Mal a direita clássica (PSD e
CDS) precisou dos votos da extrema-direita para retomar o poder, aceitou
imediatamente negociar com esta e, pudicamente sem a incorporar no governo,
assumiu no seu programa aspectos tão simbólicos quanto a restrição radical de
direitos sociais e a revisão da Constituição! Mas não há novidade alguma nesta
aliança.
Manuel
Loff | opinião
Não foi preciso esperar muito.
Mal a direita clássica (PSD e CDS) precisou dos votos da extrema-direita para
retomar o poder, aceitou imediatamente negociar com esta e, pudicamente sem a
incorporar no governo (hoje o regional dos Açores, no futuro o da República),
assumiu no seu programa aspetos tão simbólicos quanto a restrição radical de
direitos sociais (reduzir para metade os beneficiários de RSI na região onde
mais pessoas dele necessitam) e a revisão da Constituição! Apesar da
contestação que alguma (se virmos bem, muito pouca) direita abriu contra a
direção do PSD, não há novidade alguma nesta aliança. Desde que a
Democracia-Cristã italiana fez eleger em 1971 um candidato presidencial, pela
primeira vez desde 1945 com os votos dos neofascistas do MSI, e desde que as
direitas escandinavas passaram a incluir na sua estratégia para expulsar a
social-democracia do poder partidos da extrema-direita organizados em torno do
mesmo ultraliberalismo económico do Chega, as direitas clássicas da Europa
ocidental têm 50 anos de convergência com a extrema-direita — exatamente a
mesma convergência que levou os fascismos ao poder nos anos 20 e 30. A partir dos anos 90, a normalização da
extrema-direita, por mais racista e desbocada que ela fosse, avançou
decisivamente em Itália (todos os governos que Berlusconi formou desde 1994
integraram neofascistas, pós-fascistas e os racistas da Liga) e na Áustria
(coligações de democratas-cristãos com a extrema-direita desde 2000), e
rapidamente se estendeu pela Europa centro-oriental (ao ponto de caracterizar
estruturalmente uma cultura política específica da região que reproduz o quadro
que existia no período de entre guerras), a Escandinávia e o resto da Europa
ocidental; desde 2002 que quase não houve governo de direita na Holanda que não
integrasse a extrema-direita ou se baseasse num acordo parlamentar com ela.
Alemanha, França e Grã-Bretanha parecem ser as últimas exceções.
O mesmo se
dizia de Portugal e Espanha, e foi o que se viu. A regra, portanto, passou a
ser a da cooptação das extremas-direitas pelas direitas liberal-conservadoras.
Estas continuavam a dirigir os governos, assegurando que esta era a melhor
forma de domar a extrema-direita. O resultado foi, isso sim, a radicalização
das direitas clássicas: convergência estratégica (construindo maiorias
políticas) e convergência em muitas das batalhas culturais. Querem melhor
exemplo que Cavaco Silva, o cardeal-patriarca e Passos Coelho assinarem um
manifesto contra as aulas de Educação para a Cidadania que replica em Portugal
as campanhas de Bolsonaro? A banalização da retórica confrontacional de tipo
fascista acabou inevitavelmente por contaminar a linguagem do resto das
direitas; a convergência em questões sociais e educativas e na discriminação
das minorias étnicas fizeram o resto. Em 2000, George W. Bush foi eleito com
uma plataforma política que já incorporava as grandes batalhas da
extrema-direita religiosa (ilegalização do aborto, proibição do casamento
homossexual, confessionalismo anticientífico), e foi tudo menos coincidência
ser ele a levar à prática o Choque de civilizações previsto (aliás: desejado)
por Huntington, abrindo guerras intermináveis no Afeganistão e no Iraque e
criando um clima generalizado de racialização das relações internacionais e de
normalização do discurso xenófobo. À extrema-direita só faltava o controlo
direto do poder executivo. Foi o que aconteceu em 2005 com o primeiro Governo
Kaczyski na Polónia. Orbán, que governara como liberal em 2005-07, passou a
pautar a nova geração de governos da extrema-direita do nosso século. Desde
2010 mudou a paisagem político-constitucional da Hungria, conduzindo uma
transição autoritária que agora dificilmente poderá ser revertida por via legal
— e o país continua na UE. Por fim, a eleição de Trump (2016) e de Bolsonaro
(2018) revelaram bem a radicalização do conjunto das direitas. O acordo
PSD-Chega reitera 50 anos de história das direitas: nem cordão sanitário, nem dique,
nem coisa nenhuma impediu a convergência das direitas. Quem quiser defender a
democracia precisa é de preparar-se para as consequências que esta pode ter no
contexto social mais depressivo dos últimos 75 anos, feito de nova pobreza,
medo, ansiedade e securitarismo.
Fonte: Jornal Público 17-11-2020
Publicado em O Diário.info
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