sábado, 3 de abril de 2021

Judeus ainda são bem-vindos na Europa?

#Publicado em português do Brasil

Pinchas Goldschmidt* | Deutsche Welle | opinião

O Velho Continente trai seu lema "Unidos na diversidade" ao decretar restrições à vida judaica. A tendência se agravou com a pandemia e poderá resultar num êxodo, opina o rabino-chefe de Moscou, Pinchas Goldschmidt.

Neste fim de semana (27-28/03) começa o Pessach, uma das festas mais importantes do judaísmo, recordando a libertação dos israelitas de sua escravidão no Egito. Mas nem todos estão com espíritos para comemorações.

Recentemente, o secretário do Vaticano para Relações com os Estados, Paul Gallagher, acusou um esvaziamento do direito fundamental à liberdade religiosa na pandemia, numa participação em vídeo à 46ª Assembleia do Conselho para os Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra. Segundo ele, certas medidas oficiais para garantia da saúde comprometeriam o livre exercício dos direitos humanos.

Com isso, o arcebispo britânico tocou um ponto doloroso que atualmente afeta praticamente todas as congregações de fé e religião do mundo. Infelizmente, restrições crescentes contra o direito fundamental à liberdade religiosa não são um fenômeno novo.

Essa tendência negativa já existia antes da eclosão no novo coronavírus. Sob a capa da pandemia, ela simplesmente está se reforçando ainda mais. O fato enche de apreensão a comunidade judaica da Europa, pois coloca em jogo sua existência futura.

Europa precisa estar atenta

Enquanto o continente gira em torno de si mesmo há mais de uma década, em modo de crise, perdendo de vista, no processo, o lema tão evocado de "Unidos na diversidade", do outro lado do Oceano Atlântico as atenções voltam a se concentrar no continente.

Em fevereiro, durante um encontro de especialistas da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) sobre o combate ao antissemitismo, a vice-secretária de Estado americana encarregada de democracia e direitos humanos, Kara McDonald, apresentou um panorama da cooperação planejada com o governo do presidente Joe Biden.

A boa notícia é que é que ela intensificará seu trabalho contra o antissemitismo, como definido em âmbito mundial pela Aliança Internacional para Recordação do Holocausto (IHRA; na sigla em inglês). Entretanto chamou a atenção a declaração de McDonald sobre a vida judaica no presente – não no passado. E aqui a Europa deve estar atenta.

A secretária de Estados frisou que hoje em dia a capacidade de sobrevivência das comunidades judaicas numa série de países está ameaçada de outra forma: através de proibições – decretadas ou em consideração – de práticas como o abate ritual ou a circuncisão masculina.

A mensagem se dirigiu, em primeira linha, à Europa. Uma coisa é se engajar contra o esquecimento do passado; outra é – como sublinhou McDonald – a limitação da livre prática da fé e religião, que ameaça muito mais seriamente a vida judaica no presente.

Viver no presente significa permitir a liberdade de religião e seu exercício. Em dezembro de 2020, o Tribunal Europeu de Justiça decidiu que é legítima, nos termos do direito europeu, a proibição, nas províncias belgas de Flandres e Valônia, do abate kosher, uma prática religiosa e humana de morte animal para o consumo.

A sentença não só coloca o valor da vida animal acima da humana, como ameaça as possibilidades da comunidade judaica da Bélgica praticar livremente seu cotidiano religioso. A restrição do acesso a carne kosher e sua produção – da mesma forma que a proibição da circuncisão de crianças do sexo masculino, discutida na Dinamarca, Finlândia e Islândia – torna impossível a continuação da vida semita nesses países.

Promessas hipócritas de diversidade

Tais medidas equivalem a uma proibição de fato da vida judaica. É isso o que se quer permitir numa Europa da diversidade? O continente promete sem cessar liberdade para todos, mas o que acontece na prática é o contrário.

Políticos europeus asseguram repetidamente que a vida judaica deve ser valorizada e respeitada. Porém todas essas declarações parecem inúteis e hipócritas, sobretudo quando pronunciadas justamente em cerimônias como o Dia Memorial Internacional do Holocausto, transcorrido no fim de janeiro.

Se é para se levar a sério os políticos europeus, eles têm que reverter essas legislações antirreligiosas. Até porque o continente é o único em que se persegue esse tipo de perigosa iniciativa.

O discurso de Kara McDonald é tão mais importante por enfatizar que a superação do antissemitismo não significa apenas reconhecer o passado, mas também criar possibilidades de vida semita para o futuro. E aqui o modelo americano de preservação da liberdade religiosa mostra o caminho para o mundo: a Europa deve tomar o exemplo dos Estados Unidos e seus princípios, possibilitando a sua população judaica a livre prática da própria religião.

Queremos ver medidas determinadas e positivas por parte dos políticos europeus, respeitando a vida religiosa e sustando um êxodo iminente. O qual não é exagero, mas sim realidade: na década passada, numerosos judeus deixaram seus países de origem na Europa, por não se sentirem mais bem-vindos lá. O fato se deve ao aumento das agressões antissemíticas, mas também ao cerceamento da liberdade religiosa.

*O rabino-chefe de Moscou, Pinchas Goldschmidt, é presidente da Conferência dos Rabinos Europeus (CER) desde 2011. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.

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