quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Biden promove cimeira para estancar hemorragia global da democracia

Mais de 100 países reúnem-se esta semana para debater medidas concretas de reforço da democracia global, com os Estados Unidos, apesar da turbulência interna, a encabeçar a resistência ao autoritarismo.

Nenhuma democracia é perfeita e nenhuma democracia é final", disse o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, no Dia internacional da Democracia, a 15 de setembro. "Cada ganho conquistado e cada barreira quebrada resultam de trabalho determinado e incessante."

Estas palavras foram usadas novamente para apresentar a Cimeira da Democracia, que decorre pela primeira vez entre hoje e amanhã num formato virtual. O objetivo é "juntar líderes de governos, sociedade civil e sector privado para estabelecer uma agenda afirmativa de renovação democrática e endereçar as maiores ameaças que as democracias hoje enfrentam através de ação coletiva."

A ideia, segundo a descrição fornecida pelo Departamento de Estado norte-americano, é que os participantes trabalhem em ideias práticas para defender as democracias do autoritarismo, combater a corrupção e promover o respeito pelos direitos humanos. Dentro de um ano, a administração de Joe Biden vai organizar uma segunda Cimeira, ao vivo, onde serão analisados os progressos feitos após esta edição inaugural.

Com a pandemia de covid-19 e a sua nova variante Ómicron em pano de fundo, este primeiro evento será virtual e vai reunir representantes de cerca de 110 países de todos os cantos do mundo, incluindo Portugal e países lusófonos - nomeadamente Angola, Brasil, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Cabo Verde. Moçambique fica de fora da discussão, tal como vários outros Estados com graus variados de liberdade democrática. Qual foi o critério para os convites e exclusões? Se nalguns casos é claro, noutros não é imediatamente compreensível, e o Departamento de Estado também não explicou o processo de escolha.

"É interessante que alguns tenham sido convidados e outros não", disse ao DN Everett Vieira III, cientista político que leciona na Universidade Estadual da Califórnia, Fresno. "Canadá, Portugal, Espanha, França, Austrália, todos estes fazem perfeito sentido", considerou, mencionando o índice da Freedom House, que classifica os países com respeito aos direitos políticos e liberdades civis. Portugal tem uma classificação de 96 pontos e é considerado livre, enquanto a China, no pólo oposto, tem apenas 9 pontos e é considerada não livre. Outros, como o México (61 pontos) são classificados como "parcialmente livres."

"Há algumas exclusões óbvias, como Rússia e China, que não são democracias, são regimes autoritários", afirmou Vieira III. "Mas há muitos Estados do sudeste asiático que não foram convidados, o que me pareceu muito curioso", notou. "Foram convidados alguns Estados da África subsariana, onde, como sabemos, há muitos Estados não-democráticos."

Olhando para a lista de países convidados e comparando com o índice da Freedom House, só o Gana é considerado livre na África ocidental, sublinhou Everett Vieira III. "O Níger, Nigéria, Libéria, Senegal, foram todos convidados", exemplificou. "A RDC foi convidada e não é um Estado livre. Angola vai, mas onde está Moçambique?"

Também estão na lista de participantes da Cimeira a Índia e o Paquistão, algo que o especialista frisou como interessante. "A Índia é considerada a maior democracia do mundo. Eu, pessoalmente não concordo com isso", afirmou, referindo que o país tem muitos problemas domésticos, continua com casamentos infantis e não tem fronteiras seguras, mantendo disputas com a China e o Paquistão.

Por outro lado, "tinham de convidar o Paquistão, senão era um virar de costas a um potencial aliado para combater o Estado Islâmico e a Al-Qaeda." Outro nome interessante na lista: Taiwan, que a China - que ficou de fora - considera ser território seu.

E depois há questões delicadas, como a da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos ou o Qatar. Nenhum destes Estados foi convidado, "para não embaraçarmos os nossos aliados", considerou Everett Vieira III. No entanto, a Arábia Saudita é um grande parceiro comercial dos Estados Unidos: os norte-americanos compram-lhes o petróleo deles e eles compram-lhes armas.

"O presidente Biden pode dizer que um Estado é autoritário e somos nós contra eles, mas quando toca a comprarmos petróleo não se passa nada", salientou Vieira III. "É o preço de fazer negócios no mundo, e por outro lado, não podermos arrogar-nos a ser uma democracia perfeita."

Por outro lado, o cientista político questionou porque é que Singapura não foi convidada. "Singapura é o Estado mais globalizado do mundo, com certeza muito autoritário mas tem feito progresso em direção à democracia. Achei curioso o facto de não ter sido convidado."

Uma das hipóteses é que a Administração de Joe Biden quis evitar potenciais respostas negativas. "Alguns Estados talvez não tenham sido convidados porque poderiam recusar e isso seria um fiasco diplomático", aventou o académico.

Para Daniela Melo, cientista política luso-americana e docente na Universidade de Boston, é difícil perceber o critério estando de fora. "Alguns países são grandes e importantes demais, estrategicamente, para os Estados Unidos os excluírem, como a Índia e as Filipinas, que são players importantes na região onde estão", explicou.

A ideia é que, embora estes países tenham democracias dúbias, a sua presença é do interesse da administração Biden.

"A Índia tem claros problemas de retrocesso democrático, com ataques aos direitos humanos. Filipinas e Polónia são outros casos claros. Mas são países que os Estados Unidos querem manter dentro da esfera de discussão", analisou.

Outros, como Turquia e Hungria, terão eleições em 2022 e uma das possibilidades é que "a Administração não quer dar credibilidade a Erdogan e a Orbán" convidando-os para este tipo de cimeira. "É estratégia geopolítica e da segurança nacional dos Estados Unidos", frisou.

Por outro lado, faz sentido convidar "não só democracias consolidadas como também democracias que estejam em retrocesso mas para as quais os Estados Unidos ainda tenham esperança que haja um retorno em termos de qualidade da democracia."

Expectativas modestas

Os propósitos da cimeira são ambiciosos, mas as expectativas quanto aos seus resultados concretos são modestas.

"A administração claramente percebe que o retrocesso da democracia é um problema global e vê que problemas globais precisam de soluções globais", salienta Daniela Melo. "Mas em termos de esta cimeira conseguir mudar a qualidade da democracia nos países que foram convidados, tenho dúvidas sobre isso."

A académica notou que esta cimeira servirá para estabelecer os parâmetros de sucesso a ser medido no próximo ano, já que haverá um segundo summit ao vivo em 2022.

"Biden tem esperança que saia daqui alguma coisa de substancial", referiu. "No mínimo, a Administração quer que os países que foram convidados articulem promessas de reformas domésticas que levarão a uma melhoria da qualidade da democracia na região, no país e por aí fora."

Para Everett Vieira III, "a diplomacia é uma coisa boa" e conseguir que líderes se juntem e conversem "só pode ser bom para a paz no mundo e para a economia global, em particular numa altura em que estamos unidos a lutar contra esta pandemia."

No entanto, o cientista político adverte que os resultados não serão espampanantes. "Diria que não vai sair daqui nada substantivo", afirmou. "Isto é sobretudo uma promessa de campanha do presidente Biden. Restabelecer a reputação dos Estados Unidos, não apenas como um bom país mas como um país que lidera o mundo."

Uma cimeira com esta dimensão marca uma diferença significativa em relação ao antecessor: "Trump era muito nacionalista, muito isolacionista, a América para os americanos", lembrou Vieira III. "Isto é o estender de um ramo de oliveira, é dizer que estamos de volta e não nos esquecemos dos parceiros."

Mas para Daniela Melo, o intuito de fortalecer a democracia esbarra com os problemas internos de cada Estado. "O que me parece o ponto mais fraco para uma cimeira sobre este tema e com este objetivo é que são sobretudo as dinâmicas internas que têm impacto na qualidade da democracia", afirmou. "Portanto, não sei até que ponto é que a cooperação multilateral será a ferramenta mais adequada para atingir esse tipo de objetivo."

Isso mesmo é visível na própria democracia norte-americana. "A polarização continua a mostrar um país que está a lidar com a erosão democrática, ao mesmo tempo que a doutrina de Biden quer assentar nestes temas de democracia, de direitos humanos, criar o consenso de democracias", considerou. "A polarização que se vê no país enfraquece muito essa doutrina, a espinha dorsal do argumento de Biden."

Foi precisamente o que a China, excluída da cimeira, veio dizer no último fim de semana. Tian Peiyanm, diretor do Gabinete de Pesquisa do Partido Comunista chinês, disse que a pandemia de covid-19 expôs os defeitos do sistema americano e que o país, polarizado e com dificuldades em controlar a emergência sanitária, não tem condições para dar lições aos outros.

"Tal democracia traz não felicidade mas desastre aos eleitores", afirmou, durante uma conferência de imprensa, citado pela Associated Press. Os esforços para que outros países copiem o modelo de democracia ocidental estão, considerou, "condenados ao falhanço." Joe Biden, um veterano da diplomacia internacional, quer provar precisamente o contrário.

Ana Rita Guerra, Los Angeles | Diário de Notícias

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