domingo, 27 de junho de 2021

Porque damos dados pessoais aos Estados Unidos?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

É inadmissível que a Câmara de Lisboa tenha fornecido à embaixada russa a identificação de ativistas russos que organizaram um protesto.

Mas também é inadmissível a dualidade de critérios de políticos e comentadores portugueses que fazem agora acusações e críticas, muitas vezes corretas, à atuação da Câmara de Lisboa e do seu presidente, Fernando Medina, mas que não dão importância alguma a cedências similares que ocorreram antes, nomeadamente as já denunciadas sobre protestos junto às embaixadas de Israel e da Venezuela, e às que ocorrem há anos com outros países..

Neste tipo de assunto não pode haver diferença entre os cuidados a ter com russos, com chineses, com israelitas ou com venezuelanos dos que devemos ter com governos de países supostamente aliados ou até... do nosso próprio governo.

Estamos a viver tempos em que no chamado "mundo livre" estão a diminuir as garantias de defesa de direitos dos cidadãos e a violarem-se cada vez mais liberdades cívicas. Darei apenas alguns exemplos, de memória.

Em Portugal mata-se um estrangeiro, insuspeito de crime, que respondeu "torto" ao questionário das autoridades da fronteira e aprova-se uma carta de direitos digitais que prevê a criação de uma espécie de "polícia da verdade" a fiscalizar a internet, (incrivelmente, o único partido a votar contra isto foi o PCP, sempre posto sob suspeita em relação ao seu amor pela liberdade).

A Espanha condena e prende pessoas que escrevem canções ou que exigem, por meios pacíficos, a independência da Catalunha.

A Inglaterra mantém Julian Assange preso, num limbo judicial, desde abril de 2019, sob pressão dos norte-americanos, por ele ter denunciado violações dos direitos humanos cometidas pelas Forças Armadas dos EUA.

Edward Snowden, que fez também denúncias sobre crimes do Estado norte-americano, só encontrou refúgio (que ironia!) na Rússia.

A Polónia e a Hungria, da UE, limitam a liberdade de imprensa e violam direitos humanos no seu território.

Os Estados Unidos, o país com mais presos per capita do mundo, que tem pena de morte e utiliza a tortura, anda há anos à caça de todo o tipo de dados pessoais de outros países para assegurar a sua liderança mundial e alimentar os seus serviços secretos, que fazem ações letais em todo o planeta.

E o problema está mesmo à mostra. Vamos ao site da nossa Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) e damos logo com duas notícias lapidares.

A primeira diz que a Autoridade Europeia de Proteção de Dados abriu duas investigações à Amazon e à Microsoft porque os dados dos cidadãos europeus que usam serviços de cloud daquelas empresas ou do Office 365 "permitem atividades de vigilância desproporcionadas pelas autoridades dos Estados Unidos" (sic).

O Instituto Nacional de Estatística, em abril passado, entregou a outra empresa americana, a Cloudflare, um processo de gestão da circulação dos dados de milhões de portugueses que responderam pela internet ao questionário dos Censos 2021.

A lei nos EUA permite ao governo norte-americano, se quiser, ficar na posse dessa informação, sem dar conhecimento disso a ninguém. Embora o INE diga que não havia perigo de isso acontecer, a CNPD exigiu, mesmo assim, a suspensão da operação.

Em 2011, PS, PSD e CDS votaram a favor na Assembleia da República de um acordo com os Estados Unidos da América de troca de dados sobre pessoas suspeitas de crimes, que incluíam a cedência de ADN, impressões digitais, registo criminal e dados dos documentos de identificação. A Comissão Nacional de Proteção de Dados deu parecer negativo à resolução, a Amnistia Internacional criticou duramente a decisão.

Qualquer passageiro europeu que viaje para os Estados Unidos (e também para Austrália, Canadá e Japão) está sujeito ao acordo Passenger Name Record (PNR), que prevê a cedência aos países de destino dos dados pessoais fornecidos pelos passageiros às companhias de aviação.

Há ainda acordos entre EUA e União Europeia para a passagem de dados em outras matérias, que geram inúmeros receios, e sobram os resquícios do famoso caso Echelon, o velhinho sistema liderado pelos Estados Unidos de vigilância de todas as comunicações do planeta.

Preocupados com dados enviados para a Rússia? Sim, mas isso é mesmo a ponta do icebergue da vigilância global que, sem protesto destas almas libertárias, nos mantém debaixo de olho.

*Jornalista

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