domingo, 18 de outubro de 2020

Portugal | Serenidade, competência e confiança

A proposta de lei aprovada pelo Governo e enviada à AR que «estabelece a obrigatoriedade de utilização da aplicação móvel StayAway Covid (...)» representa um lamentável exemplo de desorientação.

Duarte Caldeira | AbrilAbril | opinião

Ninguém tem dúvidas de que a situação pandémica do País é preocupante. O crescimento diário de infetados e o consequente número de internados, com inevitável pressão sobre a rede hospitalar do Serviço Nacional de Saúde, exige a adoção de medidas que impeçam o descontrole da situação. Nisto estamos todos de acordo.

Dada a complexidade da situação, exige-se dos responsáveis políticos, em especial do Governo, discernimento, racionalidade e ponderação nas decisões que tomam.

A proposta de lei aprovada pelo Governo e enviada à Assembleia da República que «estabelece a obrigatoriedade de utilização da aplicação móvel StayAway Covid, em contexto laboral ou equiparado, escolar, académico, nas Forças Armadas e de segurança, e na Administração Pública», representa um lamentável exemplo de desorientação.

O princípio geral que determina a necessidade de legislar com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da Lei, está claramente posto em causa com esta proposta de lei, pelo que é expectável que esta venha a ser rejeitada, tanto pela sua desadequação, como pelo espírito autoritário que lhe está subjacente.

Para além das dúvidas que se levantam quanto ao enquadramento constitucional desta disposição, questiona-se o entendimento de que se resolvem crises sanitárias recorrendo a medidas repressivas.

Quando há neste momento graves problemas do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde, quando muitos dos meios de transporte continuam a circular sem serem respeitadas as lotações de segurança corretamente definidas, quando se verificam lacunas graves na política de comunicação adotada pela autoridade de saúde, quando continuam a surgir todos os dias surtos em estabelecimentos de apoio a idosos, quando se verificam estas debilidades, e outras da mesma natureza estrutural, o Governo acha que a situação se resolve pondo os agentes das forças de segurança a fiscalizar os telemóveis dos cidadãos, para averiguar se estes estão ligados à aplicação StayAway Covid.

Mas tudo isto evidencia, ainda, algo que pode ser igualmente grave. É que, para além do cansaço que muitos cidadãos começam a revelar com a situação em presença, também o Governo começa a evidenciar alguma pressão e cansaço na forma como está a gerir esta crise. Dir-se-á que o mesmo se verifica noutros países, que a pandemia é uma crise de características diferentes, de algum modo ainda desconhecidas, e que todos, Estados incluídos, estamos a aprender. Sendo tudo isto certo, a quem governa é exigível mais ponderação, mais estudo e avaliação dos impactos de cada medida.

Decidir nas situações de crise pressupõe necessariamente ação expedita, mas exige também que esta ação seja racionalizada e baseada no domínio consequente das respetivas consequências. Ora, a forma como a crise da Covid-19 tem sido gerida pelo Governo já revelou, ao fim de sete meses, que é tempo de se passar à concretização de algumas lições, obrigatoriamente já aprendidas. E uma delas é que não é possível enfrentar a situação em presença como se ela se inserisse no âmbito doutrinário que está subjacente à Lei de Bases da Proteção Civil, numa interpretação extensiva desta, sem que tal se apresente, todos os dias, devidamente desajustado.

Está então na hora de dar resposta à crise, com as armas disponíveis, mas em paralelo construindo um sistema mais robusto, mais eficaz e integrado, que permita a adoção de decisões caracterizadas pela antecipação, pela racionalidade e pelo conhecimento multidisciplinar que a pandemia impõe.

Só deste modo será possível impedir que se instale na sociedade a desconfiança e o medo, vírus tão destrutivos para a vida das pessoas como o SARS-CoV-2.

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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