domingo, 28 de março de 2021

Portugal | Manuel Soares: "A justiça é como um condomínio sem administrador"

Entrevista JN/TSF

Manuel Soares, juiz desembargador no Tribunal da Relação do Porto, foi eleito presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses em 2018, e acaba de ser reeleito.

Na entrevista JN/TSF, critica a falta de transparência sobre as pendências causadas pela pandemia, explica a insistência em criminalizar o enriquecimento ilícito e analisa os casos de corrupção que minam a credibilidade da magistratura.

Começaram ontem as férias judiciais, que vão durar uma semana. No momento que vivemos, fazem sentido?

No ano passado, quando se pôs a questão se as férias judiciais de verão podiam ser encurtadas, houve alguma hesitação do Governo e eu, numa reunião com a senhora ministra, disse que achávamos que isso era importante. Compreendíamos que, no plano da eficiência do sistema, não ia trazer um ganho relevante mas era importante simbolicamente. Este ano a questão nem se chegou a colocar. Penso que o Governo chegou a colocar a hipótese de não haver férias da Páscoa, mas o processo legislativo alterou-se ou atrasou-se, porque a lei só foi aprovada ontem no Parlamento e, portanto, penso que por uma questão de timing não terá havido essa oportunidade. Da parte dos juízes não havia nenhuma dificuldade, até porque as férias pessoais são no verão.

Neste mesmo espaço de entrevista, o bastonário da Ordem dosAdvogados previa uma "enxurrada de processos que vai deixar a justiça de rastos" depois da pandemia. É um exagero?

Infelizmente, acho que não. No confinamento anterior, a estimativa que o presidente do SupremoTribunal de Justiça deu foi de que foram adiados à volta de 47 mil processos e nesta fase não me admiraria que tivessem sido adiados outros tantos, ou até mais. Esses números não são conhecidos. Há aqui um problema: quem tem o acesso aos números e ao sistema informático é o Governo. Os conselhos superiores, que têm de fazer a gestão do sistema, não têm acesso. Podem, evidentemente, pedi-los. Era importante percebermos se são 60 mil ou 150 mil processos para recuperar.

Há uma falta de transparência ou de informação?

Eu acho que há. A justiça é como um condomínio sem reuniões de administração e sem administrador. Temos o Ministério da Justiça que regula os funcionários, os edifícios, tem a gestão dos sistemas informáticos. Depois, tem os dois conselhos superiores, que regulam os respetivos magistrados, e os advogados têm a sua Ordem. Portanto, é muito difícil nos tribunais às vezes as coisas correrem. Nós vamos ter de enfrentar nos próximos meses não apenas os processos que se acumularam, mas aqueles, também milhares, que vão chegar. Os processos de trabalho, que são resultado da crise económica e social, desde pessoas que deixaram de receber ou que foram despedidas sem receber os seus vencimentos, empresas que vão discutir os contratos, que não conseguem pagar as suas dívidas, insolvências, problemas nos tribunais de família de menores......Era preciso sair disto de uma forma mais planeada. Dizer ao sistema por onde é mais importante, no plano social e económico, começar. Se se deixar o sistema trabalhar sozinho, vamos demorar muito mais tempo.

Há processos muito mediáticos que marcam a impressão que a opinião pública tem do sistema. Por exemplo, a Operação Marquês ou do BES. São casos em que há problemas adicionais que tornam ainda mais lento o funcionamento da justiça?
Não podemos negar que a perceção que as pessoas têm da justiça é muito influenciada por esses processos, que vivem as dificuldades normais de todos os outros, acrescidas por dificuldades suplementares, dada a sua dimensão. Mas há uma coisa que quem está de fora do processo percebe: é que um processo demorar 20 anos a chegar à decisão final não está certo. Temos todos de conseguir fazer melhor, porque não podemos estar 20 anos à espera de uma decisão, com um ex-primeiro-ministro pendurado para se saber se é culpado ou inocente.

Marcelo Rebelo de Sousa admitiu o falhanço do pacto para a justiça por ele proposto, dizendo que foi muito por culpa dos parceiros políticos. É também a sua opinião?

Olhe, a história do pacto é uma história interessante. Eu estava na conferência no Centro Cultural de Belém quando o presidente da República apresentou essa ideia, e nesse dia ele disse uma coisa que a Comunicação Social não apanhou bem. Disse que não se resolvia os problemas da justiça porque havia um bloco central de interesses que o impedia. Foi esta expressão que o presidente da República usou.

Ou seja, concorda que é por causa dos políticos que temos o sistema de justiça que temos?

Não. Com certeza aquilo que acontece de bom e de mau no país é por causa dos políticos que temos e da população e dos portugueses que elegem os políticos e fiscalizam os políticos. O país é que tem culpa daquilo que é, no que é bom e no que é mau. Depois o pacto não correu bem porque as profissões não se puseram de acordo no essencial. E na verdade também temos que dizer que o presidente da República, não sei se perdeu essa paixão, mas a verdade é que esse ímpeto inicial que deu, esse impulso inicial, depois foi-se perdendo um bocadinho.

Porque é que a Associação Sindical dos Juízes sentiu a necessidade, no âmbito da estratégia de combate à corrupção, de apresentar uma proposta para criminalizar o enriquecimento ilícito dos políticos?

É importante fazer notar que o que está por trás não é uma ideia de que os políticos são todos corruptos, que os juízes estão num plano de moralidade superior e apontam os dedos aos políticos, e querem corrigir os males da política. Não é isso, até porque a proposta que apresentámos também se aplica a juízes, magistrados e a toda a gente. O que está mal é nós olharmos para os últimos 20 ou 30 anos e conseguirmos perceber todos que há pessoas que entraram pobres na política, saíram ricas da política e riem-se de nós. E os mecanismos que temos para detetar essas situações são insuficientes. É impossível, no plano constitucional, criminalizar o enriquecimento de uma pessoa no exercício de um cargo público com base na presunção de que aquele dinheiro é sujo. Portanto, temos de ir por outro caminho. Uma vez que os titulares dos cargos políticos e altos cargos públicos são já obrigados a declarar os bens, rendimentos e património que têm, acrescentar ao dever de declarar também o dever de explicar, de justificar. E, depois, criminalizar de uma forma mais robusta - porque, na verdade, na Lei 52/2019 já há lá qualquer coisa, mas insuficiente - o facto de alguém no exercício de um cargo esconder dinheiro. O que propúnhamos não seria punir o enriquecimento ilícito, seria punir a conduta de ocultar riqueza adquirida no exercício de um cargo público.

Mas o Governo aprovou, na semana passada, a segunda versão da estratégia e essa proposta não foi acolhida. Como é que avalia essa exclusão?

Quando apresentámos essa proposta, eu vi sinais bastante positivos da ministra da Justiça. Admito que tenham estudado e consideraram que o que já existe na lei 52/2019 é suficiente. Não quero qualificar, não vou dizer que o Governo fez por isto ou por aquilo, o que é importante é que nós, juízes, vamos agora construir a proposta um bocadinho melhor e apresentá-la ao Parlamento e aos partidos. Cada um assumirá as responsabilidades que tem.

Tem algum retorno de que contará com o apoio de uma maioria de deputados?

Não tenho, porque nós não fazemos lóbi. O que me parece, como cidadão e agente, é que se algum partido apresentar uma proposta desta natureza será muito difícil os outros não terem de a votar. Porque é tão evidente que é preciso fazer mais que é politicamente insustentável não aceitar uma proposta desta natureza. E se não aceitarem, que expliquem.

Ainda no âmbito da Estratégia, a Associação propôs o aumento dos juízes do Tribunal Central de Instrução Criminal. O documento que o Governo libertou não faz qualquer referência ao assunto. Como vê a perspetiva de continuarmos com o ambiente de decisão/anulação, entre os juízes Carlos Alexandre e Ivo Rosa?

Não estou certo, não conheço ainda os documentos aprovados no Conselho de Ministros, mas a entrevista que a ministra deu dá a ideia de que abre essa porta. Pareceu-me ler nas palavras da senhora ministra que o Governo iria tomar uma iniciativa qualquer nesse sentido.

Considera que é importante para aumentar a a transparência das decisões?

Claro que sim. O problema não são estes dois juízes, é o modelo daquele tribunal, em que as pessoas já estão mais interessadas na pessoa do juiz e deixam de estar interessadas na decisão, e procuram dizer que um juiz é a favor das liberdades, o outro é contra os arguidos. Esta lógica não tem sentido.

Revê-se mais na justiça de Carlos Alexandre ou na de Ivo Rosa?

Revejo-me nas duas. Revejo-me na justiça que absolve quando não se provou que uma pessoa cometeu o crime ou que nega uma escuta telefónica quando não há indícios suficientes, como me revejo numa outra em que, se há uma investigação importante e se a Polícia ou o Ministério Público trazem indícios suficientes para pedir uma busca, uma prisão preventiva, o tribunal deve deferir.

Temos vindo a viver sob o estado de emergência, sob inúmeras restrições. Tendo a pandemia mais de um ano, o poder político não teve já tempo suficiente para aprovar uma lei adequada?

Quando a Constituição foi feita, em 1976, ninguém esperava que ia haver uma pandemia desta dimensão durante um ano. E, portanto, as coisas apanham-nos desprevenidos. Se for possível criar instrumentos legais, abaixo da bomba atómica constitucional, que consigam garantir aquilo que é preciso sem utilizar a figura do estado de emergência, isso era importante.

Nos últimos dias, temos olhado para uma polémica envolvendo o juiz Rui Fonseca e Castro, que chegou a apresentar minutas e a fazer vídeos contra o estado de emergência. O Conselho de Magistratura demorou três semanas a reagir. Não se justificaria uma atitude mais enérgica?

Um juiz tem direito a ter as suas convicções íntimas, pessoais, não tem é que fazer comícios nem organizar grupos disto ou daquilo. A sociedade não gosta de ver juízes provocatórios, com atitudes que lançam dúvidas sobre as condições que o tribunal possa ter para tratar de certas matérias. Quanto à outra questão, o ConselhoSuperior de Magistratura, é preciso um inspetor, analisar os factos, tem de ir recolher os documentos, ou seja, isto não iria andar nunca à velocidade de uma notícia. Eu acho que o Conselho Superior de Magistratura falhou noutras matérias, nesta não posso dizer isso.

Inês Cardoso e Pedro Pinheiro | Jornal de Notícias

Sem comentários:

Mais lidas da semana