sábado, 20 de fevereiro de 2021

Biden, comandante dos “crentes verdadeiros”

Thierry Meyssan*

Enquanto os Estados Unidos se dirigem decididamente para a guerra civil, o Presidente Joe Biden apoia-se nos crentes de esquerda, originários de diferentes confissões. Ele considera os eleitores de Donald Trump como gente que foi desviada da fé e que deve reconduzir ao caminho verdadeiro. À força de manipular as religiões, o Partido Democrata está em vias de dividir o país, não entre confissões distintas, mais entre a maneira de conceber a fé. O Presidente Biden ambiciona reunir todos os concidadãos sob o seu próprio magistério a fim de prosseguir a via traçada por Barack Obama. Mas na prática, longe de apaziguar, ele radicaliza o debate político apesar das intenções.

Anteriormente, apresentei os partidários da cultura «despertar» (« woke ») nos EUA como sendo «Puritanos sem Deus». Trata-se de uma síntese rápida para sublinhar que muitos deles não acreditam em Deus. Eu quero corrigir esse retrato tratando aqui da marca dos crentes no seio da esquerda norte-americana. Este é um assunto muito pouco abordado nos EUA [1] e totalmente ignorado na Europa, onde sempre se apagam os aspectos chocantes das religiões no suserano EUA.

Em primeiro lugar, convêm estabelecer o contexto:

-- Os Estados Unidos teriam sido fundados por uma seita puritana, os “Pais Peregrinos”, vindos no século XVII a bordo do Mayflower. Eles deixaram a Inglaterra, atravessaram o Atlântico, encontraram um continente quase vazio para onde transportaram a sua exigência de pureza e onde construiriam uma « Cidade sobre a colina » que iluminaria o mundo. De facto, hoje em dia, os Estados Unidos são os campeões da liberdade religiosa no mundo, mas não da liberdade de consciência: o testemunho de um renegado contra a sua antiga igreja ou seita não é aceite perante um tribunal.

Durante a Guerra Fria, o Presidente Eisenhower posicionou os Estados Unidos como o campeão da Fé face ao « comunismo sem Deus » dos Soviéticos [2]. Ele mandou distribuir obras de propaganda « cristã » a todos os ses soldados e instalou um grupo de oração ecuménica no Pentágono, hoje em dia conhecido sob o nome de « A Família » [3]. Ele estendeu-o para todo o mundo ocidental. Todos os presidentes do Comité de Chefes de Estado-Maior tomaram parte e nele ainda tomam parte, assim como inúmeros Chefes de Estado ou de Governo estrangeiros.

Por fim, depois da dissolução da União Soviética, os Norte-Americanos afastam-se das suas Igrejas e 17 % deles dizem-se agnósticos, ou mesmo por vezes ateus. Quanto ao número de crentes que não se afirmam filiados a uma determinada Igreja esse não para de aumentar. O discurso político já não se dirige só aos crentes de todas as denominações cristãs, ou sequer aos crentes de todas as religiões, mas, sim também aos não-crentes.

Esta evolução exprimiu-se pela primeira vez na Convenção do Partido Democrata, em 2012. Embora muitas grupos de trabalho fossem organizadas por grupos religiosos, os textos apresentados e adoptados já não mencionavam Deus. Não que o Partido já não seja composto por uma esmagadora maioria de crentes, mas porque pretendia continuar a falar para todos e porque o povo dos EUA tinha mudado.

Aquando da eleição presidencial de 2004, o candidato democrata, John Kerry, é um católico que hesitara em tornar-se padre. Ele crê poder contar com o eleitorado da sua comunidade religiosa, mas não o consegue.

Os católicos de esquerda não estão ainda organizados. O seu discurso sobre o aborto choca o futuro Cardeal Burke que pede à Conferência Episcopal para lhe recusar a Eucaristia. Finalmente o Papa Bento XVI evocará, após a sua derrota face a George W. Bush, a sua excomunhão de facto.

Em 2008, a eleição do democrata Barack Obama, que foi apresentada como uma vitória das organizações negras, foi na realidade uma vitória ainda maior dos cristãos de esquerda, maioritariamente brancos. O seu Chefe de Gabinete, John Podesta, sendo um activista católico, reunira todas as capelas de cristãos de esquerda, protestantes e católicos, a fim de apoiar a sua ascensão à Casa Branca.

Identicamente, a aprovação da lei sobre a obrigação dos trabalhadores subscreverem um seguro de saúde numa empresa privada é, acima de tudo, uma vitória dos cristãos da esquerda sobre os da direita. Os primeiros pretendiam seguir os preceitos da sua religião, enquanto os segundos queriam salvar os valores. Notai bem que Jesus, o Nazareno, sempre recusou posicionar-se nestes assuntos, mas ensinou pelo exemplo. Registai bem também que a escolha legislativa de Barack Obama nada tinha de política. Ele jamais se preocupou com o que os seus concidadãos queriam.

Barack Obama tem uma grande cultura religiosa, não apenas cristã, mas também muçulmana. Não se sabe muito sobre a sua fé, mas ele sempre apareceu como muito respeitador todas as formas de religião. O que lhe permitiu aparecer durante muito tempo como um sábio e federar atrás do seu nome os crentes de todas os horizontes.

Ele reformou o Gabinete da Casa Branca para iniciativas baseadas na Fé criado pelo seu predecessor. Assegurou-se que as subvenções federais não seriam utilizadas em favor deste ou daquele culto. Ele colocou nele o jovem Joshua DuBois para coordenar os crentes de esquerda e juntou-lhe um conselho composto pelas suas principais figuras:

-- a Reverenda Traci Blackmon envolvida nos cuidados de saúde para todos ;
-- a Reverenda Jennifer Butler, fundadora de Faith in Public Life ;
-- o Reverendo Jim Wallis, editor da revista Sojourners e conselheiro espiritual do Presidente ;
-- o Pastor Michael McBride empenhado contra as armas e as violência da polícia contra os Negros ;
-- a Escritora de sucesso Rachel Held Evans, autora de Une année de féminité biblique : comment une femme libérée s’est retrouvée assise sur son toit, couvrant sa tête et appelant son mari maître ;
-- o Rabino David Saperstein, director do Religious Action Center of Reform Judaism. Que também foi designado embaixador dos Estados Unidos para a liberdade de religião no mundo ;
-- Harry Knox, líder da Human Rights Campaign’s Religion and Faith Program, depois director da Religious Coalition for Reproductive Choice, líder dos direitos dos gays e da luta pelo direito ao aborto ;
-- Rami Nashashibi, director da Inner-City Muslim Action Network. Que militou para distinguir os muçulmanos dos terroristas após os atentados de 11-de-Setembro.

Todas estas personalidades participaram activamente nos debates sobre as estátuas a demolir ou nas manifestações da Black Lives Matter no ano passado.

Durante a sua campanha presidencial, Hillary Clinton evocou o menos possível a sua fé pessoal. Dirigiu-se muito aos crentes, sobretudo aos evangélicos. Com um discurso sobre os preceitos do cristianismo que imporiam expiar o pecado original da escravatura e receber todos os migrantes, ela não conseguiu convencê-los. Apenas após o seu fracasso eleitoral é que ela anunciou estar a pensar tornar-se Pastora metodista.

Pelo contrário, o seu rival, Donald Trump, que não parece ter quaisquer preocupações religiosas, conseguiu ligar a si a maioria dos cristãos de direita e particularmente os evangélicos brancos. Ele apresentou-se-lhes não como um crente, mas como um «tipo (cara-br) que ia fazer o trabalho certo» e salvar os valores que os cristãos de esquerda negligenciavam. Os cristãos de direita apreciaram a sua sinceridade e viram-no como um descrente enviado por Deus para salvar a América.

Durante o mandato de Obama, os crentes de esquerda norte-americanos tiveram a impressão —errada ou com razão— que o Papa Francisco se lhes dirigia em particular. Com efeito, interpretaram a sua primeira carta apostólica, Evangelii gaudium (2013), que convida os fiéis a evangelizar o mundo, como uma justificação para o seu envolvimento político na medida em que ele aí aborda «a opção preferencial pelos pobres». No entanto, contrariamente ao que pensam os crentes de esquerda norte-americanos, a Igreja Católica jamais ensinou a preferir certos homens sobre outros. Acima de tudo, os crentes de esquerda receberam a encíclica Laudato si ’ (2015), consagrada às questões ambientais, como um apoio à sua militância ambiental. No conjunto, levando em conta todas as religiões, eles consideram hoje o Papa Francisco como o mais legítimo líder religioso.

Joe Biden é o segundo Presidente dos Estados Unidos que é católico, depois de John Kennedy. Mas enquanto Kennedy teve que provar que era independente e não aceitaria a injunção de um papa estrangeiro, Biden tenta por todos os meios ser elevado por um Papa adorado pelos seus eleitores. Durante a campanha eleitoral, ele difundiu um vídeo publicitário no qual explicou a que deve a sua Fé. Foi ela, a Fé, que lhe permitiu superar o desgosto e manter a esperança quando perdeu a esposa e a sua filha num acidente, e depois um dos filhos com um cancro (câncer-br).

No início deste artigo, evoquei o grupo de oração do Pentágono. Desde a sua criação pelo General Eisenhower, ele organiza todos os anos, no início de Fevereiro, um almoço de oração com o Presidente dos Estados Unidos em exercício. Todos aguardavam pelo discurso do Presidente Biden. Este durou 4 minutos por videoconferência. Nele, o orador condenou «o extremismo político» (alusão ao seu predecessor) e salientou a fraternidade entre «Americanos».

Para o novo Presidente, os Americanos são «bons», tal como ele proclamou durante a cerimónia de investidura. O Partido Democrata busca a Justiça Social na tradição do «Social Gospel» (Evangelho Social-ndT) de 1920. Todos os Americanos deveriam espontaneamente segui-lo. Infelizmente, os crentes de direita acabaram cegos por Donald Trump; um homem sem religião. Eles votaram por este bilionário sem se dar conta que traíam a sua fé. É por isso que é seu dever abrir-lhes os olhos e de torná-los felizes apesar da sua escolha.

O Presidente Biden jamais tentou entender por que é que os crentes de direita votaram em Trump. Considerou sempre este facto como uma anomalia intelectual. Assim, hoje em dia, ele tenta assimilar o grupo QAnon a uma seita delirante que imagina Satanás por toda a Washington. Em cada uma das suas declarações, ele esforça- se por apresentar a presidência de Trump como um erro, um sinistro parênteses sem amanhã.

Para os crentes de esquerda, a única coisa que conta são as decisões tomadas a partir de 20 de Janeiro em favor dos imigrantes, das mulheres, das minorias sexuais e contra a violação dos espaços sagrados das minorias índias.

Assistimos a um grande erro. Os crentes de esquerda pensam que devem impor as suas convicções políticas em nome de Deus, enquanto o Partido Democrata pensa que não deve actuar de modo político, mas seduzir os eleitores. A separação entre as Igrejas e o Estado continua a existir de um ponto de vista institucional, mas já não mais na prática quotidiana. O problema mudou: já não é entre religiões, mas entre diferentes concepções da Fé.

São Bernardo, que pregou a Segunda Cruzada, reconhecia que «O inferno está cheio de boas intenções». É exactamente o que se passa aqui: os crentes de esquerda comportam-se como fanáticos. Eles falam em unidade nacional, mas abriram uma caça às bruxas em relação à qual a de McCarthy (o “McCarthismo anti-comunista dos anos 50- ndT)” parece brincadeira. Eles despedem centenas de conselheiros do Pentágono; tentaram demitir uma eleita da Câmara dos Representantes porque ela põe em dúvida a versão oficial dos atentados do 11-de-Setembro; ou querem prender todos os apoiantes do “movimento QAnon”. Ou seja, eles não pacificam os Estados Unidos após a captura do Capitólio, antes o precipitam na guerra civil.

Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:

[1] American Prophets: The Religious Roots of Progressive Politics and the Ongoing Fight for the Soul of the Country, Jack Jenkins, HaperOne (2020.

[2] Modern Viking: the story of Abraham Vereide, pioneer in christian leadership, Norman Grubb, Zondervan (1961). Military chaplains: From religious military to a military religion, Harvey G. Cox, JR, Abingdon Press (1969). Washington: christians in the corridors of power, James C. Hefley & Edward E. Plowman, Tyndale & Coverdale (1975).

[3] The Family: the secret fundamentalism at the heart of American Power, Jeff Sharlet, HarperCollins (2008).

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