Catarina Brites Soares* entrevista Gilberto Camacho
O mais recente conselheiro das comunidades portuguesas percebe que Lisboa se abstenha quando a comunidade internacional critica a China. Pequim olha o país como “um bom amigo” e Portugal só tem a ganhar por ser considerado um Estado “que não cria problemas”, diz. Em entrevista ao PLATAFORMA, Gilberto Camacho, que substituiu o deputado José Pereira Coutinho, afirma que pode fazer a diferença na relação sino-portuguesa por ser de Macau, mas ressalva que essa diferença seria mais significativa se “quem manda em Portugal” desse mais importância ao Conselho das Comunidades Portuguesas do Círculo da China, Macau e Hong Kong. Quanto aos portugueses, considera que são bem acolhidos na região e que assim continuará se não divergirem da China.
Que papel deve ter um conselheiro das comunidades portuguesas em Macau?
Gilberto Camacho – Até finais do ano passado, a China era vista como o gigante adormecido. Atualmente, caminha a passos largos para ser a principal economia do mundo, substituindo os Estados Unidos da América, provavelmente já em 2030, segundo os entendidos. Não é fácil para a comunidade internacional aceitar que há um novo camisola amarela, para quem vê a Volta a França, e que é política, social e culturalmente tão diferente do ocidente. Se aos níveis cultural e social as diferenças podem ser bem entendidas, ao nível político não é bem assim.
O ocidente, e daí a crispação sobretudo com os EUA, rege-se por valores democráticos. Às vezes, questiono-me até que ponto o sucesso do sistema político da China se deve ao falhanço das principais democracias ocidentais, com os EUA à cabeça. Vejo o crescimento e a afirmação da China no panorama internacional como um passo fundamental para que os países no ocidente deixem de ser democracias disfuncionais e passem a ser funcionais. Portugal tem sabido gerir as relações com a China. É visto pela China, e por outros, como um país amigo, que não cria problemas.
Que função lhe compete nessa relação?
G.C. – Eu nasci e cresci em Macau e vivi em Portugal muitos anos. A China é um país particular. Um português português, provavelmente não percebe como a China pensa, e um chinês chinês também não entende como pensa o português. Uma pessoa que tenha vivido em Macau consegue colocar-se nos dois lados e agilizar o entendimento entre as partes. Muitas vezes o conflito surge da falta de compreensão. Esta sorte de ter nascido em Macau, beneficiando de uma simbiose entre duas culturas tão importantes, e poder juntar estes dois povos é um papel privilegiado.
Referiu que se vivem momentos de crispação e que o crescimento da China é fundamental. Como olha para o regime chinês em termos políticos?
G.C. – Não posso julgar. Sou democrata. Rejo-me por valores democráticos. Os EUA são considerados o símbolo da democracia e não têm sido um bom exemplo. Posto isto, porque haverei de dizer que o regime chinês é mau, sendo que os EUA não têm sido uma verdadeira democracia? Se os EUA tivessem sido um bom exemplo, talvez pudesse dizer que o regime chinês não o era. Perante o contexto, prefiro dizer que é diferente. Posso pegar no conflito entre Israel e a Palestina, que dura há décadas sob a conivência norte-americana. Portanto, acho que não é justo julgar a China, com ideais completamente diferentes, mas se calhar mais adequadas à população chinesa. Antes era mais crítico, mas neste momento tento compreender.
Referiu-se a Portugal como “um país amigo”, criticado por vezes pela passividade em relação à China por exemplo em questões relacionadas com Macau e de direitos humanos. Como vê a postura de Lisboa?
G.C. – Aquando da crise de 2008, quem deu a mão a Portugal foi Pequim. Acho que lhe ficaria mal se agora saltasse para a ribalta para apontar o dedo à China.
Voltando ao cargo que agora ocupa, que objetivos delineou?
G.C. – Criar uma relação próxima entre o consulado e os portugueses, quer estejam a residir em Macau ou Hong Kong. Há cerca de 170 mil portugueses nas duas regiões. É muita gente. Também temos uma boa relação com o Governo e Presidente da República de Portugal. Queremos ajudar todos os portugueses que chegam, por exemplo a encontrar emprego. Procuramos dar apoio para que superem todas as dificuldades que encontram.
Que balanço faz do trabalho do Conselho das Comunidades Portuguesas?
G.C. – Às vezes o nosso trabalho é mal compreendido, apesar de ser louvável e muito importante. No fundo, promovemos a imagem de Portugal na China e ajudamos a que conheça melhor o país. Com o grande investimento chinês em África, na América Latina e mesmo em Portugal, cada vez mais chineses querem aprender a língua portuguesa. Também temos ajudado nesta área, em conjunto com o Instituto Português do Oriente (IPOR), assim como nos intercâmbios ao país de alunos e empresários.
Acha que o cargo de conselheiro e o Conselho são encarados sem grande utilidade pela comunidade?
G.C. – Não promovemos o nosso trabalho. Trabalhamos silenciosamente. Não aparecemos nos media. Requer alguma sensibilidade porque a comunidade é muito grande. Não somos remunerados para fazer este trabalho, ainda que o façamos com grande satisfação. Quem manda em Portugal, talvez devesse dar mais importância ao nosso papel.
Como?
G.C. – Não sei. Eles saberão. Não pretendo ter os holofotes sobre mim, mas é uma função muito importante. Imagine-se o que é ter 170 mil portugueses a bater à porta do consulado constantemente. Há certas situações que podemos ser nós a resolver.
Por exemplo?
G.C. – Podemos ajudar a esclarecer muitas dúvidas, ver caso a caso, aconselhar e direcionar para o departamento certo, por exemplo ao nível de renovação de documentos como o cartão de cidadão.
É o cargo de conselheiro das comunidades portuguesas mais complicado hoje, tendo em conta o contexto sociopolítico?
G.C. – Estou há um ano neste
cargo. Não faço ideia como se sentiram Pereira Coutinho e Rita Santos há 20
anos. Este não é um cargo de força e por isso acho que não vamos enfrentar
grandes dificuldades. Não acho que, devido à conjuntura, vamos ter mais
momentos de dificuldades. Com a pandemia é diferente porque temos cidadãos a
viver
Faço esta pergunta porque há um
mês o Conselho das Comunidades Portuguesas foi notícia por ter enviado uma
carta ao Chefe do Executivo em nome de toda a comunidade portuguesa
G.C. – Não tenho ideia de ter sido controverso.
Foi questionado sobre as declarações no sentido de esclarecer o que queria dizer com “estabilidade e paz social”.
G.C. – Penso que não é uma
boa altura para haver problemas. Macau tem muita sorte. É talvez a cidade mais
sortuda do mundo. Embora sendo pequena, vivemos
Mas que tipo de problemas poderiam surgir que fossem prejudiciais?
G.C. – Manifestações em Macau neste momento não seriam uma boa ideia. Pequim está muito sensível. Macau tem de procurar manter a paz social. Já basta estarmos saturados da situação para agora ainda termos protestos. Seria muito mau. Temos sorte de viver em Macau, e não convém andarmos exaltados e irritados. Temos de agradecer o facto de o Chefe do Executivo ter tido perspicácia e rapidez no ano passado quando apareceram os primeiros casos. Hoje conseguirmos viver em paz em Macau.
Sente-se no direito de falar em nome de toda comunidade portuguesa?
GC – Não posso dizer que seja uma opinião de todos os portugueses. É saudável termos uma opinião diferente, mas no geral temos uma opinião semelhante.
O que o leva a pensar isso?
G.C. – As pessoas com quem falo.
Para encerrar o assunto da carta ao Chefe do Executivo, porque motivo não se seguiu a mesma linha quando da polémica na TDM, sendo uma questão intimamente ligada à comunidade em Macau?
GC – Não o fizemos porque o Ministro [dos Negócios Estrangeiros de Portugal] Augusto Santos Silva já se tinha pronunciado sobre o assunto. Enviar uma nova carta daria a sensação que estávamos a passar por cima dele. Achamos que não tínhamos mais nada a dizer ou a comunicar ao Chefe do Executivo.
Falou sobre o contexto difícil criado pela pandemia. Têm chegado ao Conselho casos de pessoas da comunidade portuguesa em situações difíceis?
G.C. – No sentido de precisarem de comer, não. Não tenho conhecimento de nenhum caso em que estejam nas últimas. Mas, há várias pessoas que nos têm pedido ajuda, por exemplo porque ficam presas noutros países. Como não podem viajar, auxiliamos na estada, entre outros aspetos. Estamos sempre em contacto com o consulado e o cônsul Paulo Cunha Alves.
Sente que a comunidade portuguesa está integrada?
G.C. – Acho que é recebida de braços abertos por Macau e até mesmo pela China. A população gosta dos portugueses que, embora diferentes do chinês, conseguem ter uma boa relação com os locais. São bem recebidos pela comunidade local.
Sobretudo depois dos protestos
G.C. – Esta questão tem muito que ver com a forma como Pequim pensa. Desde que o português que ocupe um cargo de relevância não fira suscetibilidades, não há problema. Mas se a pessoa se manifestar publicamente contra os valores que Pequim defende, então é natural que seja pressionada para sair. Vem enquadrado nos valores e princípios pelos quais os chineses se regem, que divergem dos do ocidente. E com isto não estou a dizer que uns estão mal e outros bem. A questão é Macau ser território integrante da China. É complicado ter alguém que seja contrário aos seus princípios. É normal a pessoa ser pressionada a sair e seja substituída por alguém da confiança de Pequim, o que eles apelidam de patriota.
Quando se refere ao ocidente, fala de valores democráticos. Em relação à China diz apenas que são valores diferentes. O que pode ser dito/feito que seja suscetível de ferir Pequim?
G.C. – O mais importante para a China é a união nacional. Um ocidental se calhar não consegue perceber que foi um país que sofreu muito durante a II Guerra Mundial e no pós-Guerra, que esteve muito dividido. É por isso que agora há esta pressão tão grande sobre Taiwan. A China quer ser um país uno sem interferência do ocidente, que possa dividir os chineses novamente. É nesta perspetiva histórica que a China não quer voltar ao passado e que se repita o sofrimento por que passou.
Voltando à comunidade, há muitos portugueses a abandonarem Macau?
G.C. – Ouvi falar de alguns, mas não tenho conhecimento disso enquanto conselheiro.
Sobre a questão da língua portuguesa que falou há pouco, há um ano a conselheira Rita Santos dizia que cidades do Delta do Rio das Pérolas gostariam que houvesse cooperação no ensino do português. Que tem sido feito para concretizar este plano?
G.C. – Temos trabalhado com o IPOR. Devido à pandemia não se têm feito as deslocações como queríamos, por exemplo de estudantes a Portugal.
Ainda neste âmbito da cooperação sino-lusófona, que papel pode ter o Conselho junto do Fórum Macau tendo em conta o propósito do organismo de fomentar as relações entre a China e a Lusofonia?
GC – Os PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa] são o grande legado de Portugal, é a portugalidade no mundo e o grande trunfo de Portugal no planeta. Macau é um lugar muito privilegiado. A China tem uma maneira muito peculiar de se relacionar com o mundo, é um país mais conservador e mais desconfiado, e Macau faz esse papel de plataforma entre estes os dois polos. E não é só na tradução. Os macaenses, por exemplo, tendo em conta a tal simbiose, conseguem perceber ambas as partes e facilitar no processo de consumar negócios.
*Catarina Brites Soares | Plataforma
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