segunda-feira, 19 de abril de 2021

"A discriminação contra os mais velhos na pandemia fez aumentar as mortes"

Entrevista

Fundadora do Oxford Institute of Population Ageing, Sarah Harper fala ao DN sobre as principais mudanças e os desafios de uma sociedade a envelhecer, o que não afeta só os mais velhos. E diz que o preconceito de idade ficou evidente na reação à pandemia.

Sarah Harper é professora de Gerontologia na Universidade de Oxford, em Inglaterra, e uma das vozes mais reconhecidas a nível global sobre as matérias do envelhecimento e alterações demográficas.

Foi uma das convidadas do Fórum do Envelhecimento Saudável, coorganizado pela Universidade de Coimbra e pela Embaixada do Reino Unido em Portugal, e respondeu ao DN, por escrito, a algumas questões, desde o papel das migrações às alterações trazidas pela tecnologia ou o impacto esperado no mercado de trabalho. A britânica sublinha a necessidade de repensar os sistemas de segurança social e defende que a pandemia deixou evidente a discriminação contra os mais velhos.

Começo por recuperar o título de um dos seus livros: Como as Alterações Demográficas Vão Transformar o Mundo. Que principais mudanças prevê numa sociedade a envelhecer?

Uma questão-chave é se devemos esperar que haja uma convergência entre a evolução demográfica e a evolução socioeconómica dos países e qual o papel que a migração deve desempenhar neste processo. À medida que caem as restrições ao movimento de pessoas e de capital financeiro em todo o mundo, a mudança demográfica torna-se uma força potente para mudanças na economia global. Mas exatamente como essas mudanças acontecerão é algo de que se conhece ainda pouco. Grandes alterações na distribuição etária das populações podem afetar os padrões de poupança de cada país e os fluxos de capital internacional, especialmente entre os mundos mais e menos desenvolvidos. A procura por profissionais de saúde e assistência social em países mais desenvolvidos já tem vindo a aumentar e deve aumentar ainda mais, ao mesmo tempo que a oferta de trabalhadores jovens ficará mais restrita. As implicações para os sistemas de segurança social dos países "exportadores" e "importadores" de mão-de-obra são consideráveis.

Segundo a ONU, até 2030 a população com mais de 65 anos corresponderá a 22% no Reino Unido e 27% em Portugal - podendo chegar a 37% até 2080 em Portugal, um dos países mais envelhecidos. São dados preocupantes?

Envelhecer numa sociedade com uma maioria de pessoas velhas é diferente de envelhecer numa sociedade em que a maioria das pessoas são jovens. O debate gerontológico precisa de ser desviado de um foco exclusivo nas pessoas idosas, per se, e reconhecer que as mudanças etárias estruturais que estão a ocorrer têm implicações para todas as gerações. As pessoas não apenas vivem mais, mas também vivem dentro de populações que estão a envelhecer. Em países demograficamente jovens, há altas proporções de indivíduos economicamente ativos que podem produzir a riqueza necessária para sustentar dependentes, velhos e jovens. No entanto, essas sociedades também podem não dedicar muita atenção ao bem-estar dos idosos, pois estes representam uma pequena minoria da população em geral. Por outro lado, em países demograficamente mais idosos há uma proporção menor de indivíduos economicamente ativos e, portanto, a responsabilidade de sustentar a dependência na velhice pode recair cada vez mais sobre os próprios idosos. É importante que sejam desenvolvidas políticas que apoiem uma abordagem multifacetada do envelhecimento da população.

As mudanças etárias estruturais que estão a ocorrer têm implicações para todas as gerações

Uma área-chave deste debate diz respeito ao impacto do envelhecimento da população no chamado contrato social entre gerações. É uma ameaça aos sistemas de segurança social?

Os decisores políticos precisam de repensar o funcionamento das instituições que distribuem os recursos e apoios sociais. Precisamos de equacionar quais os ajustes que terão de ser feitos nestes sistemas sociais para enfrentar um futuro sustentado em índices de baixa mortalidade e baixa fertilidade. As alterações de políticas necessárias para financiar as necessidades suplementares de populações mais longevas e menos férteis apresenta claramente grandes desafios de alocação e distribuição de recursos. Por exemplo, enquanto indivíduos, podemos ser obrigados a reconsiderar a forma como consumimos e canalizamos recursos aos longo das diferentes fases da nossa vida; enquanto sociedade, coletivamente, temos que decidir como distribuir o fardo do ajustamento às mudanças demográficas ao longo das diferentes etapas de vida de uma geração, mas também no relacionamento entre as diferentes gerações. Contudo, as previsões atuais sobre a longevidade podem revelar-se até muito conservadoras, devido, por exemplo, à velocidade do avanço tecnológico na biomedicina. Ou, pelo contrário, revelarem-se muito otimistas, devido a questões de saúde emergentes como o aumento da prevalência de obesidade. Por isso, os cenários extremos que temos de considerar incluem tanto a possibilidade de a biomedicina capacitar as crianças de hoje a permanecerem saudáveis até para lá dos 100 anos, como também a possibilidade de a esperança de vida delas vir a ser menor do que a dos seus pais.

Que impacto estas alterações podem ter no mercado de trabalho? Teremos pessoas a trabalhar cada vez até mais tarde?

O mercado de trabalho enfrentará tanto uma crescente escassez de competências como uma grande proporção de trabalhadores mais velhos, levando à necessidade de adaptação para formar e reter os trabalhadores mais velhos. Os novos padrões de trabalho vão exigir cada vez mais flexibilidade aos trabalhadores. É provável ainda que o lar, a nossa casa, venha a desenvolver-se como um local de trabalho, de educação e de saúde, como temos visto nesta pandemia. Temos de pensar como a organização do trabalho pode ser mais bem adaptada a uma nova estrutura etária da sociedade; por exemplo, perceber como se pode alcançar um equilíbrio entre a flexibilidade e a segurança no trabalho, para os pais poderem criar os seus filhos, mas também continuarem a formar-se e a atualizar competências para o mercado de trabalho. As sociedades vão ter de decidir qual é o equilíbrio adequado entre investir na educação infantil e na educação dos adultos, que precisarão de formação ao longo da vida. As interrogações em aberto são muitas.

Os novos padrões de trabalho vão exigir cada vez mais flexibilidade aos trabalhadores. E é provável que o lar, a nossa casa, venha a desenvolver-se como um local de trabalho, de educação e de saúde.

As disrupções previstas acarretam um grande risco económico para as sociedades. Como mitigar isso?

Grande parte das preocupações em torno do desafio económico surge da previsão de que as futuras forças de trabalho serão não só mais velhas como menos produtivas e menos inovadoras, e também de que uma população mais velha consumirá menos. Ora, ambos os fatores acarretam consequências negativas para as economias. No entanto, por outro lado, pelo menos nas economias avançadas, novas faixas de população altamente educadas, qualificadas e cada vez mais saudáveis ​​estão a chegar à idade tradicional de reforma e permanecem ativas no mercado de trabalho e na vida económica - produzindo, consumindo e pagando impostos. Existem claramente desafios enormes pela frente, mas também oportunidades reais trazidas por uma sociedade mais madura. Por exemplo: forças de trabalho mais flexíveis e inclusivas, integrando diferentes gerações; maior equidade geracional; sociedades inclusivas e politicamente estáveis. Essas são potenciais vantagens de uma sociedade mais madura. De resto, o crescimento de sociedades em que a maioria das pessoas vivem uma vida longa, saudável e ativa pode ser um dos maiores sucessos do século XXI.

Quais as principais ameaças a um envelhecimento saudável das populações?

Há um crescente reconhecimento da interação entre fatores como idade, predisposições genéticas e vários tipos de riscos que se prolongam no tempo e que, em conjunto, contribuem para aumentar a probabilidade de doença e de esta ocorrer mais cedo ou mais tarde na vida. As doenças degenerativas crónicas são hoje as principais causas de morte no mundo desenvolvido. Alguns fatores de risco, como a hipertensão e a obesidade, por exemplo, têm associado um risco de mortalidade frequentemente maior com a idade. Entretanto, a obesidade surgiu como um fator de risco para patologias como diabetes, doenças cardiovasculares e alguns tipos de cancro, e o aumento da prevalência de obesidade pode ter um impacto suficientemente grande para parar ou inverter as atuais tendências de aumento da esperança de vida. Outros riscos relacionados com estilo de vida encontrados na maioria das populações dos países mais ricos do mundo são uma dieta pouco saudável, a falta de exercício físico regular e o consumo excessivo de álcool. As circunstâncias socioeconómicas, bem como os principais fatores ​​sociodemográficos, como etnia, estado civil e género, também surgem associados a diferenças no risco de mortalidade de diferentes grupos da população.

O aumento da prevalência da obesidade pode ter um impacto de saúde pública suficientemente grande para parar ou inverter as atuais tendências de aumento da esperança de vida

A desigualdade social continua a ter um reflexo importante na esperança de vida?

Nos últimos 20 anos, ou mais, no entanto, tornou-se evidente que, apesar das melhorias consideráveis ​​no padrão de vida dos grupos socioeconómicos mais baixos, ainda há uma grande diferença na esperança de vida. Grupos sociais de rendimentos inferiores têm uma taxa de mortalidade mais alta, apesar de estarem bem acima do limiar da pobreza. Ou seja, o estatuto socioeconómico, em vez de pobreza por si só, tornou-se o conceito central para investigarmos o reflexo das desigualdades sociais nas taxas de mortalidade, que ainda é evidente. Mas não só uma desigualdade social. Em termos de género, por exemplo, verificamos que os homens têm taxas de mortalidade mais altas do que as mulheres. Há também uma relação clara entre o estado civil e o risco de mortalidade. Pessoas casadas tendem a ter melhor saúde e a viver mais do que as que nunca se casaram, e estas por sua vez têm melhor esperança de vida do que divorciados ou viúvos.

Que papel pode ter a tecnologia neste processo? Pode ajudar a mitigar ou, pelo contrário, acelerar, essas disrupções sociais associadas à alteração em curso da estrutura demográfica?

Os efeitos da globalização e da rápida inovação tecnológica nos mercados de trabalho dos países ricos foram significativos. Houve um declínio rápido e acentuado na importância relativa da manufatura nas economias industrializadas mais antigas, e isso foi acompanhado por um crescimento igualmente rápido no setor de serviços e formas mais precárias de emprego. O ritmo da inovação tecnológica abriu espaço a uma série de economias de conhecimento intensivo que valorizam não apenas o nível de educação da força de trabalho, mas também a sua flexibilidade e adaptabilidade. Por isso, os jovens que entram no mercado de trabalho encontram-se num mundo muito diferente daquele que prevalecia quando as gerações baby boom entraram no mercado de trabalho.

No Reino Unido, alguns residentes de lares de idosos foram erroneamente sujeitos a decisões médicas que excluíram tentativas de ressuscitação cardiopulmonar [RCP], levando a mortes potencialmente evitáveis

O drama das mortes de idosos devido à covid-19 despertou-nos da pior forma para as condições em que colocamos os nossos pais ou avós. Os preconceitos de idade ficaram expostos nesta pandemia?

Durante a pandemia, a maioria dos governos alertou os adultos mais velhos que eles corriam um risco maior de doença grave e de morte com a covid-19. Os dados iniciais sobre a mortalidade, nos quais muitos desses conselhos se basearam, indicaram taxas de mortalidade crescentes com a idade, levando a uma recomendação geral de que os idosos deviam ficar em casa e evitar o contacto social. Isso apesar de haver evidências generalizadas, adquiridas já pelo estudo de outras doenças que afetam a vida mais adulta, de que fatores como o género, a etnia, estatuto socioeconómico, comorbilidades e obesidade são fatores de risco diferenciadores entre membros dessas faixas etárias. E apesar também das evidências emergentes sobre o enorme preço para a saúde mental e física que esse confinamento impunha aos mais velhos. Mas, em toda a Europa, os países sofreram para proteger as pessoas vulneráveis ​​nos lares de idosos. Os números mostram que, nas primeiras vagas da pandemia, quase metade das mortes na Europa ocorreram em lares. E isso pode ser explicado por vários fatores, como a recusa em levar adultos mais velhos com covid para o hospital, a "descarga" dos idosos com covid em casas sem acompanhamento profissional, a movimentação dos trabalhadores de cuidados assistenciais e a falta de treino e de equipamentos adequados desses trabalhadores. Além disso, no Reino Unido, alguns residentes de lares de idosos foram erroneamente sujeitos a decisões médicas que excluíram tentativas de ressuscitação cardiopulmonar [RCP], levando a mortes potencialmente evitáveis. No meio do temor de que os hospitais ficassem sobrelotados, algumas casas de saúde receberam avisos DNACPR [para não tentar ressuscitação cardiopulmonar]. Isso sem discussão nem consentimento dos adultos mais velhos ou das suas famílias. Isso foi denunciado pelos principais organismos que trabalham com idosos, que criticaram as medidas de contenção do coronavírus impostas aos mais velhos, incluindo o confinamento, o distanciamento físico e as restrições de movimento. De resto, as evidências demonstram que os estereótipos de idade, o preconceito e a discriminação contra adultos mais velhos durante a pandemia levaram a piores cuidados de saúde e a um aumento do número de mortes.

Rui Frias | Diário de Notícias

Sem comentários:

Mais lidas da semana