Governos europeus afundam em dogma neoliberal quando até os EUA os abandonam. Desigualdade e ressentimento avançam. Contra a participação, convite a ir além de si mesmo, ultradireita aposta no pertencimento, que exclui o outro e o odeia
Boaventura de Sousa Santos* | Outras Palavras
Um fantasma assombra o mundo: o
regresso da extrema-direita. Trata-se de um movimento global com ritmos
nacionais muito diferentes. Tem muitas semelhanças com o que aconteceu nas
décadas de 1920 e 1930, mas também tem diferenças. Analiso umas e outras com a
crença de que a história só se repete se deixarmos que tal aconteça. Estamos
perante movimentos que emergem no bojo de crises sociais por vir e que explodem
quando as crises rebentam. Nos anos de 1920, foi a Primeira Guerra Mundial e a
crise financeira que se seguiu, a qual viria a explodir em 1929. Hoje, trata-se
da crise de acumulação do capital em face das concessões que teve de fazer ao
povo trabalhador depois da Segunda Guerra Mundial para poder competir
politicamente e com paz social com a opção socialista do bloco soviético. A
reação começou na periferia do sistema (golpes de estado no Brasil em 1964 e no
Chile em 1973) e transformou-se num programa global quando em
A crise pandêmica e período de pandemia intermitente em que vamos entrar pode ser o detonador da explosão da extrema-direita. Para a evitar só há uma solução: impedir que a crise social se agrave, o que não foi possível nos anos 1930. Hoje, os EUA de Biden iniciaram com um vasto programa de reconstituição dos rendimentos e de investimento público em contraciclo, contra tudo o que pregaram durante o período áureo do neoliberalismo. A UE, pateticamente, parece mais presa ao neoliberalismo que os EUA e sempre refém do capital financeiro internacional. A Alemanha cumpre na Europa o papel que os EUA cumprem a nível mundial: exporta o neoliberalismo mas neste momento não o segue internamente. É uma questão em aberto saber em que medida os programas de recuperação e resiliência conseguirão conter a grave crise social que se aproxima e que tem neste momento três pontos de ruptura: Colômbia, Brasil e Índia. Portugal teria condições privilegiadas de evitar o pior se soubesse agir como a Alemanha e os países nórdicos: servir-se da Europa como patrão sem servir a Europa como empregado.
A segunda semelhança/diferença
diz respeito à relação entre democracia e extrema-direita. A semelhança é que a
extrema-direita se serve da democracia com o único objetivo de a destruir. Fará
isso por muitas vias. A principal é promover uma lógica de pertencimento, seja
ela nacionalista ou racista, contra a lógica de participação que é própria da
democracia. A diferença é radical e, por isso, invisível. Participamos numa
realidade contribuindo para construir, enquanto pertencemos a uma realidade já
plenamente construída (nação, raça, etnia, casta), seja a construção real ou
inventada. O pertencimento confere uma segurança a quem pertence na mesma
proporção em que exclui quem a ela não pertence. Em períodos de crise, esta
segurança é preciosa. As escolhas em que assentam a participação e a pertença
são muito diferentes. Na participação escolhe-se entre; no pertencimento
escolhe-se contra. O objetivo é chegar ao poder democraticamente para depois
não o exercer democraticamente. Como, por agora, o objetivo ainda não foi
atingido, a extrema-direita alicia facilmente as forças de direita democrática
a quem oferece o trampolim da chegada ao poder. A direita confia em poder
domesticar a extrema-direita e esta,
A terceira semelhança/diferença diz respeito ao combate ideológico. Este combate tem quatro frentes: o discurso do ódio visando quem não pertence (seja judeu, cigano, negro, homossexual, comunista, de esquerda e, finalmente, democrata); a infiltração dos meios de comunicação; a substituição da política pela moral; aliciamento de estratos sociais descontentes e emergentes. Com diferenças, todas as frentes estão a ser accionadas. Em Portugal, o discurso do ódio teve um afloramento chocante durante os debates presidenciais e deu para entender que a comunicação social pública estava infiltrada. Essa suspeita converteu-se em realidade com o que se passou recentemente na agência pública de notícias, Lusa. Em notícia publicada, um jornalista identificou como “preta” uma deputada suplente do Partido Socialista. Em Portugal, o termo “preto” é um termo racista, altamente ofensivo. O substituto do discurso do ódio é a dramatização de todos os erros da governação, sobretudo se esta for de esquerda. Comparativamente, o governo português tem um dos melhores desempenhos na condução da pandemia e os portugueses entenderam isso cooperando civicamente com as políticas. No entanto, quem seguir os noticiários mais mediáticos (incluindo os da televisão pública) só vê notícias de fracassos grosseiros, uma dramatização que visa sustentar a ideia veiculada pela extrema-direita da “doença da democracia” e dos “cravos pretos”, que podem justificar “governos de salvação nacional”. Hoje, a extrema-direita dispõe das redes sociais, um poderoso instrumento, sobretudo porque o modelo de negócio que lhes subjaz não lhes permite intervir senão em casos extremos. Hoje, o discurso antipolítico e moralista é a luta contra a corrupção e, sobretudo nalguns países, o conservadorismo evangélico ou católico. Ambos os discursos são projetos globais e têm origem na extrema-direita norte-americana. Hoje, um dos grupos emergentes são as mulheres. Com vista às eleições autárquicas, o partido de extrema-direita (Chega) recruta nas redes sociais “mulheres dinâmicas e inteligentes”.
A quarta semelhança/diferença diz
respeito à reinvenção do passado. Consiste em converter vitórias em derrotas e
derrotas
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Para travar a deriva da participação em pertencimento a história poderia ensinar alguma coisa se quiséssemos aprender. Eis um elenco realista de propostas. O agravamento das desigualdades e da crise social tem de ser evitado a todo o custo com políticas de coesão eficazes. Os serviços públicos têm de ser refinanciados e repensados, sobretudo nas áreas da saúde e da educação. A corrupção tem de ser eficazmente combatida. A oposição de direita democrática deve perder a ilusão de poder domesticar a extrema-direita. Os partidos socialistas que controlam governos de esquerda (em Portugal, PS) devem ajudar os outros partidos à sua esquerda (em Portugal, Partido Comunista e Bloco de esquerda) a poderem investir na participação, pois estes serão as primeiras vítimas da deriva da pertença (as vítimas seguintes serão os socialistas). Por sua vez, os partidos à esquerda dos partidos socialistas devem assumir que o seu adversário principal é a direita e a extrema-direita, e não os socialistas. A comunicação social pública tem de ser escrupulosa em liquidar o ovo da serpente onde ele é chocado. Se a preguiça democrática acometer o sindicato dos jornalistas ou a entidade reguladora para a comunicação social, resta esperar que a comunidade dos PALOPs suspenda a autorização da Lusa de operar nos seus países até que o jornalista racista seja demitido. Se o não for, será em breve multiplicado por muitos.
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