quarta-feira, 5 de maio de 2021

Portugal, afinal, sempre é um país de negreiros?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

A declaração de uma cerca sanitária nas freguesias de São Teotónio e de Almograve por causa da covid-19 é conclusiva: este país está em decomposição moral.

Em primeiro lugar temos um primeiro-ministro que declara em conferência de imprensa, transmitida em direto para todos os órgãos de comunicação social, estar-se perante, cito, uma "violação gritante dos direitos humanos" na forma como são ali alojados os trabalhadores agrícolas imigrantes da Ásia e do Leste Europeu.

António Costa tem razão, constata um puro facto, e saúdo-o por ter tido a coragem de o dizer. Porém, esta situação - que se repete em muitas outras zonas do Portugal agrícola - está há anos a ser denunciada por ativistas, por associações de apoio a imigrantes, por partidos políticos, por polícias, pela Igreja, por comentadores, pela comunicação social.

Quando António Costa comunica este caso, com o lastro que ele já tem, está implicitamente a comunicar também que pouco fez para acabar com esta nova escravatura. E teve tempo para isso. E tem um ministro, Eduardo Cabrita, que deveria ter tomado seriamente conta da ocorrência e não tomou.

O presidente da CAP, o líder dos agricultores Eduardo Oliveira e Sousa, atira as culpas para as empresas de contratação de trabalho temporário e diz que "os agricultores não são entidade policial e não podem saber se todas as pessoas estão a viver condignamente" e ainda que "não se pode é misturar os casos pontuais que acredito que existam, porque existem situações marginais em todas as atividades, com a generalidade dos casos".

Eduardo Oliveira e Sousa ou está a mentir-nos descaradamente ou ignora a informação do presidente da Câmara de Odemira, José Alberto Guerreiro: "no mínimo 6 mil" dos 13 mil trabalhadores agrícolas do concelho, permanentes e temporários, "não têm condições de habitabilidade".

É muito "caso pontual" junto.

O sindicato dos inspetores do SEF aproveitou para lembrar que reportou o caso no Relatório Anual de Segurança Interna de 2020.

A direção do SEF comunicou, entretanto, que tem 32 inquéritos em curso sobre o tema em várias comarcas alentejanas e que identificou no distrito, em 2018 (escandalosamente, não há dados mais recentes), 134 vítimas de tráfico de pessoas para exploração laboral.

Estas 134 vítimas confrontadas com os "no mínimo" 6 mil alojados em condições sub-humanas, só em Odemira, desvendam por si só a ineficácia da fiscalização - e estamos apenas a falar do Alentejo, falta todo o resto de Portugal...

... Mas descansemos: a Procuradoria-Geral da República, por sua vez, jura que tem em curso 11, contem bem, 11 inquéritos sobre auxílio à imigração ilegal em Odemira!

Tudo é mais importante, tudo é mais urgente do que tratar de acabar com este regresso de Portugal ao estado de há cinco séculos: um país com alma de negreiro.

A perda a que gradativamente estamos a assistir do imperativo moral que daria a esta gente o sentido solidário como primeira prioridade da atividade pública, política, empresarial, policial ou jurídica teve outra manifestação absolutamente incrível.

Apareceu o bastonário dos advogados, Dr. Menezes Leitão, a pedir a intervenção no caso da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem.

Julgará o leitor pouco precavido que a ideia era ajudar os escravizados do Alentejo? Não, que ideia! Para este senhor a violação dos direitos humanos não está aí, está na requisição temporária pelo Estado dos alojamentos atualmente abandonados do falido complexo turístico Zmar, para isolar alguns destes imigrantes infetados com a covid-19.

Para o senhor bastonário, o direito à propriedade privada é um direito humano precedente ao da saúde pública e à vida de uns quantos nepaleses, indianos, romenos, moldavos ou de outras nacionalidades distantes do circuito dos interesses caseiros dos tugas.

Não estamos a falar de ressentidos da vida, que procuram resolver as suas frustrações na militância no Chega, estamos a falar de gente que se diz "moderada", que circula pelos tapetes vermelhos do poder e que se dá ao prazer, de vez em quando, do favor caritativo.

Estamos a falar de alegados democratas que destroem a fibra democrática e solidária que ainda resta neste país.

*Jornalista

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