segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Abuso Sexual nas Prisões: Crise Global dos Direitos Humanos

Tina Lorizzo* | O País (mz) | opinião

A violência nas prisões é o símbolo de uma crise global dos direitos à saúde e a viver em um ambiente prisional que respeite a dignidade humana. Enquanto um dos Princípios Básicos das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos afirma que todos os reclusos devem reter os direitos humanos e as liberdades fundamentais estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos com as excepções inerentes ao encarceramento, este princípio está longe de ser respeitado. Diariamente há reclusos que sofrem abusos e outros tipos de violência.

A violência sexual é definida pela Organização Mundial da Saúde como todo “acto sexual, tentativa de consumar um acto sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou acções para comercializar ou uso de qualquer outro modo, a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho”. A violência sexual abrange o abuso sexual considerado como o envolvimento em actividades sexuais, físicas ou psicológicas, de uma pessoa incapaz de compreender e de dar consentimento informado seja porque está sujeita a restrições físicas e / ou psicológicas, e / ou porque não está ciente das suas acções (em razão da idade, de uma determinada condição psicofísica, etc.).

No mundo inteiro, midia relatam que, na maior parte dos casos, o abuso sexual nas prisões é perpetrado pelos funcionários, as mesmas pessoas responsáveis ​​por manter os reclusos em segurança, outras vezes são os mesmos reclusos. Seja cometido por funcionários da prisão ou por reclusos, o abuso sexual e outras formas de violência na prisão são reconhecidos internacionalmente como formas de tortura. É responsabilidade absoluta dos governos proteger a segurança dos reclusos e previnir a ocorrência do abuso sexual na prisão, independentemente do autor, representa o fracasso dos governos em cumprir esta responsabilidade.

Não existem estudos oficiais sobre a prevalência do abuso sexual na prisão e as formas de violência perpetradas, e poucos são os reclusos que se apresentam para relatar que foram abusados. No entanto, a maioria dos que estudam as prisões reconhecem que a falta de queixas formais não significa que as prisões sejam seguras. Pelo contrário, ex-reclusos e defensores dos direitos humanos em todo o mundo concordam que a maioria das vítimas de abuso sexual na prisão ainda se abstêm de falar sobre suas experiências por sentimentos de vergonha, medo de retaliação ou simplesmente porque acredita que nenhuma ajuda está disponível para eles/as (Bloom, Owen & Convington 2003).

Como o abuso sexual e a violência, a sexualidade nas prisões não tem sido, historicamente, objecto de pesquisas. Entretanto para analisar o abuso sexual nas prisões é necessário compreender os comportamentos sexuais dos reclusos e o ponto de partida é que o recluso não abandona a sua sexualidade com o encarceramento. As poucas investigações internacionais sobre a sexualidade nas prisões são apenas fenómeno dos últimos anos e mostram que existem diferentes formas de comportamento sexual nas prisões (Pardue, Arrigo & Murphy 2011).

A literatura considera o comportamento sexual menos agressivo por natureza aquele reprimido, visto como uma resposta adaptativa do recluso ao ambiente prisional. A segunda forma de comportamento sexual é o autoerotismo. A masturbação tem uma história longa e turbulenta, duramente tratada não apenas pela sociedade, mas também pela religião e medicina. Em muitos países, nos Estados Unidos de América, por exemplo, masturbar-se em privado, na prisão, é considerado crime.

A terceira forma de comportamento sexual nas prisões é a homossexualidade. Como a masturbação, a homossexualidade tem sido e é uma questão fortemente debatida pelos governos, tanto nas sociedades quanto nas prisões. Entretanto, nas prisões, podem verificar-se dois tipos de homossexualidade: a verdadeira e a situacional. São considerados verdadeiros homossexuais aqueles/as cuja orientação sexual antes do encarceramento era a homossexualidade e homossexuais situacionais aqueles cujo comportamento homossexual teve origem na prisão. Enfim, a quarta forma de comportamento sexual é a heterossexual.

Tanto os comportamentos homossexuais como os heterossexuais podem ser consensuais e forçados e dar origem a abusos sexuais. Mais que para os homens, para as mulheres encarceradas, os comportamentos sexuais podem ser forçados através manipulação, obediência e coerção (Herberle & Grace 2009). A manipulação ocorre quando o sexo serve como uma ferramenta de troca de bens (por exemplo, drogas, cigarros) e / ou serviços (por exemplo, brigada de trabalho especial, favorecimentos para obter liberdade condicional). A obediência ocorre quando uma mulher participa de um relacionamento sexual com outra reclusa ou funcionário da prisão por medo, necessidade de segurança ou protecção. A coerção sexual inclui comportamentos que variam de pressão tácita ou aberta para se envolver em contacto sexual e até estupro forçado (Struckman-Johnson & Struckman-Johnson 2002).

Pesquisas mostram que a violência sexual nas prisões femininas também se manifesta entre reclusas e que funcionários homens e mulheres podem ser submetidos a formas de violência sexual perpetrada, por mulheres encarceradas, por prazer, comércio, transgressão, procriação, segurança e amor (Hensley et al. 2002, Smith 2006). Como já dito, os desejos sexuais e as necessidades emocionais não se extinguem quando uma pessoa é encarcerada “especialmente porque a intimidade sexual é um dos poucos aspectos de suas vidas que eles [os reclusos] ainda podem controlar…” (Smith 2006, p. 192).

O abuso e outras formas de violência sexual, quer cometidas em casa, na comunidade ou na prisão, têm graves consequências emocionais e físicas. Embora a experiência de cada vítima seja única, existem muitas reacções comuns, incluindo medo, vergonha, raiva e ataques de ansiedade. Para os reclusos, esses sintomas são exacerbados pela ausência de privacidade, falta de controle sobre seu ambiente e, muitas vezes, pela presença contínua na prisão da pessoa que os abusou e/ou abusa. As vítimas são também expostas ao HIV e a outras doenças sexualmente transmissíveis que podem ser mortais. Muitas vítimas de abuso sexual também sofrem lesões físicas. As reclusas podem estar em risco de gravidez e podem ser forçadas a abortar. Embora o aconselhamento e cuidados médicos imediatos – incluindo tratamento para prevenir infecções sexualmente transmissíveis – possam ser úteis, poucas reclusas têm acesso a tais serviços.

Em todo o mundo, a grande maioria dos reclusos acaba sendo libertada da prisão, trazendo todas as suas experiências – incluindo traumas – de volta para suas famílias e comunidades. Sem ajuda, as vítimas de abusos na prisão correm alto risco de desenvolver problemas crônicos de longo prazo, como depressão, sentimentos suicidas e dependência de álcool ou drogas. Por causa da vergonha e do estigma, os reclusos preferem não contar a ninguém, incluindo seus cônjuges ou parceiros sexuais, sobre o que aconteceu com eles – aumentando assim o risco de transmissão do HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis. Muitas vítimas de abuso sexual na prisão desenvolvem comportamentos que prejudicam a si mesmas, suas famílias e suas comunidades. Vítimas que não aprenderam a lidar efectivamente com sua dor emocional têm muito mais probabilidade de voltar a um comportamento de risco ou criminoso, são vulneráveis ​​à pobreza e enfrentam um alto risco de retornar à prisão (Just Detention International).

Em Moçambique, comportamentos sexuais nas prisões foram historicamente vistos com descrença, objecto de controvérsia e desaprovação. A distribuição de preservativos nos estabelecimentos penitenciários, por exemplo, é facto recente. O governo tem negado, por décadas, a existência de relações homossexuais entre os reclusos, abordagem que pode ter afectado o número de reclusos que contraiu HIV/SIDA dentro das penitenciárias. Victor Madrigal-Borloz, Especialista Independente da ONU sobre a Protecção contra a Violência e a Discriminação com base na Orientação Sexual e Identidade de Gênero escrevia, depois da sua visita em Moçambique:

Homens homossexuais são particularmente vulneráveis na prisão. Eu ouvi muitos testemunhos concordantes de homens gays sendo estuprados e submetidos à pressão de outros reclusos e agentes penitenciários para permanecerem em silêncio. Como em qualquer outra prisão do mundo, alguns reclusos têm relações sexuais consensuais. Apesar da alta prevalência de SIDA e alto nível de infecção por HIV, as autoridades prisionais não fornecem preservativos, pois consideram que isso “encorajaria” as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo.

Alguns meses antes da visita do Especialista Independente da ONU, em Abril de 2018, uma força especial do Serviço Nacional Penitenciário conduziu uma busca na ala feminina do Estabelecimento Penitenciário Preventivo de Maputo. O incidente ocorreu à noite, quando todos os internos estavam dormindo. Os agentes procuravam telefones e outros objectos ilegais. Segundo informações confirmadas pelas reclusas e reportadas pela midia: “os agentes, todos de sexo masculino, forçaram algumas internas a tirar a roupa e se curvar enquanto um dos agentes introduzia a mão nas vaginas em busca de objetos proibidos, usando uma única luva para todas” (Club of Mozambique). Alguns anos antes, em Março de 2014, o renomado jornal Sul-africano Mail & Guardian relatava que mulheres sul-africanas reclusas em Moçambique eram abusadas sexualmente e os agentes penitenciários exigiam sexo em troca de sabão ou pão.

A recente investigação do Centro de Integridade Publica (CIP) sobre a exploração sexual de mulheres encarceradas no Estabelecimento Penitenciário (EP) Especial para Mulheres de Ndlavela traz novamente à luz, um dos símbolos da crise global dos direitos humanos: o abuso sexual nas prisões. Abusos que foram também confirmados pela Comissão de Inquerido instituída pelo Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos. A investigação jornalística e o inquérito sublinham o envolvimento de guardas e homens externos ao sistema penitenciário; a troca de sexo em por comida, droga ou promessa de tratamento diferenciado; uso de maus-tratos e outros tratamentos degradantes e desumanos; gravidezes e abortos forçados. O problema do abuso sexual nas prisões existia, continua real e poderá continuar e não apenas no EP de Ndlavela.

Entretanto, em primeiro lugar, precisamos pesquisar os comportamentos sexuais nas prisões para identificar as consequências positivas e negativas de tais comportamentos para mulheres confinadas. Uma vez que uma compreensão mais abrangente da sexualidade na prisão tenha sido desenvolvida, políticas devem ser formuladas para abordar a conduta problemática que de outra forma ameaça mulheres encarceradas e que falha em garantir um ambiente correcional seguro. As pesquisas não devem ignorar a correlação entre a violência sexual na sociedade em geral e a violência sexual dentro da prisão. Pesquisas sobre o assunto tendem a considerar a violência de mulheres nas prisões como diferente da violência a mulheres na comunidade (Eigenberg 2000). Em vez, o abuso sexual na prisão reflecte e reforça a perpetuação de construções de gênero e a cultura da masculinidade que existem na sociedade.

A liderança das prisões e a formação dos agentes são elementos cruciais. Educar os directores de prisões e todos os funcionários sobre comportamento sexuais e a violência nas prisões pode ajudar a resolver alguns dos problemas que surgem da falta de consciência ou percepção do assunto. As formações devem ser incluídas na formação inicial da Escola Prática de Lhembe e na formação contínua.

Directores dos EPs e todos os funcionários assim como guardas penitenciários devem estar sujeitos a uma estrita supervisão e monitoria. Para proteger a segurança dos reclusos, as prisões devem adoptar fortes sistemas de monitoria interna e estar dispostas a submeter-se a auditorias regulares por agências externas. O Protocolo Opcional à Convenção contra a Tortura foi ratificado por Moçambique em 2014 e a Comissão Nacional dos Direitos Humanos é o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura que deve realizar visitas regulares às prisões com o objetivo de prevenir a tortura.

Prisões para mulheres devem apenas ser geridas e monitorada por um director e funcionários e agentes de sexo feminino para eliminar o abuso sexual dos homens com as mulheres. A Regra 81 das Regras de Mandela afirma que estabelecimentos prisionais e ou alas destinados a mulheres devem ser colocados sob a direcção de um funcionário do sexo feminino. A Regra também afirma que nenhum funcionário do sexo masculino pode entrar na parte do estabelecimento destinada às mulheres sem ser acompanhado por um funcionário do sexo feminino e que a vigilância das reclusas deve ser assegurada exclusivamente por funcionários do sexo feminino. É notório quanto complicado seja, pela administração penitenciaria poder respeitar essas regas, considerando o número exíguo de funcionários e agentes de sexo feminino. Entretanto esforços devem ser feitos para que o respeito dessa Regra seja uma regra e não uma excepção.

Perpetradores de abuso sexual devem ser responsabilizados. O artigo 194 do novo Código Penal (Tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos) afirma que “é punido com a pena de prisão de 2 a 8 anos quem, tendo por função a guarda ou vigilância de pessoa detida ou presa, a torturar ou tratar de forma cruel, degradante ou desumana”. No novo Código Penal, espancamentos, eletrochoques, simulacros de execução ou substâncias alucinatórias ou infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave, entre outros actos, são considerados torturas. O número 4 do mesmo artigo afirma que “se dos factos resultar suicídio ou morte da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 16 a 20 anos”.

Os reclusos devem também ter a possibilidade de falar regular e livremente sobre os seus comportamentos sexuais para que possíveis abusos sejam interrompidos. Debates que valorizam a segurança e dignidade dos reclusos, tornam mais fácil para as vítimas falarem sobre seu abuso e, em última instância, ajudarão a impedir outros abusos na prisão. Junto com um quadro legal e políticas aprimoradas, uma mudança nas atitudes podem ajudar os governos para que os reclusos retenham todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais estabelecidos no Direito Internacional dos Direitos Humanos, incluindo os direitos à saúde e a viver em um ambiente respeitoso da sua dignidade humana.

*Reformar- Research for Mozambique

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