnologia de consumo. O sucesso da Huawei, TikTok e outros inovadores chineses prova que a visão de mundo racista está errada.

Apesar do aparente foco da guerra comercial nas compras e tarifas agrícolas, muitos identificaram o MIC 2025 como o antagonista silencioso por trás das ansiedades dos EUA sobre a agenda econômica da China. Por exemplo, Lorand Laskai, do Conselho de Relações Exteriores, descreveu o projeto Made in China 2025 como "o vilão central, a verdadeira ameaça existencial à liderança tecnológica dos EUA". Na verdade, as tarifas impostas pelos EUA identificaram explicitamente os subsídios chineses, o envolvimento do estado e o protecionismo como seu alvo central. Em depoimento perante o Senado em 2019, Bonnie Glaser, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, observou que as autoridades chinesas "abandonaram as referências ao MIC 2025 em documentos oficiais e na mídia oficial" em resposta ao escrutínio e pressão dos EUA. O uso agressivo de tarifas e ameaças contra a virada tecnológica, na construção socialista da China, deixa claro que a chamada "guerra comercial" é parte de uma agenda imperialista mais ampla, para impedir a ascensão da China na cadeia de valor global.

No entanto, as negociações da "guerra comercial sino-americana", que Mike Pompeo declarou recentemente um "fracasso", deram lugar a uma postura linha-dura. Em uma atualização digital da doutrina de contenção da Guerra Fria, os EUA estão tentando bloquear a indústria de tecnologia da China dos principais mercados e cadeias de abastecimento que ainda lhe sobram inexplorados.

A ameaça de proibição do TikTok nos EUA – já proibido na Índia , e sob escrutínio, na Austrália, UE e Japão – é apenas a última tentativa de desenhar uma nova cortina de ferro digital em torno das principais marcas de tecnologia da chinesas. Durante anos, os EUA argumentaram que a Huawei (que acabou de eclipsar a Apple como a marca de smartphone mais popular para os consumidores chineses) é uma representação das supostas ambições globais do PCCh. O Departamento de Estado tem se esforçado para pressionar aliados, e estados clientes, a proibir a Huawei de construir as infraestrutura de 5G, ameaçando cortar aliados da inteligência dos EUA, se eles forem "comprometidos" pela infraestrutura da Huawei. Dessa forma, o 5G produzido pela Huawei está efetivamente banido dos EUA, Reino Unido, Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Enquanto isso, sob pressão governamental dos EUA, o Google removeu a funcionalidade da Google Play Store dos dispositivos Huawei, bloqueando efetivamente os usuários da Huawei de aplicativos onipresentes, como Gmail, YouTube e a própria Google Play Store.

A ameaça de proibição do TikTok nos Estados Unidos – já proibida na Índia e sob escrutínio na Austrália, UE e Japão – é apenas a mais recente tentativa de desenhar uma cortina de ferro digital em torno das principais marcas de tecnologia da China.

Ainda mais, em maio os EUA tomaram medidas para cortar o acesso da Huawei a chips semicondutores construídos com tecnologia estadunidense – um componente crítico para a fabricação de smartphones, que fizeram a China perder parte de sua capacidade de produção doméstica. Incapazes de vencer a Huawei na corrida para o 5G, os EUA recorreram à força bruta diplomática para remover a marca chinesa de áreas que começava a ocupar no mercado global.


Os EUA tratam a ascensão tecnológica da China em termos abertamente racializados e politizados, classificando Huawei, TikTok e outras corporações chinesas como "tentáculos do Partido Comunista Chinês", nas palavras de Mike Pompeo. Pedindo um "despertar" do chamado "mundo livre" para o perigo iminente da China, Pompeo advertiu que "fazer negócios com uma empresa apoiada pelo PCCh não é o mesmo que fazer negócios com, digamos, uma empresa canadense". Peter Navarro colocou a ameaça de invasão chinesa em termos ainda mais íntimos, condenando o "fato" de que "as mães da "América" precisam se preocupar se o Partido Comunista Chinês sabe onde estão seus filhos".

Sob a Nova Guerra Fria na China, empresas, produtos chineses e até estudantes estrangeiros são todos agentes em potencial, para a infiltração do Partido Comunista na "segurança nacional" e na própria "família americana".

As apostas dos esforços liderados pelos EUA para impedir a autossuficiência tecnológica chinesa são claras. Mesmo além dos próprios programas de desenvolvimento econômico da China, o avanço tecnológico chinês tem historicamente proporcionado benefícios reais a outros aliados do Sul Global igualmente rejeitados e sancionados sob o regime dos EUA. A própria Huawei foi posta sob fogo, por ajudar a construir a infraestrutura sem fio da República Popular coreana , que anteriormente lutava para encontrar patrocinadores internacionais, a empresa chinesa também desempenhou um papel semelhante na atualização da infraestrutura de telecomunicações de Cuba . Enquanto isso, as inovações chinesas em criptomoeda podem ter um significado histórico para quebrar a hegemonia da "diplomacia do dólar estadunidense" e ajudar as nações sancionadas a evitar o uso do dólar em transações internacionais para acessar os mercados financeiros internacionais. O fato frequentemente esquecido da prisão da CEO da Huawei, Meng Wanzhou no Canadá, foi motivada por alegadas violações das sanções dos EUA ao Irã, é mais um exemplo de como a ascensão tecnológica chinesa é contrária à aplicação da hegemonia imperial dos EUA.

Apesar da imagem popular de cintilantes horizontes chineses e de passos sem precedentes na história humana para erradicar a pobreza, a China continua a ser, em muitos aspectos, um país em desenvolvimento, com um PIB per capita mais próximo do México e da Tailândia do que dos EUA ou Alemanha. A inovação tecnológica desempenha um papel crucial nas ambições da China de crescer e se tornar uma nação de alta renda, resolver a desigualdade urbano-rural e atender às crescentes necessidades materiais de seu povo. A era dos fornos siderúrgicos de fundo de quintal, deu lugar à era dos semicondutores, mas o avanço dos meios de produção industrial da China continua sendo a pedra angular do avanço econômico e social sob o PCCh.

A venda forçada do TikTok pela administração Trump é apenas a última de uma longa agenda para impedir a modernização da China. Sob a doutrina de contenção digital, o suposto aplicador mundial do livre comércio e da justa concorrência se revelou como um guardião beligerante, excluindo o acesso ao mercado da China onde e como puder.


[*] @qiaocollective, coletivo de escritores, artistas e ativistas da diáspora chinesa determinados a se opôrem às agressões contra a China e o Sul Global. Inspirado pelas vivências dos comunistas terceiro-mundistas e do socialismo e internacionalismo chineses, buscamos proporcionar fontes críticas para equipar a esquerda contra a desinformação e a propaganta que abastecem a Nova Guerra Fria contra a China. Visite nosso site qiaocollective.com (eng.) para mais informações


A tradução de Saulo R. encontra-se em www.qiaocollective.com/...

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/

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