Joana Mortágua | jornal
i | opinião
Tudo isto era conhecido e tudo isto foi desprezado na defesa clubística da decisão Portela+Montijo que não hesitou em confundir o interesse nacional com o interesse de uma empresa privada estrangeira.
Junho de 2017 ficará para a história porque Donald Trump decidiu que o maior poluidor do mundo passaria a encabeçar a lista dos quatro países que não assinaram o Acordo de Paris. O anúncio satisfez os negacionistas e fascinou Bolsonaro mas chocou uma grande maioria da humanidade que entende a luta contra as alterações climáticas como uma questão de sobrevivência. Não era para menos, o Acordo de Paris pode não ser a chave da revolução ambiental mas tem o peso político de amarrar 195 países ao compromisso de redução da emissão de gases estufa a partir de 2020 e conter o aquecimento global bem abaixo de 2 ºC, uma humilde tentativa de não assar o planeta no nosso tempo de vida.
A reação dos líderes europeus não se fez esperar. Dos Estados Unidos da América disse-se que tinham “renunciado ao futuro” por não compreender que “o que aconteceu em Paris é irreversível”. António Costa lamentou que “infelizmente, o que muitos responsáveis no mundo não sabem é que temos um planeta cujo primeiro dever é preservá-lo para as gerações futuras" e o Presidente francês foi ainda mais longe ao afirmar que "Donald Trump tomou uma decisão fatal para os Estados Unidos” mas “a saída americana não suspende o Acordo de Paris. Pelo contrário, deve acelerar a aplicação". A mensagem era clara: com ou sem EUA, o acordo de Paris era para cumprir.
O que aconteceu depois é previsível mas com um twist. Enquanto António Costa ia a Madrid apresentar Portugal como um “exemplo verde” na cimeira das Nações Unidas sobre alterações climáticas, por cá avisava a Agência Portuguesa do Ambiente de que não haveria "plano B" se o estudo de impacto ambiental chumbasse a construção do novo aeroporto no Montijo. Quando apresentou Portugal como exemplo, Costa esqueceu-se de mencionar aos seus pares internacionais que muito antes de haver qualquer estudo ambiental sobre a construção de um aeroporto na maior zona húmida do país e numa das mais importantes da Europa, a decisão já era ”irreversível”. Mais um dia no país da UE que menos cuida das suas áreas protegidas. De facto é uma infelicidade quando os responsáveis do mundo não entendem que é preciso preservar o planeta.
É difícil tomar decisões equilibradas quando nem se espera pelos estudos ambientais mas o Governo preferiu não dar espaço para os cientistas dizerem que a melhor solução não é a mais lucrativa para a Vinci. Os cientistas foram claros: a Avaliação de Impacte Ambiental do aeroporto do Montijo (a expansão da Portela nem teve direito a uma) deixou de fora, entre outras coisas, “as emissões de gases de efeito de estufa produzidas na fase de cruzeiro, que são o grosso das emissões” e pode comprometer os compromissos de Portugal no âmbito do Acordo de Paris e do Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC 2050).
Os cientistas não foram os únicos a alertar para outra coisa: durante todo este tempo o Governo ignorou deliberadamente a obrigação legal de realizar uma Avaliação Ambiental Estratégica que incluísse a conformidade com os compromissos internacionais e fizesse uma comparação entre várias localizações possíveis, incluindo a única que até hoje foi aprovada num estudo desse calibre, o Campo de Tiro de Alcochete (CTA).
Tudo isto era conhecido e tudo isto foi desprezado na defesa clubística da decisão Portela+Montijo que não hesitou em confundir o interesse nacional com o interesse de uma empresa privada estrangeira. A teimosia foi tanta que quando Pedro Nuno Santos admitiu na Assembleia da República que a pandemia pode “dar tempo” para elaborar uma avaliação ambiental estratégica (AAE) do aeroporto do Montijo, isso foi visto como uma leviandade e não como uma epifania.
A confirmação veio com a votação do PS nas propostas de especialidade do Orçamento que propunham a AAE do Montijo: contra. Ainda assim, a proposta foi aprovada e o Governo terá de respeitar o Parlamento. Ainda é possível um recomeço digno de um país que António Costa possa apresentar como “exemplo verde” e que não faça do Acordo de Paris biombo de sala. Mas para isso é preciso recuar à última vez em que acertamos: a avaliação ambiental estratégica que comparou a Ota com o CTA. O primeiro passo é prolongar a validade da Declaração de Impacto Ambiental da opção Alcochete impedindo que caduque no dia 9 de dezembro.
Quero ser o mais clara possível: sem considerar Alcochete o estudo comparativo não passará de uma farsa.
O twist? Aconteceu longe daqui, quando um Tribunal britânico travou a expansão do aeroporto de Heathrow por colocar em causa as metas do Acordo de Paris.
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