Helena Teixeira Da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Todos repararam no pelotão de fuzilamento dos candidatos à sucessão na liderança no PS, todos dispostos por Costa no palco do 27. congresso socialista, para provável desconforto dos próprios. Mas ninguém reparou na ironia da música final. Talvez nem eles.
As máquinas de comunicação dos partidos são peritas a assassinar canções que qualquer pessoa com dois neurónios percebe que deveriam ser intocáveis. Mas no fim de semana o PS superou tudo o que até agora tem sido inconvenientemente usado: não só voltou a mexer onde não devia, como propôs a ignorância como caminho. Ou terá apenas dado a beber um cálice de veneno?
A suspeita é legítima a partir do momento em que alguém toma como boa a ideia de fechar o ajuntamento de Portimão com "Nessun dorma" ("Que ninguém durma"), a ária do último ato da ópera de "Turandot" de Puccini, que basicamente conta a história da perversa princesa que um dia proíbe toda a gente do Império de dormir, para que em menos de 24 horas alguém descubra o nome do príncipe desconhecido que quer, por aposta, forçá-la a casar com ele, mas que ela então quer matar. Estão bons um para o outro nos níveis da malvadez, a pérfida princesa Turandot e o dissimulado príncipe Calaf, que tem sangue de família inimiga. Costa é a princesa, Pedro Nuno Santos é Calaf.
Assim de repente, a escolha deste drama sadomasoquista para fazer correr a cortina da festarola política que no fim de cada verão anuncia o primeiro dia da nova temporada da vida dos portugueses parece só disparatada - e é. O problema é que também parece uma private joke, piada interna do reino socialista para quem quer morder os calcanhares do poder de Costa.
A ideia de utilizar a "Nessun Dorma"é fazer com que vejamos no secretário-geral do PS a princesa que oferece recompensa ao acólito que lhe identificar o sucessor vindo da fação adversária? Aquele que dela nada quer a não ser o seu lugar? Não estará já identificado esse príncipe se ainda agora usou o Porto como palco para a guerra entre ambos? Pois se Tiago Barbosa Ribeiro foi uma afirmação de força do Calaf, que assim derrotou a princesa na escolha do candidato às autárquicas (embora a julgar pela sondagem do JN, a mais do que previsível derrota de Barbosa Ribeiro seja uma derrota interna do príncipe), que mais haverá para descortinar?
Esta ópera ficou inacabada. Mas em 2011, em mais uma daquelas bizarras escolhas sonoras do PS, foi preciso esperar apenas dois meses pelo "gran finale". E abril, em Matosinhos, encerrava-se em desvairada apoteose o 17.o congresso com aquela cantiga da Dionne Warwick ("That"s what friends are for") que diz que os amigos são para os bons e para os maus momentos. Foi quando Sócrates, então líder do partido, até enxugou uma lágrima. Levou 60 dias a perder as legislativas, o partido e os amigos. Já com Costa, todos fingem estar adormecidos sobre a sucessão. Mas "nessun dorma", nenhum dorme. O nome nunca dirão antes do tempo, mas todos querem cantar "Vencerei".
*Jornalista
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