OK. Se é o que querem... Que seja
Alastair Crooke* | Strategic Culture Foundation
Wolfgang Munchau, de Euro
Intelligence, sugeriu recentemente que a UE erra por só ouvir a própria câmara
de eco (e sempre a mesma única opinião). Munchau referia-se ao modo como Boris
Johnson foi tratado com desdém quando buscou um acordo "que estivesse à
vista" na cúpula da UE este mês. O Conselho afirmou que não apenas
"não havia acordo à vista", mas que as negociações sequer seriam
aceleradas e, ainda mais, se manteve rigidamente preso às suas três linhas
vermelhas, "não negociáveis".
Posteriormente, Macron declarou arrogantemente que o Reino Unido tinha de
"se submeter" às "condições" do bloco - "Ninguém aqui
preferiu o Brexit".
Ao que Boris retrucou asperamente: "Nesse caso, não faz sentido
conversarmos."
Munchau observou ironicamente
que o maior risco para qualquer negócio "é quando você repete para si
mesmo que o outro lado precisa 'disso' mais do que você". Charles Michel,
Presidente do Conselho Europeu, deixou claro o que seria 'isso', na visão do
Conselho: são os "majestosos, vastos e diversificados mercados da
EU".
"A UE tem um mês para fazer Emmanuel Macron engolir essa sua ideia
intelectualmente preguiçosa. A UE não deve basear sua estratégia de negociação
na noção de que Johnson se dobrará. Talvez sim, talvez não" - observou
Munchau.
Bem, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Lavrov, claramente
compartilha da análise geral de Munchau. Falando ao Clube Valdai semana passada, Lavrov disse : "Quando a
União Europeia fala como se fosse superior, a Rússia se pergunta: podemos ter
negócios com a Europa?"
"Quanto às pessoas responsáveis pela política exterior no Ocidente e que não compreendem a necessidade de conversa mutuamente respeitosa - talvez devamos deixar de nos comunicar com elas por algum tempo. Especialmente porque Ursula von der Leyen [atual presidenta da Comissão Europeia] diz que a parceria geopolítica com as atuais autoridades russas não estaria dando qualquer resultado. Que seja, se é o que querem" [concluiu].
Contudo, e significativamente, não foi Boris Yeltsin quem empreendeu os maiores
esforços para alcançar a integração da Rússia no espaço europeu. Foi o
presidente Putin, durante o primeiro mandato, no início dos anos 2000, até pelo
menos 2006. Indiretamente, Lavrov só reconhecia e fazia ver o quanto as coisas
pioraram. Com efeito, o ministro russo simplesmente declarou o que todos já
sabiam: que já não existe aquele quadro de antes, para as relações Rússia-UE.
Nessas circunstância, o que restaria a ser discutido?
Não é assunto pequeno ou pouco importante. Se Merkel e a UE mudaram de ideia e
tomam agora a integração da União como prioridade superior às boas relações com
a Rússia, nesse caso todos os velhos preconceitos anti-russos da Europa
Oriental - principalmente os da Polônia - devem ser 'atendidos'. É o que está
acontecendo e significa a solidificação da Europa em posição 'assertiva e
contra' Rússia, China e seus parceiros estratégicos. E se a Alemanha volta a aspirar à
antiga proeminência que teve na e sobre a Europa, as tensões com a Rússia (e,
portanto, com a China) crescerão. A Europa se autodefinirá como o ponto médio
entre dois polos antagônicos, um a Leste, outro a Oeste -, sem ser
"amiga" de nenhum deles.
Dia 14 de outubro, um dia depois - por coincidência, ou não -, o presidente Xi
simbolicamente visitou uma fábrica de microchips, e disse que a China vencerá a
guerra tecnológica, e conduzirá o mundo rumo ao multilateralismo. Depois, no
mesmo dia, o Presidente Xi visitou uma base da Marinha, e apelou aos militares
chineses para "colocarem toda a mente e todas as energias na preparação
para a guerra".
A China não quer guerra, enfatizou o presidente chinês, mas aceitou que possa
acontecer. E, finalmente, no aniversário de 40 anos da Zona Econômica Especial
de Xenzhen, Xi falou de mudanças globais em andamento: O status quo não
pode continuar, e "às vezes é preciso falar grosso para que o Ocidente
ouça".
A seu próprio modo mais discreto, o presidente Xi simplesmente fazia eco a
Lavrov - sublinhando também que já não existe o quadro anterior para as
relações China-ocidente. O mesmo aparecia implícito, quando Xi disse que queria
que a nova postura da China fosse endossada no Pleno do PCC, no final de
outubro, para que ninguém acusasse a China de tentar alguma 'jogada' política
em relação ao hoje ainda futuro presidente dos EUA.
Parece que aqui há uma mensagem muito clara para a UE. Mas estarão ouvindo?
Embora a Europa tenha "cartas" para jogar, é arrogância presumir que
todos se "submeterão" às "condições" e valores europeus, só
para não perder acesso aos mercados da UE.
Sim, de fato há um grande 'mercado' europeu, mas também há lacunas muito
óbvias: nada de plataformas em nuvem; pouco investimento em telecomunicações e
5G (particularmente na Alemanha); nenhuma segurança do fornecimento de energia
a custo acessível; e nada de plataformas de mídia social que rivalizem com as
dos EUA ou da China. A China tem o dinheiro e o know-how que os EUA
não podem prover.
A Europa tem bolsões de expertise (como em IA e no setor aeroespacial), mas
nenhuma Big Tech. E em termos de gastos com P&D em tecnologia, a UE é peixe
pequeno. A Europa precisa desesperadamente da colaboração chinesa (e russa) em
tecnologia para participar da 'Nova Economia'. Mas os EUA querem que a UE
separe-se completamente da tecnologia chinesa e russa...
Este é o ponto: os EUA planejam atualmente uma estratégia de amplo espectro
para isolar e enfraquecer China e Rússia. Nada de novo. É reprise da longa
'anglo' vendetta contra a Rússia, e tentativa de estender as
políticas de 'Rede Limpa' e 'Caminho Limpo' anti-China, de Pompeo, para a
Europa. O termo 'limpo', é claro, significa 'bloqueio' de toda e qualquer
tecnologia chinesa - exclusão completa. Os EUA 'pedem' muito à Europa, que já
vive sob a sombra da recessão. Mesmo assim, é provável que a Europa obedeça (em
grande parte).
Mas visto de ponto de vista num giro de 180° - da perspectiva da Rússia e da
China - é improvável que sua relação limitada e tensa com os EUA melhore, vença
quem vencer mês que vem
Victoria Nuland de Obama expressou claramente a visão daquele governo (falando
da Ucrânia): "F**a-se a UE!"
É realista esperar que Alemanha e Europa resistam às pressões dos EUA? Com
certeza Merkel ainda deseja [o gasoduto] NordStream 2. E a Alemanha falhou miseravelmente
ao não investir em telecomunicações - e precisa da Huawei. Outra tecnologia
importante (e o financiamento para apoiá-la) que só a China tem a oferecer. Não
há substitutos. Ainda assim, o ódio e a aversão das euro-elites contra Trump, e
a certeza convicta com que esperam a vitória de Biden, provavelmente as
estimularão a tentar recriar a ordem multilateral com Washington à frente, caso
os democratas vençam.
Significa que as pressões sobre a Europa, para que adote postura anti-Rússia e
anti-China podem crescer e tornar-se irresistíveis.
O paradoxo é que, mesmo assim, os EUA provavelmente continuarão a ver a Europa
como mercado regulado e com "acesso limitado", e como ameaça
comercial.
Seria talvez surpreendente, nesse caso, que Rússia e China tenham chegado ao
momento "chega! Cansamos!"? Estão realmente fartos das 'lições de
moral' sobre os altos 'valores europeus' e da crença de que todos irão
"dobrar-se" ante a ameaça de ser excluído do mercado europeu.
A China é hoje a maior economia do mundo (em termos de PPC). Rússia e Ásia
Central já são compatíveis com a tecnologia chinesa. A China já tem isso
estabelecido como 'fatos
Pode algum bloqueio comercial conter e extinguir o dividendo moral em
'superioridade', de quem se mantenha indiferente ao e acima do tal outro
mercado "enorme e diversificado"?
Tom Stevenson, diretor de investimentos da Fidelity International, escrevendo
no The Telegraph, aponta que os efeitos adversos da pandemia foram
significativamente maiores na Europa e nas Américas, tanto no norte quanto no
sul, do que na China:
"Apesar de representar quase 60% da população global, a Ásia teve menos de
15% das mortes relacionadas à Covid este ano. A Europa, com menos de 10% da
população mundial, é responsável por quase um terço de todas as mortes. Mesma
história na América do Norte. Os números do PIB da China no terceiro trimestre
mostrarão como esse desempenho pandêmico materialmente melhor já aparece nos
dados econômicos. Primeiro a entrar, primeiro a sair e um caminho de recuperação
muito mais íngreme também. O Credit Suisse acredita que até o final do ano que
vem, a produção econômica da China ficará 11% acima do nível anterior ao vírus,
enquanto os EUA, Europa e Japão ainda estarão se recuperando.
"O Coronavírus causou algumas mudanças fundamentais na maneira como as
empresas e setores inteiros passaram a operar. Em particular, as cadeias de
suprimentos globais estão sendo substituídas por abordagem mais regional, o que
reduziu o quanto a Ásia dependia da saúde da Europa e dos EUA. Hoje, cerca de
60% de todo o comércio na Ásia ocorre dentro da região. O grande crescimento em
nossa dependência de tecnologia e a digitalização crescente da economia também
influenciam os pontos fortes da China."
É uma loucura. Por um lado, a UE segue obstinadamente os EUA na aplicação de
sanções à Rússia (mesmo quando França e Alemanha sabem que as alegações dos EUA
em que se baseiam as sanções - o suposto envenenamento de Navalny - são
falsas); é cúmplice nos ataques para tentar desequilibrar a situação juntos às
fronteiras russas; e, em seguida, tenta impor valores da Europa ao comércio de
terceiros com a Europa...
E, ao mesmo tempo, EUA e europeus contam com que China e Rússia continuem como
se nada estivesse errado e os salvem da falência. Quem mais precisa de quem? Alô!
Alguém está ouvindo?
Publicado em Pravda.ru
*Alastair CROOKE - Former British diplomat, founder and director of the Beirut-based Conflicts Forum.
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