Angola | ... Por uma outra história - Martinho Júnior

Para a história de uma comissão responsável de homens responsáveis por uma outra história

Martinho Júnior, Luanda 

Nos subterrâneos da vanguarda de todo o povo angolano, ferve uma pujante cultura de renúncia impossível!...

… Para em África, de Argel ao Cabo da Boa Esperança, se alimentar e vencer a batalha das ideias com o rumo imprescindível da lógica com sentido de vida, por muitos e longos anos ainda se tem de ser um pouco como o Che!

01- A Comunidade de Inteligência e Segurança de Angola tem uma história que se torna inadiável conhecer e explicar, encalhada nas profundezas da própria História de Angola e do seu jovem estado em ruptura com as cinzas do colonial-fascismo, particularmente ao longo dos 46 anos de autodeterminação e sofrido exercício de independência e de soberania.

Desde 1985 essa Comunidade sofreu severos impactos do neoliberalismo rapace e rampante com que se escancararam as portas de Angola e de seus mentores externos e internos, quando se assistiu ao ocaso do MPLA – Partido do Trabalho e da República Popular de Angola, inaugural dos destinos mais justos, solidários e dignos para todo o povo angolano, para os povos da África Austral e Central e em sequência temporal e consequência sociopolítica desse ocaso ocorrido de há cerca de 36 anos até 2017!

O 31 de Maio de 1991, data da assinatura do Acordo de Bicesse, marcou indelevelmente o fim do Partido do Trabalho, da heroica RPA e das gloriosas FAPLA, mas antes os impactos neoliberais haviam atingido o tecido humano da Segurança de Estado, não por que os seus membros tivessem, num passo de mágica, deixado deliberadamente de “honrar o passado e a nossa história”, mas por que por dentro das instituições e estruturas que deveriam continuar a ser fiéis ao projecto socialista e Não-Alinhado do Presidente António Agostinho Neto, os “valores” (?) neoliberais cresceram exponencialmente em nome duma “democracia representativa” que impôs profundas alterações aos instrumentos do poder e à superestrutura ideológica do estado angolano!

A “democracia representativa” foi o invólucro do plasma para onde as correntes neoliberais levaram a conduta do estado motivado por um individualismo de tal modo selvagem que mergulhou seus mentores na mais atroz das corrupções, algo que o povo angolano, sob a égide do camarada presidente João Manuel Gonçalves Lourenço, renuncia enquanto pesada herança “contra natura” e procura paulatinamente a pôr fim!

02- Um dos artífices externos dessas transformações em função dos impactos neoliberais, foi Durão Barroso, organizador, influenciador e hóspede dos intervenientes que assinaram o Acordo de Bicesse, convidado da última Conferência de História do MPLA, que veio para Angola dizer que “o muro de Berlim começou a ser derrubado em Angola”!...

Durão Barroso que se deixe ficar de vez pelo Goldman Sachs onde mentalmente sempre esteve, porque Angola jamais teve vocação para ser “um corpo inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço”!...

Há quem esteja ajustado e acomodado de tal maneira ao “espírito dos abutres” que se tornou impotente face aos inadiáveis imperativos da descolonização mental num país que ainda hoje se deve obrigar, enquanto houver subdesenvolvimento crónico, à superação dos problemas acumulados durante séculos por via de escravatura, do colonialismo e até do “apartheid” por mais que os fascistas de ontem um dia o tentassem tapar e os neoliberais de hoje pretendem subverter!

Nenhum membro da Comunidade de Inteligência e Segurança do estado angolano é pedra de muro algum, muito menos do muro de Berlim, porque as grandes batalhas são sobretudo batalhas das ideias e o espaço que há substancialmente para lutar e para vencer, é o espaço do subdesenvolvimento crónico que advém dum passado de séculos, com todo o arsenal de conhecimentos e de sentido vida que há por resgatar!

Por essa razão e em nome do colectivo da Comunidade de Inteligência e Segurança, ousei sim colocar um dia o MPLA “de quarentena”, porque tem sido com esse tipo de gente, seguidores e pares do neoliberal Durão Barroso, com gente que se infiltrou na organização e estrutura do MPLA (e por tabela do estado angolano) segundo as correntes neoliberais oportunistas, que não se quer nem “honrar o passado e a nossa história”, nem aqueles que um dia juraram pelo socialismo e pela dignidade do rumo fiel ao pensamento dialético e acção do Presidente António Agostinho Neto, nem fazer vingar a dignidade e a solidariedade interpondo o individualismo da pior espécie, nem à lógica com sentido de vida propensa a salvar a humanidade do abismo a que conduzem as amplas transformações climático-ambientais, o abismo do “fim da história” segundo a trilha doutrinária de Francis Fukuyama!

… Então a Comunidade de Inteligência e Segurança ao progredir no processo de inventariar, compendiar e até avaliar a sua própria história, honrando-a e ao passado, tem uma missão que transcende as narrativas descritivas e os espólios materiais, porque membro algum dessa torrente humana de antigos combatentes e lutadores, é da pedra ou do cimento desse imaginário e alienante muro de Berlim, muito menos quando esse figurativo socorre o pensamento e a acção neoliberal das três últimas décadas que antecederam 2017!...

Libertar no homem por imperativos colectivos, também não se compadece em Angola com a nocividade da fermentação etno-nacionalista tal e qual ela tem sido manipulada desde as suas origens pelas correntes de influência mais retrógradas do pensamento e acção humana, particularmente quando essas correntes correspondem a ingerências externas inscritas em processos deliberados de inteligência de potências ansiosas por explorar o espaço vazio deixado pelos organismos de Inteligência e Segurança do próprio estado angolano no seu próprio território sujeito em três décadas aos impactos neoliberais!

Por alguma razão o estado angolano popular sob a liderança do camarada Presidente António Agostinho Neto, enquanto ele esteve lúcido, escolhia membros do MPLA e só a eles, para integrar as fileiras da sua Segurança do Estado e os fazia jurar de modo a alimentar assim a imprescindível cultura de luta contra o subdesenvolvimento crónico que afectava e afecta a vida do povo angolano e impede de levar avante o Programa Maior do seu tão fundamental Movimento Popular de Libertação!...

… “Eu sou. Existo. As minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo. Tenho direito ao meu pedaço de pão!”…

03- Para se chegar a 2017 e com o camarada Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço se rejeitar olhos nos olhos a corrupta força neoliberal que até àquela data levava já 32 anos de turbulenta existência, a Comunidade de Inteligência e Segurança tendo como exponencial plataforma a Acção Social Para Apoio e Reinserção, ASPAR, lutou para que ela própria deixasse de ser uma vocação e uma instituição marginalizada, ostracizada e abominada, chegando mesmo, durante dois mandatos (penúltimo e antepenúltimo) de dez longos anos, a ter que fazer frente publicamente a quem lhe fazia tão drástica quão provocadora e desgastante guerra psicológica!

Assim o trabalho desses dois mandatos da ASPAR foi por via dos seus órgãos sociais o de inventariar os danos que afectaram tantos membros da Comunidade de Inteligência e Segurança e suas respectivas famílias, a ponto de alguns terem morrido abandonados e na mais abjecta miséria!

No decurso desse inventário, cada relatório dos órgãos sociais da ASPAR foi levado ao conhecimento do Bureau Político do MPLA (Secretário para os Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria), em simultâneo ao conhecimento do Chefe do SINSE em funções e muitas vezes a outros dirigentes, como os do então Ministério dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria, os do Grupo Parlamentar para os Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria, ou os do IRSEM…

Esse foi o plasma de húmus resistente que deu origem à vontade da Comunidade de Inteligência e Segurança para responder com uma renúncia impossível, pré anunciada por um poema dum líder ao nível de Agostinho Neto!

… Nessa conduta houve até quem envergasse publicamente a camisola desse saudável activismo substantivo, vital, alentador e mobilizador!...

Essa resistência subterrânea, não declarada nem convencionada mas alimentada de renúncia impossível, muito contribuiu para que o camarada presidente João Lourenço e sua equipa propiciassem à Comunidade de Inteligência e Segurança de Angola a vitalidade, o papel e o lugar que os impactos neoliberais lhe queriam obstinadamente retirar de modo tão azotado, quase por asfixia!

Desse modo também, nada se compadece com um simples acto de caridade, nem com o cinismo dos que de tanto se tornarem obstinados no lucro a qualquer preço, se tornaram em autênticos mercenários para com Angola!...

… “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós”!... 

04- A ascensão do camarada Presidente João Lourenço teve também que ver com tudo isso, algo que transformou o carácter do próprio SINSE: “há porta de entrada, mas não há porta de saída”… são as vozes que passaram a ecoar!...

… Agindo-se como num colectivo ao mesmo tempo solidário, digno e clarividente, como tal há que combater a pobreza nas próprias fileiras, como tal há que conhecer a história em função dos protagonistas e dos desafios e riscos de toda a espécie que houve que enfrentar, assim como das correntes que alimentaram poder e serviços e, de forma incontornável, com todo esse manancial “honrar o passado e a nossa história”, vencendo todos os traumas acumulados!

Foram criados desde 2017:

. A Caixa Social própria, livre dos constrangimentos neoliberais e ávida de dignidade, participação e solidariedade, que está a ensaiar os seus primeiros passos combatendo a pobreza nas fileiras;

. A Comissão de História e de Memória, assim como o Museu, porque não há que haver em Angola cópia da história dos “mambises” cubanos e seria antipatriótico renunciar a “honrar o passado e a nossa história” por muitos imponderáveis balanços que hajam em função das tensões entre as correntes secundárias intestinas que fermentaram entre 1985 e 2017!...

A Comissão de História e de Memória já realizou a sua Iª Conferência Nacional, algumas Conferências Provinciais e Regionais e encaminha-se para realizar a IIª Conferência Nacional em Outubro deste ano, apesar dos constrangimentos da crise económica e da pandemia!...

De certo modo está a gerar-se um movimento extremamente original, participativo e aberto ao protagonismo na nova via propiciada à Comunidade de Inteligência e Segurança respeitadora do aprofundamento da democracia, respeitadora de saudável patriotismo, respeitadora da dignidade, da solidariedade e da paz, em função dos conteúdos que se estão a arquitectar também por via da batalha de ideias!

Algo está a desabrochar a partir do chão desse movimento subtilmente telúrico, onde todos os que não têm mais porta de saída podem e devem dar a sua própria contribuição e afirmação!

Sabem para onde pode ir esse movimento, tendo em conta o que o seu exemplo suscita e a amplitude que pode estar na forja?

Para se construir os alicerces do renascimento angolano, do renascimento africano com todos os imensos resgates que essa obra colectiva obriga, a Comunidade de Inteligência e Segurança e os que contribuem para se levantar e conhecer a sua História e Memória, estão a ser como que uma vanguarda inspiradora que se pode tornar imprescindível ao longo do século XXI, o século ávido de água quanto de vida!

Tudo isso pode reflectir-se saudavelmente na fermentação duma doutrina e ideologia na latente trilha de lógica com sentido de vida, até por que aos mais velhos necessário se torna o que eles pensam sobre a imensidão que há que construir no presente e no futuro!

Essa é uma das viabilidades para também se fazer sair o MPLA da relativa “quarentena” neoliberal em que ainda se encontram algumas das suas franjas, porque a vida não se pode reduzir a um compartimento estanque neoliberal!...

… Agora volta a ser preciso, emergindo dum torpor de três décadas, CRIAR!...

“Criar criar

criar no espírito criar no músculo criar no nervo

criar no homem criar na massa

criar

criar com os olhos secos

Criar criar

sobre a profanação da floresta

sobre a fortaleza impudica do chicote

criar sobre o perfume dos troncos serrados

criar

criar com os olhos secos

Criar criar

gargalhadas sobre o escárnio da palmatória

coragem nas pontas das botas do roceiro

força no esfrangalhado das portas violentadas

firmeza no vermelho-sangue da insegurança

criar

criar com os olhos secos

Criar criar

estrelas sobre o camartelo guerreiro

paz sobre o choro das crianças

paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato

paz sobre o ódio

criar

criar paz com os olhos secos.

Criar criar

criar liberdade nas estradas escravas

algemas de amor nos caminhos paganizados do amor

sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas

[simuladas

criar

criar amor com os olhos secos.”

(Da inesgotável poesia pedagógica de António Agostinho Neto)

Martinho Júnior, 1 de Setembro de 2021

Imagens:

01- Em Setembro de 2021, ainda e sempre Agostinho Neto;

02- 20 de Fevereiro de 2020, este antigo combatente e cada vez mais veterano da pátria inaugurada com Agostinho Neto, em frente do edifício onde está instalada a administração municipal do Lobito, em cujo corpo funcionou ainda no colonialismo, uma das salas do então Liceu Almirante Lopes Alves que frequentei; ali decorreu a Iª Conferência de História e Memória do SINSE;

03- 20 de Fevereiro de 2020, as “portas do mar” numa cidade fruto da revolução industrial e não fruto duma feitoria implicada no comércio triangular e tráfico de escravos, são uma fonte inspiradora para se fazer prevalecer a identidade histórica afinal tão implicada com o futuro.