Daniel Oliveira* | TSF | opinião
"Só um jornalismo totalmente degenerado poderia tratar o que aconteceu na Lusa como um mero incidente", analisa Daniel Oliveira, no seu espaço habitual de Opinião na TSF, sobre o caso que o próprio explica: "Numa notícia sobre a constituição da comissão eventual de revisão constitucional, o nome da deputada do PS Romualda Fernandes é seguido de um parêntesis com a sua identificação... 'Preta.' Assim mesmo."
O jornalista chama a atenção também para o facto de este "qualificativo" ter aparecido "reproduzido em vários órgãos de comunicação social", o que significa que escapou ao crivo de toda a cadeia editorial: "Foi escrito pelo jornalista, passou por editores, chegou aos clientes, voltou a passar por jornalistas e editores, e foi publicado."
Daniel Oliveira frisa que "não se trata de um erro infeliz", nem se "limita a mostrar sucessivas incompetências", o que poderia "acontecer em qualquer organização". Está em causa, sim, "um ato original", porque "houve um jornalista que, a trabalhar, escreveu 'Preta' para se referir a uma deputada, e aquilo seguiu assim".
"Não foi uma piada de mau gosto inadvertidamente gravada. Todos tivemos momentos muito infelizes na vida. Foi escrito em trabalho, numa notícia, e enviado." Para o cronista, é evidente que "a coisa não pode ser tratada como uma falha técnica".
E não foi assim que aconteceu, conta Daniel Oliveira, já que o editor de Política da agência Lusa se demitiu, e foi aberto um inquérito ao jornalista em causa, Hugo Godinho.
"Como seria de esperar, os jornalistas da Lusa foram claros na condenação coletiva. Haja na comunicação social a exigência que ela exige à Política." Mas Daniel Oliveira não cessa aqui as suas conclusões, tecendo que o caso deve suscitar um outro debate: "Não estávamos perante um engano que pode passar ao lado de todos. Ainda recentemente uma notícia da Lusa, reproduzida da mesma forma em vários órgãos de comunicação social, trazia como ilustração de uma notícia sobre o Níger uma bandeira da Nigéria. São erros que se lamentam, mas que se aceitam, sempre aconteceram."
O jornalista distingue este último "erro" do "insulto gravíssimo" a Romualda Fernandes. Um "insulto gravíssimo", que, aliás, "saltava à vista de qualquer pessoa que o lesse". Tal torna "evidente que a generalidade dos órgãos de comunicação social, incluindo os que são de referência, republicam notícias sem que ninguém as leia", sustenta Daniel Oliveira, lembrando que hoje "as redes sociais tudo escrutinam".
"A questão que levanta não é apenas sobre a mudança de funções das agências de notícias. Em vez de serem fontes que se cruzam com outras, passaram a ser produtores finais de notícias." É uma realidade que, de acordo com o cronista, "demonstra o estado em que estão as nossas redações, a produzir péssima informação, sem qualquer crivo jornalístico ou sentido crítico, por total ausência de meios". Há "menos pessoas" para produzir "uma torrente de conteúdos, a que dificilmente poderemos chamar de jornalismo, por lhe faltar a mediação, que exige tempo e meios", argumenta.
O acontecimento levanta ainda outra questão, alerta o jornalista. "Se todos publicam a mesma coisa, com o mesmo título, a mesma abordagem, sobre a mesma informação, e até com os mesmos erros, onde está o pluralismo informativo, condição para falarmos de uma sociedade democrática e livre?" As diferentes vozes, perspetivas e ângulos acerca dos temas são apenas remetidas para espaços de Opinião, questiona Daniel Oliveira.
"Se, sobre a mesma realidade, o Observador, o Público, a TSF, a Antena 1, o Expresso e o Diário de Notícias me dizem o mesmo, pela mesma ordem, com as mesmas palavras, que diferença entre ter isto ou apenas um órgão de comunicação social?" Não há como contornar as conclusões a estes acontecimentos, constata. "Com menos tempo e menos dinheiro, os jornalistas estão muito mais sujeitos a ser meros veículos de agendas empresariais, partidárias, judiciais ou de corporação, sem capacidade para tratar com sentido crítico a informação que lhes é transmitida, e que muitas vezes lhes é transmitida por agências de comunicação, com profissionais vindos do jornalismo que têm muitos mais meios e tempo do que eles."
O cronista ressalva, porém: "Apesar de tudo, a Lusa é a fonte com que menos têm de se preocupar." Apesar de a reprodução integral não se verificar em cada um dos casos, é cada vez mais comum "nas áreas mais caras e em que mais se desinvestiu, como na informação internacional, em que estamos mesmo sujeitos a fontes únicas, com a sua leitura única dos acontecimentos, a não ser, claro, para quem tenha recursos culturais para chegar à imprensa internacional, o que continua a ser uma minoria", aclara.
Também na informação a desigualdade prova o seu peso, demonstra Daniel Oliveira. "Há uma minoria mais informada do que nunca e uma maioria mais sujeita do que nunca à manipulação e à desinformação, e este fosso terá - já está a ter - repercussões na nossa vida democrática."
"O que é grave e salta à vista neste caso é um insulto racista, mas não é isso que é estrutural: os jornalistas da Lusa não são em geral racistas. O que é sintomático é que, se uma coisa tão grosseira e evidente passa sem ninguém dar por nada, muitas outras passarão, porque ninguém lê ou relê, ninguém verifica ou critica." O cronista assinala que não se trata de "incompetência", mas de uma "total desadequação entre as funções da comunicação social e os meios que ela hoje tem".
Daniel Oliveira deixa ainda uma advertência: "Os que fazem campanhas contra apoios públicos cegos, ou outras formas de garantir um jornalismo com meios, apostam nisto mesmo. Sabem que a degradação da credibilidade do jornalismo dá espaço aos sites de fake news e à propaganda, mas não são sites ou programas de verificação de factos que salvarão as pessoas da manipulação. É a credibilidade do jornalismo, que se distinga da mentira e do boato. E isso exige meios." Por isso, conclui: "Quando um comentário racista passa por tantas mãos sem ser visto, fica difícil dizer que o jornalismo dá às pessoas o que as redes sociais nunca darão."
* Texto redigido por Catarina Maldonado Vasconcelos
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