domingo, 4 de abril de 2021

Portugal | Apoios sociais: as declarações da Ministra não batem certo

José Soeiro | Expresso | opinião

António Costa decidiu travar uma batalha constitucional contra a decisão do Parlamento de alargar os apoios sociais, mesmo que, sobre a substância da questão – isto é, corrigir as regras dos apoios que fazem com que uma grande parte dos trabalhadores independentes com atividades encerradas esteja a receber pouco mais de 200 euros por mês – ninguém, incluindo o Primeiro-Ministro, se atreva a contestar o mérito da medida do Bloco que o Parlamento aprovou e o Presidente promulgou. A Ministra do Trabalho, por seu turno, parece empenhada em lançar confusão em torno do assunto, com argumentos e números que não batem certo. Vale a pena relembrar o que está em causa.

NENHUM DOS APOIOS QUE O GOVERNO RETOMOU EM JANEIRO ESTAVA PREVISTO NO ORÇAMENTO

O principal argumento de António Costa, quando anunciou que iria recorrer ao Tribunal Constitucional, foi que não podia estar a aplicar-se agora um apoio que não estava previsto no Orçamento. Acrescentou que “por iniciativa do Governo, já estão - e estarão - em vigor medidas de apoio aos trabalhadores independentes” e que “todas estas situações têm financiamento garantido no Orçamento do Estado. [Mas] o que a Constituição não permite é que, agora, o parlamento possa aumentar a despesa com estes apoios, para além do previsto no Orçamento que o próprio parlamento aprovou".

Ora, nenhum dos apoios em causa estava previsto no Orçamento para 2021. No debate de especialidade do Orçamento, foi chumbada a continuação, em 2021, do “Apoio Extraordinário à Redução de Atividade do Trabalhador Independente” (o que está agora em debate). Mas a 15 de janeiro, percebendo que a “nova prestação social” (chamada AERT – Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores) prevista no Orçamento não ia funcionar, o Governo repescou para os trabalhadores independentes estes apoios de 2020, que tinha chumbado em novembro, e anunciou novos apoios para a cultura. Fez bem, porque a “nova prestação social”, que foi a bandeira social do Orçamento, é um fracasso, chegando apenas a 39 mil pessoas, em vez das 250 mil que o Governo dizia. Ou seja, estamos sempre a debater apoios que não tinham previsão específica no orçamento, mas que todos reconhecem que são imprescindíveis e que o Governo sabe que tem margem para pagar.

A DECISÃO DO CONSTITUCIONAL NÃO TERÁ QUALQUER EFEITO SOBRE OS APOIOS

O recurso ao Constitucional é uma decisão política para impor no futuro uma restrição das decisões do Parlamento sobre estas matérias, mas sem qualquer efeito nos apoios em causa, porque a lei promulgada pelo Presidente está em vigor e os apoios têm de ser pagos. Além disso, como se sabe, este apoio aos independentes aplica-se no máximo até junho, e apenas aos trabalhadores com atividades encerradas por decisão administrativa resultante do estado de emergência (atividades que começam a abrir este mês) e, no caso dos “eventos, cultura e turismo”, aos trabalhadores com atividades suspensas. Ou seja, o apoio durará no máximo mais três meses e a partir de abril terá muito menos trabalhadores a beneficiar, por causa do desconfinamento. Quando a decisão do Constitucional chegar, provavelmente no final de 2022, estes apoios já não existirão há mais de um ano.

QUANDO RETOMOU APOIOS, O GOVERNO CONSIDEROU O ANO DE 2019 PARA AS EMPRESAS, MAS NÃO PARA OS TRABALHADORES INDEPENDENTES

A 15 de janeiro deste ano, o Governo repescou vários apoios de 2020. Entre eles estava, além do apoio aos independentes, o “Apoio à retoma”, “destinado a entidades empregadoras que tenham sido afetadas pela pandemia e se encontrem em situação de crise empresarial”. Mas neste caso, o Governo acrescentou uma pequena alteração ao decreto de 2020, que contém as regras de acesso ao apoio e de aferição da quebra de faturação das empresas: onde se lia “face ao mês homólogo do ano anterior” passou a ler-se “face ao mês homólogo do ano anterior ou do ano de 2019”. Ou seja, corrigiu a regra para as empresas, mas não o fez para os trabalhadores independentes. No fundo, a alteração do Parlamento limitou-se a uniformizar o critério, emendando a dualidade e a injustiça que o Governo cometera.

TOMAR OS RENDIMENTOS DE 2019 COMO REFERÊNCIA NÃO É NENHUMA ALTERAÇÃO ESTRUTURAL DO SISTEMA

Depois de ter tentado criar um falso alarme sobre o acesso dos trabalhadores da cultura e do turismo, a partir de um problema que nunca chegou a existir (e que tinha a ver com a numeração da versão final do decreto), a Ministra do Trabalho ensaiou esta sexta-feira uma nova tentativa de alarme, declarando que podia haver trabalhadores a receber menos com a regra que reporta a 2019, além de classificar a pequena correção feita pelo Parlamento como uma “alteração radical no sistema”. Porquê? Porque o Parlamento escreveu “rendimento” em vez de “rendimento relevante”, e isso seria uma “alteração estrutural” na Segurança Social. Talvez não valesse a pena tanto dramalhão e o Governo fizesse melhor em concentrar-se em pagar os apoios. Mas vale a pena rebater o que supostamente sustentaria declaração tão tremenda. Primeiro, todos estes apoios, desde que existem, são extraordinários e não-contributivos (isto é, não decorrem da contribuição feita pelo trabalhador para a Segurança Social) e, por essa razão, o Governo comprometeu-se a pagá-los com o Orçamento do Estado e não com o dinheiro da Segurança Social. Em segundo lugar, o Parlamento acrescentou um artigo ao decreto do Governo que retomou, em janeiro, os apoios sociais de 2020. Mas não mexeu no decreto original dos apoios, que é onde se estabelecem as diferentes formas de aferir o rendimento para efeitos da segurança social (na Segurança Social, o rendimento de trabalhadores independentes que vendem bens é estimado com percentagens diferentes de trabalhadores independentes que prestam serviços). Não há por isso nenhuma “alteração estrutural” nas regras de aferição do rendimento relevante, mas apenas uma alteração do ano do rendimento de referência.

O IMPACTO ORÇAMENTAL DESTA CORREÇÃO É MUITO MODERADO E HÁ NÚMEROS QUE SÃO FÁBULAS

Quanto custam estas alterações, afinal? O Governo começou por falar em 38 milhões por mês, depois corrigiu para 40,4 milhões. A questão é que, a partir do próximo mês, muitos trabalhadores já não poderão aceder ao apoio (porque as suas atividades estarão abertas) e, em junho, ele extingue-se definitivamente. Por isso, além de haver obviamente margem orçamental para esta medida, que tem um custo reduzido (lembremo-nos que o Governo deixou no ano passado por executar 7 mil milhões de euros que tinha orçamentado!), o impacto será sempre em decrescendo e em junho, quando o apoio deixar de existir, serão já poucos os trabalhadores a receber.

Mas o que não bate certo é, na mesma declaração, anunciar-se que esta nova regra dará mais 40,4 milhões de euros por mês aos trabalhadores e tentar deixar no ar a possibilidade de que a nova regra “poderá dar mais ou poderá dar menos”. De resto, a comparação feita entre valores de dezembro e valores de fevereiro não cola: o universo era outro e o apoio também. Em dezembro, o apoio era um complemento aos rendimentos de novembro, quando as atividades estavam abertas, e o apoio somava-se ao que as pessoas estavam a ganhar enquanto trabalhavam. Em fevereiro, as atividades estavam encerradas e o apoio era o único rendimento das pessoas. Que o Governo ache normal que grande parte destes trabalhadores se tenha visto agora com 219 euros por mês para sobreviver é perturbador. Que exiba como prova de sucesso e de generosidade da sua política que o valor médio dos apoios é de 300 euros por mês choca, entre outras coisas, com o limiar de pobreza em Portugal, que é 504 euros… Felizmente, os trabalhadores independentes não dependem apenas do Governo. Agora que um pouco mais de justiça foi consagrada nos apoios, é preciso garantir que eles chegam às pessoas o quanto antes.

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