Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião
Há quem lhe chame agora "o maior atentado ao Estado de direito em democracia" - mas durante quase nove meses mereceu sobretudo a indiferença da maioria, incluindo media. O que fez mudar isso é caso de estudo, como o foi o silêncio. Portugal, temos de admitir, não liga muito aos direitos humanos (nisso Eduardo Cabrita tem razão) - e pouco lê jornais.
Já sabia dizer "caralho", de tanto ouvir o palavrão. E no fim falava baixinho, como se rezasse.
Nas centenas de páginas do processo criminal que investiga a morte de Ihor Homeniuk, e que se lê num misto de horror e tristeza, estas duas informações, dadas por testemunhas à PJ, comoveram-me particularmente. Um homem que não sabia português e que ninguém compreendia ali (não é demais repetir que nunca teve o acesso a intérprete que a lei lhe garante) aprender um palavrão de tanto o ouvir da boca dos seguranças e quiçá dos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras; morrer sozinho, sem esperança de ajuda humana, talvez a pedir ao seu deus.
Sei que a maioria das pessoas não leu o processo e não teve como eu a noção plena da solidão e do desamparo deste homem, da sua confusão e incompreensão, do seu desespero. Que não pensou o que seria estar no lugar dele: um estrangeiro num país do qual não falava a língua, sem acesso ao telemóvel (será que chegou sequer a perceber que podia pedir para ligar à família do telefone existente no local?), sem acesso a um advogado, talvez mesmo sem perceber o que lhe estava a acontecer, porque estava ali preso, por qual erro ou crime, porque queriam que voltasse para trás.
Apesar de Portugal ser um país do qual tanta gente saiu ao longo dos séculos, e tantas vezes fora da lei, em busca de trabalho e uma vida melhor, a história do cidadão ucraniano que morreu no aeroporto por alegadamente querer trabalhar aqui não aqueceu nem arrefeceu a maioria. Isso mesmo se percebia na ausência de cliques nas notícias que o DN foi publicando, no alheamento das redes sociais como dos comentadores em geral e das TV (e o que não aparece na TV, sabemos, não existe). Ihor não interessava a ninguém.
Nem quando o DN publicou uma entrevista com a viúva, Oksana Homeniuk, a 13 de abril, na qual ela contava o seu choque quando soube que afinal, ao contrário do que lhe tinham dito, o marido não morrera de "doença súbita" mas provavelmente assassinado, e confessava não ter coragem para contar aos dois filhos as verdadeiras circunstâncias dessa morte que a deixava em dificuldades económicas, a multidão se moveu. Como não causou qualquer efeito a revelação, em junho, de que fora ela a assumir o custo da trasladação das cinzas do marido para a Ucrânia.
Houve aliás um momento a partir do qual Valentina Marcelino e eu, que seguimos a história de Ihor desde que a 29 de março a sua morte e a suspeita de homicídio foram reveladas pela TVI (os três inspetores que o MP responsabiliza foram detidos na manhã do dia seguinte), nos sentimos um pouco doidas: a sensação era de que ninguém, além de nós, queria saber, e que o muro de silêncio e displicência em que embatiam as nossas perguntas ao SEF e ao Ministério da Administração Interna - perguntas que estão ainda todas por responder - era apenas uma projeção do desinteresse e da displicência geral do país. Que se passava com Ihor e esta morte, questionávamo-nos, que não indignava nem comovia quase ninguém? Como explicar que a asfixia deste homem, por ação e omissão de uma polícia portuguesa, interessasse menos do que a asfixia de George Floyd nos EUA?
Foi a pandemia, dizem alguns. Mas a morte de Floyd ocorreu em junho e comoveu muitos portugueses, levando até a manifestações de milhares em Lisboa e Porto. Não é decerto essa a razão.
Na verdade há, creio, vários
motivos para esta frieza - e o principal é, temo, a falta de interesse pelas
questões relacionadas com os abusos policiais e a temática dos direitos humanos
No primeiro caso as imagens em direto e o facto de se tratar de um "bom pai de família", ainda por cima do Benfica, permitiram à maioria projetar-se na vítima; no segundo, o pormenor da decapitação foi o fator preponderante. Aliás só pode ter sido isso, porque dois anos antes um outro homem, cigano e suspeito de tráfico de drogas, fora executado nas mesmas circunstâncias - a "gatilhada", uma forma de tortura que consiste em encenar uma execução encostando uma arma supostamente sem balas à cabeça da vítima; nos dois casos, estava afinal carregada - na esquadra da PSP de Matosinhos, também com tentativa de encobrimento (o auto de notícia alegava que a vítima se apoderara da arma de um polícia e se suicidara), e não houve qualquer comoção pública.
Tem pois de concluir-se existir uma estranha indiferença dos portugueses face à violência policial, mesmo quando resulta em morte e até quando, como sucedeu em 2008, o morto é uma criança (refiro-me ao menino de 13 anos vítima dos disparos do guarda da GNR Hugo Ernano). A tendência é justificar a ação da polícia, partindo do principio da culpabilidade das vítimas - e mais ainda se estas forem à partida consideradas "suspeitas" ou "criminosas".
A ideia de que mesmo os criminosos têm direitos e que a essência do Estado de direito é garanti-los a todos não parece uma lição muito estudada por cá - pelo contrário. É sobretudo à luz dessa constatação que leio a fábula de Ihor Homeniuk - e nisso tenho de dar razão ao ministro Eduardo Cabrita, quando disse que a maioria não se interessa pela defesa dos direitos humanos.
Sucede que também não se pode dizer que o governo tenha feito o que devia. É verdade que Cabrita teve palavras fortes em abril sobre o caso - "Jamais estive numa situação que mais contrariasse aquilo que são os valores fundamentais do Estado democrático" - mas não retirou as óbvias consequências dessa afirmação.
Em primeiro lugar, a da
existência de responsabilidade objetiva do Estado e da necessidade de uma
iniciativa de reparação à família, quer por via de um pedido de desculpas quer
de uma indemnização - como aliás aconteceu no caso do decapitado em 1996.
E, claro, a da responsabilização da direção do SEF - que não sucedeu sequer
quando em novembro a diretora Cristina Gatões assumiu ter sido Ihor vítima de
"tortura evidente", nem agora que a substituem pelo seu diretor
adjunto, evidentemente corresponsável nas decisões e omissões que permitiram a
tragédia.
Porque a demissão de Gatões não é o fim; tem de ser o início. Como aventou Marcelo, cujo vergonhoso silêncio de quase oito meses sobre esta matéria se quebrou apenas ante a indignação pública, o problema é sistémico.
É sistémico no SEF, como se percebe pelo relatório da investigação da Inspeção-Geral da Administração Interna ao caso, como o é nas forças de segurança em geral, no Estado e no país. Porque se as nossas leis são boas ou razoavelmente boas - aquela que rege os centros de detenção de estrangeiros precisa claramente de alteração -, as práticas são más quando não péssimas, incluindo por parte de quem tem o dever de garante da legalidade.
É o caso de juízes que estendem períodos de detenção sem sequer se darem ao trabalho de ver detidos (assim aconteceu com Ihor), fazendo fé no que as polícias lhes dizem e portanto mandando as garantias do Estado de direito às urtigas; de procuradores do MP que, como sucedeu no caso de Ihor, não levantam o rabo da cadeira quando lhes dizem que morreu um homem em custódia policial (situação na qual por via das dúvidas deveria haver sempre o cuidado de ir ao local); de uma polícia das polícias - a IGAI - que tem a incumbência de monitorizar o respeito pelos direitos humanos mas nunca fez uma inspeção sem aviso prévio ao principal centro de detenção de estrangeiros do país, o do aeroporto da capital. De um ministro e um governo que perante um caso destes acham que a direção da polícia responsável pode ficar incólume.
Mas é também o caso de um PR que perante tudo isto se cala, dos partidos que pouco ou nada falaram, das grandes instituições da sociedade civil, como a Igreja Católica, que pouco ou nada fizeram para exigir esclarecimento cabal de um caso tão horrível como este e as mudanças necessárias para que não possa repetir-se.
Restou, face a toda esta incompetência e indiferença, o jornalismo. É para certificar que casos destes não são abafados, esquecidos, escamoteados, que ele existe - que existimos. Mas mesmo aí a maioria, tenho de o dizer, falhou. Fomos muito poucos, aliás muito poucas - calhou que fossem só mulheres jornalistas nesta batalha em que esteve também Joana Gorjão Henriques, do Público - a continuar a perguntar, a querer saber (e ainda não terminámos).
O desinteresse do país, nesta era em que o jornalismo se guia mais por cliques e audiências do que por critérios de interesse público, determinou o abandono do caso de Ihor, e esse abandono determinou o desinteresse de um país que pouco lê jornais e ignora o que não "dá na TV". Uma triste pescadinha de rabo na boca da qual agora todos querem sair bem - mas, lamento, saímos todos mal.
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