segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A República dos Intocáveis

A República dos intocáveis, presente em vários setores da sociedade, é a mãe de uma realidade e de uma perceção generalizada de injustiça, de impunidade e de arbítrio contrários ao Estado de Direito.

António Galamba* | jornal i | opinião

O PS nas mãos do PCP salvou o orçamento de Estado e o poder. O PSD nas mãos do Chega acedeu ao poder nos Açores. A emergência pandémica prossegue às guinadas das decisões e das preparações. O populismo e o oportunismo político florescem. As redes sociais refletem a desqualificação do exercício cívico dos mais relevantes direitos constitucionais de pensar, falar e agir em Liberdade. A invulgaridade dos acontecimentos na linha do tempo da Democracia portuguesa não ilude a existência de posições perenes de intocabilidade, aparentemente imunes a tudo e a todo, sem esboço de funcionamento das instituições, numa espécie de olimpo em relação à realidade, enquanto se assiste a sinuosas vergastadas de dualidade de critérios, de arbítrio e de total ausência de vergonha na cara. É a República dos Intocáveis.

Só uma sociedade sem sentido de justiça, em sentido literal e em abstrato, pode permitir que a coberto dos mais relevantes princípios constitucionais perdurem situações de distorção do funcionamento da sociedade, que contribuem para a construção das perceções gerais, têm impactos nas realidades concretas e ajudam a gerar uma perceção de injustiça, de impunidade e de intocabilidade.

É o que acontece quando se têm partidos que a coberto da proteção constitucional da liberdade de reunião e de expressão ultrapassam as linhas vermelhas do bom senso e ajuntam-se em exercício de arrogância partidária de um posicionamento social e política cada vez mais esvaído de peso eleitoral. A única dúvida é saber se o cálculo de sobrevivência política do atual PS no poder central vai sacrificar a possibilidade de conquistar mais câmara municipais ao PCP, que no fundo significariam para os comunistas perda de influência e redução das possibilidades de rotação dos seus quadros pelas autarquias.

É o que acontece quando a coberto da alegada independência vários pilares do sistema de justiça fazem do arbítrio o seu modus operandi, agindo em relação a alguns e preservando da investigação, da violação do segredo de justiça, dos bailados dos conluios com a imprensa e com os interesses partes relevantes da sociedade portuguesa, gerando indignação dos fustigados e exultantes espasmos de tranquilidade aos intocáveis. Nada acontece, nem a quem não investiga, nem a quem se perpetua nos posicionamentos, imune mesmo ao impulso inicial da abertura de investigação. Nada é nada. Tudo é gozo e margem de manobra para continuar a persistir nos efeitos comportamentos à margem, enquanto outros são fustigados.

É o que acontece quando a coberto da liberdade de imprensa um grupo de media desenvolve a mais brutal campanha negativa da era moderna contra um concorrente de comunicação social, que tentou comprar, mas desistiu, depois diz que quer comprar, sem que a intocável ERC se pronuncie sobre o enleio de concorrência desleal, mau jornalismo e distorção do exercício jornalístico. A sustentada e diversificada ofensiva de destruição massiva, condicionamento e intoxicação é tal que se nos últimos meses fossem retiradas as notícias Media Capital dos conteúdos publicados existiriam páginas em branco ou com espaços em branco nas primeiras páginas de muitas publicações do grupo em causa. Uma espécie de estratégia do eucalipto, em sólida tentativa de secar tudo à volta, certamente experiência de saber acumulado. Quanto à ERC já nada é suscetível de gerar espanto de uma suposta entidade com responsabilidades de proteção do exercício jornalístico e dos valores subjacentes à função que há quase cinco anos permite que paire sob a comunicação social em geral e sobre os jornalistas, em particular, a suspeita de terem sido avençados do BES/GES, através de um dos sacos azuis, numa deriva de enleio entre os Donos Disto Tudo e os Escribas Disto Tudo.

A República dos intocáveis tem muitas expressões, os protagonistas não têm o escrutínio que deviam ter, não dão as explicações que deviam dar, fazem, no essencial, o que lhes apetece independentemente das leis e das convenções sociais, não são incomodados pelos poderes investidos de competência de fiscalização das normas, acabam por estabelecer teias de proteção recíproca em função de cumplicidades, condicionamentos recíprocos ou benesses.

A República dos intocáveis, presente em vários setores da sociedade portuguesa, é a mãe de uma realidade e de uma perceção generalizada de injustiça, de impunidade e de arbítrio contrários a qualquer Estado de Direito. É fonte de alimento do populismo e da degradação da confiança nas instituições e mesmo quando esporadicamente o funcionamento é normalizado, mais não é do que um exercício de resguardo dos intocáveis. Por vezes, deixa-se cair um ou outro para que os restantes de sempre perdurem no olimpo.

O drama é que mais de quatro décadas depois da implantação da Democracia, sem comparações possíveis com os tempos da ditadura, nos direitos, liberdades e garantias, nos avanços civilizacionais de qualidade de vida e nas oportunidades, o que deveria ser corrigido para um melhor funcionamento da sociedade, tem sido normalizado, perpetuando-se os erros, as distorções e os esquemas, mais ou menos ardilosos.

A conveniência da República dos intocáveis é a existência de uma cidadania mais súbdita do que ativa nos direitos, a persistência de diversos guardiões do estatuto por ação ou por omissão e a inexistência de sobressaltos de indignação em relação aos maus funcionamentos.

Sendo claro que quem está no exercício do poder convive bem com a República dos intocáveis, integrou-se no registo e contribui para alimentar os “ismos” maléficos, só um sobressalto cívico poderá gerar mudança, mais por estado de necessidade de sobrevivência do que adesão aos valores. Como diria alguém, é da vida!

NOTA FINAL

REPÚBLICA DA REAL POLITIK // O desenrasca está inscrito no nosso ADN para o quotidiano, não para as grandes questões que deveriam mexer com valores e com princípios civilizacionais ou comunitários. Este orçamento e as soluções de suporte que conseguiram ser mobilizadas, colocando o PS nas mãos do PCP, dos Verdes e de deputados de interesses marginais, é o resultado da estratégia política do PS de António Costa. Da mesma forma, que, a ser verdade o que foi publicado e dito pelos interessados (Polónia e Hungria), de que Portugal criticou no Conselho da UE a proposta de um mecanismo de defesa do Estado de direito subjacente à distribuição dos dinheiros comunitários para a emergência de saúde pública e o relançamento económico, o exercício político desta gente atingiu o grau zero de compromisso com os valores e os princípios do país e do partido. Apesar de ser padrão de liderança, os fins não justificam todos os meios.

*Escreve à segunda-feira

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