Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
Olho duas chamadas para notícias de uma homepage de um site de informação. Uma titula: "ONU alerta para "agravamento dramático" da fome no mundo devido à pandemia". Outra relata: "Richard Branson foi ao espaço e voltou astronauta".
Hesito... Vou ler primeiro a aventura espacial do milionário ou a tragédia terrena do planeta miserável?
Cedo à fraqueza do prazenteirismo e leio o texto sobre o astronauta rico.
... Lida a prosa, direi que
aquilo é um bocado pífio: um avião, desconfortável, sobe, depois de largar os
propulsores não sei onde, até
Os passageiros passam por esse sofrimento para terem direito a quatro minutos de experiência sem gravidade e uma visão, pela janela, de lá de cima cá para baixo.
A ideia é cobrar 200 mil euros a cada turista pela tortura. Parece que há 600 interessados.
Passo para a notícia sobre a fome.
... Cinco agências das Nações Unidas estimam que 10% da população mundial não consegue alimentar-se adequadamente.
Os dados de 2020 apontam para
Trinta por cento da população mundial, 2300 milhões de pessoas, não tem acesso a uma alimentação adequada.
Para tirar 100 milhões de pessoas da desnutrição crónica são necessários 11,8 mil milhões de euros por ano até 2030.
Para atingir a fome zero na próxima década o esforço estimado seria de 33,72 mil milhões de euros anuais.
Fecho a notícia, convencido de que a ONU nunca vai arranjar o dinheiro para, como tem projetado, acabar com a fome no mundo até 2030. Não é surpresa.
Claro que acho surpreendente que Richard Branson tenha mudado a residência oficial para as Ilhas Virgens Britânicas e, graças a isso, não precise de pagar impostos há 14 anos - mas o que é que isso tem a ver com a fome no mundo?
Claro que é estranho que este homem se dedique a divertimentos dispendiosos em idas ao espaço, nos quais perde cerca de 150 milhões de euros anuais - mas o que é que isso tem a ver com a fome no mundo?
Claro que é bizarro o líder do Virgin Group ter as companhias de aviação tradicional em colapso e reclame apoios ao governo britânico, aos contribuintes ingleses, no valor de 7500 milhões de libras - mas o que é que isso tem a ver com a fome no mundo?
Claro que é um bocado chato que, ao mesmo tempo, no meio da pandemia, este mesmo Richard Branson, vendedor da experiência de imponderabilidade a 200 mil euros, tenha mandado os funcionários para casa durante oito semanas sem lhes pagar o salário - mas o que é que isso tem a ver com a fome no mundo?...
... Ai a fome no mundo, a fome no mundo....
Lembrei-me agora: ontem passaram 36 anos sobre o dia do maior concerto de rock de todos os tempos. Foi o Live Aid, que angariou, num espetáculo de 16 horas, simultâneo em Londres e Filadélfia, 180 milhões de euros para acudir a uma crise de fome na Etiópia.
A cara da iniciativa, o roqueiro Bob Geldof, quando foi confrontado com críticas a deficiências da organização e aos resultados práticos obtidos, respondeu o seguinte: "Levantámos uma questão que não estava em qualquer lugar da agenda política e, por meio da língua franca do planeta - que não é o inglês, mas o rock'n'roll -, fomos capazes de abordar o absurdo intelectual e o nojo moral de haver pessoas a morrer de carência num mundo de excedentes,"
Leio, na mesma notícia sobre o aumento da fome no mundo, esta frase do secretário-geral da ONU, António Guterres: "Num mundo de abundância" não há "desculpa para que milhares de milhões de pessoas não tenham acesso a uma dieta saudável"
Guterres diz agora exatamente a mesma coisa que Geldof dizia em 1985 e isso é uma ilustração irónica da nossa coletiva incapacidade homicida.
Não, claro que nada do que se passa com os ricos deste planeta tem a ver com a fome no mundo... ou tem?
*Jornalista
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